Antonella Lattanzi: “O escritor tem fé nas pessoas, a quem entrega a coisa mais importante sobre si mesmo: o seu romance”

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Antonella Lattanzi é o nome da escritora italiana que, pela primeira vez, vê um dos seus livros publicados em solo luso. Garante que todas as suas obras são feitas com base num estudo de campo prévio, sendo que para escrever este mais recente romance policial, “Uma história Negra“, teve que falar com muitas mulheres vítimas de violência doméstica, bem como com os seus filhos, que cresceram em verdadeiros cenários de terror.

O livro conta-nos a história de Carla e Vito, ex-marido e ex-mulher, que outrora se amaram loucamente até chegarem à exaustão de um divórcio que prometia paz para ambos. Mas Vito continuou a ser obsessivo, violento e agressivo com Carla e um crime precisou de ser cometido. A ação da história começa a desenvolver-se quando Vito vai a casa de Carla para celebrar o aniversário da filha mais nova, Mara, e acaba por desaparecer misteriosamente.

Num enredo com tons e contornos dramáticos, a autora vai tecendo uma história que deixa o leitor entusiasmado e a sentir-se parte da equipa de investigação policial. Como é que Vito desapareceu? Onde está, o que lhe aconteceu, quem ajudou a fazê-lo desaparecer? Sempre que temos alguma certeza, a autora coloca uma outra pista que nos leva para um rumo diferente.

Foi no dia 23 de outubro, terça-feira, que Antonella Lattanzi esteve em Portugal para falar sobre o seu mais recente romance, “Uma História Negra”, da editora Penguin Random House, e nós decidimos fazer-lhe algumas perguntas sobre a sua perspetiva e expectativa do livro. Leia a entrevista.

Este é o seu terceiro romance, e o primeiro a ser publicado em Portugal. Que reação espera do público português?

Espero que o público português receba este romance tão bem quanto os outros países o têm recebido. Espero que esta história fale com o leitor e que o faça questionar-se. Não escrevo para dar respostas ou para ensinar grandes verdades, mas sim para contar uma história. Uma história que, na minha opinião, é necessária contar e que contém perguntas que todos nos devemos fazer. Como é que nos comportaríamos se estivéssemos numa situação destas? Qual é a linha que separa o bem e o mal, o certo e o errado? Acreditamos que podemos renascer mais fortes após uma situação de grande desespero? Será que o destino está escrito para todos, ou que podemos lutar para mudar as coisas, quando alguém nos faz mal? Penso que estas são algumas das questões que nos vamos colocando ao longo da vida… e eu tentei transformá-las em um romance. E espero, portanto, que “Uma história negra” possa contar a história de cada leitor, independentemente da nacionalidade que tenha.

“Uma história negra” aborda a violência doméstica, agressão, posse. Para escrever este enredo, falou com outras mulheres sobre as suas experiências reais? Carla é uma personagem fictícia ou baseada numa história verídica?

Todos os meus romances nascem de um estudo de campo aprofundado sobre a realidade sobre a qual quero escrever. Para “Uma história negra”, estudei casos de mulheres que foram vítimas de violência doméstica. Conversei com várias mulheres abusadas repetidamente, homens violentos e filhos de pais violentos; estudei os processos – de todos os tipos – para entender como se fala, como se age, como se comportam os advogados, os juízes, os procuradores etc. Houve uma altura em que considerei contar uma história real, mas depois apercebi-me que a romantização é fundamental e que uma história inventada poderia conter todas as outras histórias que realmente aconteceram. Carla é uma mulher imaginária, mas ela pode ser uma mulher de verdade. Espero que seja o reflexo de todas as mulheres vítimas de violência. E não apenas isso, espero que dentro de cada leitor – seja homem ou mulher – haja algo de Carla. Espero que “Uma história negra” também fale de si.

Carla e Vito [as personagens principais] sempre foram apaixonados um pelo outro, desde crianças. Mas a sua história de amor não foi sempre um mar de rosas. Fale-nos do carisma e personalidade de Carla. Ela lidou com a violência por amor ou medo?

Pelos dois. Carla é uma mulher forte e frágil ao mesmo tempo, com muita vitalidade e coragem – por exemplo, nos cuidados com os filhos -, mas também muito frágil nos relacionamentos amorosos. Acredito que cada um de nós é forte e frágil ao mesmo tempo, e que precisamente num momento de perigo, ou de dificuldade, surgem recursos que nem sabemos que possuímos. Carla e Vito amavam-se verdadeiramente, mas chegou a um ponto onde o Vito deixou de a amar e começou a considerá-la como um objeto da sua propriedade. Então, ficou violento. Eu acredito que o amor é liberdade, é querer a liberdade do outro e defender a sua própria liberdade também. Quando o ciúme se torna obsessivo, deixamos de amar e começamos a pensar no outro como um objeto que está na nossa posse. O carisma e a força de Carla também estão na sua capacidade de se rebelar contra um “jogo” que lhe acontece desde criança e consegue arranjar forças para dizer não à violência. Mas Carla não é apenas uma personagem positiva. O leitor vai descobrir que também tem muitos aspetos ocultos…

Porque é que optou por revelar a verdade do crime apenas nas últimas duas páginas?

