Ao “Sol” com Celina da Piedade

O nome do seu terceiro disco, acabadinho de lançar, assenta-lhe como uma luva: ela irradia, emana energia nos palcos e fora deles. Assim Sou Eu, nome do primeiro single, serviu de mote para a conhecer melhor e os múltiplos projetos em que se desdobra, numa longa conversa sobre a música e o mundo, sem esquecer as mulheres no mundo da música.

Canta o Alentejo como se fosse nativa mas, na verdade, não é.

Nasci em Lisboa há 38 anos e fui criada em Setúbal, que cresceu muito nos anos 70 graças aos alentejanos, era uma espécie de “Alentejo deslocado”. Mas a família da minha mãe é toda de Baleizão, perto de Beja, e a do meu pai da Serra Algarvia. Aos fins de semana metiam-me no Expresso, como a minha avó dizia no “presto”, e lá ia. O meu amor à região surge de forma natural, sou alentejana de criação.


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Como é que descobriu o acordeão?

Os meus pais dizem que com três, quatro anos, ficava afetada, chorava, depois ria, quando uma menina, amiga da família, tocava acordeão. E eu lembro-me de sentir um amor enorme, uma coisa que não cabia em mim. Devo tê-la tomado como modelo. É a Helena Mendes, uma grande instrumentista que hoje toca com a Isabel Silvestre. Aos quatro anos recebi o meu primeiro acordeão e com seis atuei pela primeira vez em público.

Começou a carreira artística aos seis anos?

O meu pai sempre foi o meu fã número um e, quando se apercebeu que eu já sabia tocar algumas músicas, tratou de me arranjar concertos. O primeiro foi em Castro Verde, tinha seis anos e não aguentava tocar muito tempo porque o acordeão era pesado e eu muito pequena. Pode dizer-se que foi o início, sim, pois nunca mais parei de tocar.

Não era um instrumento algo masculino e fora de moda?

Não me lembro de o associar a um universo masculino porque havia muitas meninas a estudar e a tocar. E, quando tinha uns 12 anos, uma série de bandas usavam instrumentos populares, como os Madredeus e os Sétima Legião. Eu apanhei essa maré.

Estudou acordeão desde os 10 anos mas decidiu licenciar-se em Património Cultural.

Acabei o Conservatório e o 12º ano ao mesmo tempo, estava muito cansada e decidi estudar outra coisa porque pensei “eu música já sou, vou ser sempre”. Primeiro escolhi a cidade, tinha ido a Évora e ficado encantada! Optei por Património pois apetecia-me abrir horizontes. Na altura nem comentava com os meus colegas que tocava mas foram descobrindo e lá comecei a tocar imenso outra vez… Entretanto conheci a Associação Pé de Xumbo, que organiza o Festival Andanças, e comecei a colaborar com eles.

E continua a estudar…

Fiz a primeira pós-graduação em Música Popular no nosso país na Universidade Nova de Lisboa. Agora vou concluir o Mestrado em Etnomusicologia, sobre o movimento folk em Portugal, e prosseguir para o Doutoramento. E fui convidada para trabalhar como investigadora no Instituto de Etnomusicologia, no projeto de salvaguarda do Cante Alentejano, que decorre do reconhecimento como Património Mundial. Agora, por exemplo, estamos a fazer um arquivo digital do Cante. Estou super feliz por estar envolvida.

Voltando à carreira musical, o grande salto aconteceu em 2000, quando começou a tocar com o Rodrigo Leão.

Exato. Era um músico que admirava muito e, um dia, ligou-me para ir fazer um concerto no CCB! A partir daí correu tudo muito bem, continuei a tocar com ele e é uma colaboração que se manterá, somos muito amigos, já somos família.

E tem colaborado com muitos outros artistas…

Tenho tido a felicidade de estar envolvida em muitos projetos e colaborado com muitos artistas, tantos que seria impossível nomeá-los a todos aqui! Além do Rodrigo destaco os Homens da Luta, Uxu Kalhus e Mayra Andrade, só para realçar alguns dos mais marcantes. Nesta fase estou muito concentrada no meu trabalho em nome próprio mas tenho muitas parcerias a acontecerem. Para já, a mais visível dos últimos dois anos, os Tais Quais, juntamente com o Vitorino, Tim, João Gil, Jorge Palma, Sebastião Santos, Paulo Ribeiro e Jorge Serafim. Estou a preparar um espetáculo de Dança Contemporânea em parceira com a coreógrafa e bailarina Rita Vilhena, que irá estrear no próximo ano. Depois vou sendo sempre convidada a participar em novas edições. A próxima será o novo disco a solo de João Gil.

