Hijabs e rastas: apropriação ou integração cultural em Nova Iorque?

collage-anniesa

Na segunda-feira passada Anniesa Hasibuan apresentou na Semana de Moda de Nova Iorque a sua coleção para a Primavera/Verão 2017. Todos os modelos tinham hijab – um lenço que cobre o cabelo e o pescoço, usado por algumas mulheres muçulmanas.

Anniesa Hasibuan é muçulmana, vive na Indonésia onde tem o seu atelier e apresentara já em edições anteriores as suas criações nas Semanas de Moda de Paris e Londres. Esta foi, no entanto, a primeira vez que a criadora de 30 anos apresentou a sua coleção em Nova Iorque. Depois da passagem dos 48 modelos, o público aplaudiu de pé, o que raramente acontece naquela semana de moda. A imprensa não fez nada muito diferente: a Elle, a BBC, o Independent assinalaram o momento histórico – foi a primeira vez que uma coleção inteiramente apropriada para mulheres muçulmanas pisou a passerelle mais importante da América – eram 48 modelos de cabelos cobertos.

 

No país de origem de Anniesa há quem discorde desta afirmação. É que sedas, cetins, brocados e joias deitam objetivamente por terra o conceito de “moda modesta” em que os mais ortodoxos querem filiar a roupa feminina. Citada pela BBC, Eva Nisa que estuda a moda islâmica desde 2007, afirma:

“Algumas pessoas pensam que o que os criadores de moda muçulmanos produzem é totalmente contra este tipo de doutrina religiosa.”

De regresso aos Estados Unidos, onde o ambiente em torno dos muçulmanos está cada vez mais hostil, fenómeno que é facilmente associável à campanha eleitoral para as presidenciais americanas, é natural que nos meios mais progressistas um desfile que traz consigo questões como a liberdade de expressão religiosa, a liberdade da mulher (muçulmana) e a representação esplendorosa de uma comunidade que hoje é vítima de agressões, seja aplaudido de pé. Afinal, quem de nós não é pelos fracos e oprimidos em cada história que lê nos livros ou vê no cinema?

A designer até pode não ter tido esta intenção, mas a moda é também, sempre, uma narrativa num momento político – basta lembrarmo-nos de saias curtas, de calças, de tailleurs. E o meio da moda diz “sim, abraçamos-te na tua diferença, na tua ousadia, tu fazes parte de nós, nós usaremos os teus modelos e integraremos a tua proposta na nossa vida” – na verdade as marcas de massas já estão a integrar esta modéstia nas suas linhas há algum tempo.

Podia ser tudo só rosas, não fosse na mesma semana de moda, outro desfile com uma marca cultural fortíssima ter sido mal recebido. Marc Jacobs, um dos criadores mais prolíficos dos últimos 30 anos, apresentou uma coleção cheia de misturas – gangas, sedas, minissaias, casacos ao estilo militar, meias com pérolas… Todas as modelos usaram botas de plataformas altíssimas e cabelos com rastas de algodão. E foi este último detalhe que não agradou.

@bellahadid @jourdandunn @hannegabysees ❤️❤️❤️

Uma foto publicada por Marc Jacobs (@themarcjacobs) a

 

Para além de ninguém aplaudir de pé, Marc Jacobs foi acusado de apropriação cultural por centenas de pessoas nas redes sociais. Para essas pessoas o criador de moda roubou um elemento de identidade de grupo para usar sem escrúpulos – as rastas são normalmente utilizadas por negros e, no desfile, a maioria das modelos que desfilou era branca. Os negros americanos sentiram-se ofendidos por terem uma expressão da sua cultura integrada num desfile de moda e, portanto, verem representada de uma forma esplendorosa uma comunidade que é vítima de agressões, num evento cultural mainstream. Exceção feita à revista Time e ao Washignton Post, as publicações ignoraram a polémica e os fundamentos da posição dos detratores de Jacobs.

Havia muçulmanas entre as modelos do desfile de Anniesa Hasibuan? Não sabemos. Alguém se importou? Ninguém. Alguém falou de apropriação cultural? Ninguém. Quanto a Jacobs, já sabemos as respostas.

Do que poucos falaram é da normalização dos elementos culturais externos que ocorre de cada vez que esses elementos são colocados fora do seu círculo restrito. Ou seja, trazer hijabs e rastas para um desfile de moda é dizer: isto é normal e fará cada vez mais parte da cultura mainstream, da cultura de todos nós, do que será dominante e socialmente aceite. Embora os aplausos para Hasibuan surjam em apoio à “resistência” eles dizem que já não é preciso resistir, que já aceitamos no Ocidente que as mulheres usem hijab, talvez algumas mulheres se disponham a usá-lo mesmo sem um pressuposto religioso. As vozes contra as rastas nos desfile de Jacobs dizem o contrário, dizem que aquela comunidade quer ficar à parte e não se integrar no todo, continuar a resistir.

E enquanto assistimos à resistência à apropriação cultural por parte dos negros (americanos) que há tanto tempo fazem parte do nosso espaço público – e deviam fazer mais, é certo -, o espaço público é cada vez mais ocupado por ideias diversas daquelas que estão na base das sociedades ocidentais e, ao mesmo tempo, de tantas revoluções que a moda assinalou ou profetizou. Outra vez as minissaias, as calças, os tailleurs que vieram trazer liberdade às mulheres ou ser comprovativo dessa liberdade. Que Hasibuan oferece maior liberdade (de escolha) às mulheres com a sua matriz cultural é inegável. Mas o que é que oferece às mulheres de Nova Iorque?