Porque “Uma história negra” também é um noir, é uma investigação que o leitor faz juntamente com as personagens do romance. Não existe apenas uma verdade, a verdade deve ser construída pelo leitor a partir dos pequenos pedaços que cada personagem possui, página por página. Nenhum dos personagens tem a verdade total, exceto Carla. Mas Carla opta por ficar em silêncio, não fala, não revela nada, e cabe ao leitor investigar para descobrir o que realmente aconteceu na noite em que Vito desapareceu. E só pode conhecer a verdade chegando à última página.

Conte-nos mais sobre Nicola e Rosa [filhos de Carla e Vito]. O Nicola ajudou a mãe quando esta mais precisou. Porquê? E a Rosa, será que faria o mesmo?

Como disse, não gostaria de revelar muito sobre o enredo do romance (caso contrário, o que resta para o leitor?). O que posso dizer é que Nicola e Rosa, filhos de Carla, fariam qualquer coisa pela mãe. Foram meninos que tinham pais que se amavam loucamente, mas também que fizeram muito mal um ao outro. Por essa razão, foram forçados a crescer por conta própria, a tornarem-se “pais”, a criar um relacionamento muito semelhante àquele que existe entre marido e mulher. Para se salvarem da dor, tentaram criar uma espécie de normalidade composta de pequenos gestos diários. No entanto, Rosa amava muito o pai, e embora perceba que ele sempre prejudicou a sua mãe, e que sempre colocou a sua vida em risco, não pode deixar de amá-lo, desejar a sua presença, tender a perdoá-lo sempre. Assim, por um lado, Nicola, tendo vivido durante anos com a figura ameaçadora do pai, tornou-se numa espécie de suposto marido de Carla. Ele pensa que é seu dever protegê-la sempre, contra todo mal. Do outro lado, Rosa encontra-se dividida entre o grande amor pelo seu pai e o medo de que ele possa ferir a sua mãe. E depois existe a pequena Mara, ainda inconsciente de toda a dor. No entanto, eu pergunto-me: mesmo que a Mara não viva conscientemente a dor na sua família, porque é jovem demais para compreendê-la, como é que isto a mudará ou como marcará essa violência, vivida de de forma indireta, durante a sua infância?

A certa altura, Nicola é comparado com o seu pai [Vito]. Porquê esta associação?

Porque Nicola faz tudo para ser diferente do pai, que odeia. No entanto, como seres humanos, precisamos de lutar todos os dias contra os padrões familiares em que crescemos. A pergunta que fiz a mim mesma foi: ‘em que tipo de homem e mulher se tornarão Nicola e Rosa? Serão capazes de superar a cultura da violência e tornar-se livres? Conseguirão ser felizes depois de tudo o que viveram? Serão capazes de se tornar num homem e numa mulher saudáveis, ou ficarão arruinados para sempre?’. Quando estudei e falei com filhos de pais violentos, conheci alguns que conseguiram construir uma nova identidade, e outros que permaneceram aprisionados naqueles modelos parentais, mesmo sem se aperceberem. Acredito que o escritor também escreve porque tem fé. Tem fé nas pessoas, a quem entrega a coisa mais importante sobre si mesmo: o seu romance. E assim também eu confio: confio que Nicola e Rosa, como todas as crianças “maltratadas”, podem construir o seu próprio destino, mas também sei quanto trabalho e esforço terão que fazer, e que não será fácil.

Um assassino será sempre um assassino, ou, nestes casos, temos que olhar para o crime com outros olhos?

Mais uma vez, sem querer revelar muito do enredo, acho que todo o assassino é diferente e, acima de tudo, todos os seres humanos são também diferentes uns dos outros. Não é por acaso que na lei existem diferentes níveis de penas, um tipo de homicídio considerado – dependendo dos vários sistemas judiciais – mais grave que outro, dependendo se é realizado com intenção ou não, e se se praticou em própria defesa ou não. A realidade é muito mais policromada e multifacetada do que parece e, apesar de não justificar nenhum tipo de homicídio, também clamo o direito do ser humano de se manter vivo.

Tem uma forma de escrever bastante específica: longos parágrafos e muitas vírgulas. Porque escolheu escrever este romance desta forma?

Neste romance – mas também nos outros – eu uso muitos estilos diferentes. A primeira parte é composta de frases mais compridas, cheias de vírgulas, e fi-lo porque queria criar um clima obsessivo, queria arrastar o leitor para dentro das páginas, para dentro da história. O meu objetivo era transformar o estilo num protagonista do romance. A segunda parte, que encena o processo, está repleta de diálogos, escritos de uma maneira mais esguia, com frases mais curtas e um ritmo mais intenso. Isto porque eu queria encenar um processo como é na realidade, e para isso tentei usar a linguagem mais apropriada, mais consistente com a história que queria contar.

Qual é o objetivo principal desta história? Qual é a mensagem que quer que as pessoas entendam?

Não acho que os escritores tenham que enviar mensagens. Não acredito nos romances temáticos, aqueles em que o escritor quer demonstrar uma tese. Escrevo para contar uma história, apenas a história que quero contar, esperando que também fale sobre o leitor. Escrevo para criar perguntas na cabeça do leitor, mas não tenho respostas, as respostas é o leitor que as tem que dar. Não tenho um objetivo no que comunico, mas apenas a esperança de que a minha história chegue ao leitor, que o leitor desfrute dessa história e a leia toda de assentada E se apenas uma pessoa achar que essa novela também fala de si, se apenas uma pessoa fizer mais uma pergunta depois de ler este romance, se apenas uma pessoa descobrir mais sobre si mesma, então eu posso sentir-me mais feliz.

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