Ana Zanatti: “Não é um livro de um grupo minoritário. É um livro para todos”

Inacio Ludgero a 02-11-2014

Ana Zanatti escreveu ‘O Sexo Inútil’ para refletir sobre a dignidade. Feito a partir de testemunhos de quem enfrentou preconceitos contra a homossexualidade, o livro chegou dia 23 às livrarias. O Delas.pt falou com a atriz sobre o livro e muito mais.

Se num dicionário de Português a palavra “aceitar” vem associada a conceitos como “estar conforme com” ou “admitir”, depois da leitura do livro ‘O Sexo Inútil’ de Ana Zanatti, que chegou às bancas esta semana, será convidado a aceitar que essa palavra não pode ser usada quando se está a falar de homossexualidade.

“Quando se põe a questão em termos de aceitar, é como se estivéssemos a definir a superioridade de um lado em relação ao outro. Não é assim. Não pode haver um mais abaixo que precisa de ser aceite e outro mais acima que lhe dá ou não esse benefício”, diz Ana Zanatti.

E é na senda da necessidade de “refletir sobre dignidade e preconceitos” que a atriz se lançou a este livro, um texto entre o ensaio, o jornalismo e a reflexão pessoal que já tinha vontade de escrever há muito tempo mas que estava à espera de encontrar o momento certo. O momento chegou na forma de uma jovem de 21 anos, estudante de medicina, classe média-alta, chamada Joana.

“Juntei durante 40 anos toda a correspondência que fui recebendo e havia muita que focava o assunto da orientação sexual, onde eu sentia que havia um grande sofrimento. Já queria há muito tempo fazer um trabalho sobre isso.”

E a mensagem de Joana, que chegou um dia através do Facebook, foi o empurrão que faltava. Joana tinha apenas uma dúvida sobre fazer teatro, procurava conselhos. Mas as conversas foram evoluindo e, ao longo de um ano, transformaram-se em mais de mil páginas de emails que foram chegando ao fundo da questão e se transformaram no fio narrativo de ‘O Sexo Inútil’.

“Ela fez com que me focasse de forma muito viva na questão. E o que me marcou mais foi o facto de se tratar de alguém com menos 40 anos do que eu. Não parava de pensar: como é que isto ainda acontece?”

A partir daí, Zanatti passou de Joana para muitas outras conversas e casos pessoais que vão sendo apresentados ao longo do livro.

“Não é um livro de um grupo minoritário para ser lido pelo mesmo grupo minoritário. É um livro para todos. A questão do preconceito, seja ele de que tipo for, é transversal a toda a sociedade. Rapazes com pais homofóbicos, maridos que vivem uma farsa, pais que se deparam com algo com que não sabem lidar – tenho a certeza que toda a gente se vai identificar de alguma forma, ou porque é o pai, ou porque é o amigo, ou porque é o próprio.”

Das cartas para a RTP e para os teatros onde atuava passou-se para a correspondência eletrónica e as leis já evoluíram muito, mas as questões de alguma forma mantêm-se ao logo dos tempos.

“É triste que as pessoas ainda sintam à volta delas um olhar reprovador e um peso, é triste que ainda tenham medo. Se não sentissem isso, não se lhes levantaria a questão. São levadas a auto-recriminar-se. Também era o caso desta jovem, que temia o julgamento dos outros e temia ser excluída pela família que fazia comentários demolidores sobre o tema. Estou a ser uma péssima filha, pensava, porque isto que eu sou é uma coisa muito errada para os meus pais. Observava também muito bullying na escola, que acontece também da parte dos professores e que todos os jovens de hoje podem relatar.”

O medo de que Ana Zanatti fala é tão real quanto a necessidade de anonimato exigida por todos os que deram testemunhos para o livro. Pessoas que confiaram as suas histórias, que se expuseram como “nunca vi os meus amigos fazerem”, que confiaram na autora mas que mesmo assim preferem não assumir o nome. E apesar de ter voltado às suas dúvidas de adolescente através de excertos dos próprios diários que partilha no livro, foi esse medo que Zanatti decidiu não ter ao longo da sua vida.

“Acho que foi mesmo por isso que as pessoas sempre me escreveram. Talvez o facto de nunca ter escondido nenhuma parte de mim, de sempre ter vivido de uma forma inteira, tenha feito com que algumas pessoas se identificassem. Achavam que encontrariam um interlocutor capaz de entender.”

Também se sentiu estranha no pátio da escola quando as amigas só queriam falar de rapazes, também passou por discriminação laboral, mas “estou aqui porque espero poder despertar um outro olhar. As mentalidades não mudam por decreto e não quero vir com o livro impor a minha maneira de pensar, mas espero convidar quem leia a tentar encontrar um olhar mais humano, mais informado, mais generoso.”
Nesta fase da vida, aos 66 anos, Ana Zanatti tem escolhido ficar mais nos bastidores. Afastar-se mais da frente das câmaras para se poder dedicar à escrita, algo que decidiu assim que começou a publicar livros em 2003. “A escrita, que é muito importante para mim, absorve-me muito e não consigo fazer tudo ao mesmo tempo. Claro que se me aparecessem mais projectos como a série ‘Terapia’ da RTP, que estou a fazer agora, largava tudo e ia a correr. Mas as séries de qualidade não têm sido uma grande prioridade para os canais portugueses.” Ainda assim, não deixa de ser uma figura pública. E tem bem noção das possibilidades e responsabilidades que isso acarreta:

“Se tenho acesso à imprensa e a um número vasto de pessoas que seguem o meu trabalho, e se posso utilizar isso para um bem comum, é óbvio que o vou tentar fazer. Se eu falar nestas questões posso abranger um número maior de pessoas, convidá-las pelo menos a pensar sobre isso.”

Ainda mais quando aquilo que interessa a Zanatti é chegar à reflexão sobre preconceito por via do “lado mais escondido, aquilo que se passa dentro das pessoas e que raramente se partilha, a travessia emocional de cada um.” Uma travessia que, com este livro, pode agora ser património de qualquer pessoa e não apenas de quem um dia precisou de escrever uma carta a uma atriz para se sentir compreendido.