É acordeonista, cantora e compositora. Identifica-se especialmente com alguma destas facetas?

Sou acordeonista desde que me lembro de ser gente, o cantar veio no final da adolescência e o compor já em adulta. Neste momento, essas três facetas fazem parte do meu retrato, sem qualquer uma delas ficaria desequilibrado.

Paralelamente, tem vindo a divulgar o património musical alentejano em tertúlias na Casa do Alentejo. Quando recomeçam?

Uma das atividades que mais ânimo me tem dado fazer nos últimos anos têm sido, sem dúvida, as tertúlias de Cante Alentejano. Infelizmente não tenho ainda previsão para retomar mas tenho feito várias atividades da mesma natureza em Portugal e em Espanha, nos mais diversos contextos, sempre com um grande entusiasmo dos participantes. E da minha parte também! Cantar em grupo fortalece a nossa consciência social e continuo a achar que esta é, para além de uma atividade muito libertadora, uma das formas mais eficazes de divulgar o património imaterial do Alentejo. São encontros em que cada um é convidado a aprender e a experimentar cantar “à alentejana” em grupo, só pelo interesse ou pelo gosto de conhecer melhor esta cultura musical do sul.

Consegue conciliar todos os projetos?

Como me ficaria mesmo muito mal dizer que não, digamos que me empenho sempre muito para que tudo corra bem… Estou a brincar! Na verdade, acabo sempre por sentir que tudo se interliga e fortalece entre si. Como em qualquer profissão, há projetos que acabam por ter mais sucesso ou longevidade que outros, mas aceito e levo com muito espírito de aproveitar o que fica ou deixar ir o que tem que ir.

Tem tempos livres? Quando é que consegue fazer tricô, outro dos seus interesses?

Confesso que nesta fase ter tempo livre é um desafio porque não tenho horários fixos e também porque tenho muitos projetos profissionais em mão. A verdade é que o meu trabalho também facilmente se poderá confudir com as minhas maiores paixões e interesses! Mas o tricô, por exemplo, que só faço no inverno, é algo que levo comigo para todo o lado e aproveito para fazer quando estou em viagem, ou a conversar com amigos, que é de resto o meu passatempo preferido!

Quem diria que, em tempos, referiu que era um bocadinho preguiçosa…

A sério? Não me lembro disso! Quanto mais me sinto responsável pela minha própria felicidade menos espaço a preguiça tem na minha vida! Tenho na realidade uma vida muito intensa e não costumo aplicar o conceito de férias ou sequer de fim de semana para descansar, estou sempre a trabalhar ou então cheia de energia para fazer num só dia as mil e uma coisas de “lazer” que deveriam ser divididas em 30 dias de férias num ano…

Também faz pilates, ioga e caminhadas.

Muito menos vezes do que gostaria. Infelizmente não faço pilates há cerca de um ano e estou cheia de saudades. Fazia-o num estúdio muito completo, com todos os aparelhos e uma professora excelente, fisioterapeuta, fez-me muito bem. Quanto ao ioga, apesar de ao longo dos anos ter sido uma praticante muito inconstante, tem sido uma bênção. Encontrei este ano uma mestre que me traz muita paz e vou conseguindo, entre digressões, fazer duas aulas por semana a meio do dia de trabalho, o que se tem revelado perfeito. Quanto às caminhadas, devem ser o “exercício original” porque o meu corpo reage de forma incrível, fica muito feliz! Gosto muito de andar, tenho fases mais entusiastas que outras, enfim, tento manter o espírito de caminhante sempre aceso no quotidiano e em qualquer lugar onde esteja!

E dieta, faz? Consta que é gulosa e grande apreciadora da gastronomia nacional.

Dieta é aquela coisa… Sou gulosa, sim! E muito interessada na gastronomia nacional, sobretudo na doçaria. Este ano a minha alimentação mudou bastante: em julho deixei de comer carne, comecei a comer mais vegetais e a ter muito mais cuidado com a ingestão de açúcares. O objetivo não era perder peso mas foi um dos efeitos da mudança, aos poucos e poucos já “foram” mais de 15 kg. Nem sempre é fácil, a distração pode vir em forma de bombom, de pastel ou até de rissol, mas é essencial fazê-lo. Mas odeio que me pressionem e me perguntem “E a dieta?”! É um trabalho muito pessoal.

Como é a sua relação com o corpo?

É boa, positiva. Gosto muito de mim. Do meu corpo, sim. Adoro ter duas pernas, dois braços, cinco dedos em cada mão, tudo a funcionar! Adoro a minha pele, o meu cabelo, até as minhas estrias: são minhas! Aceito que não existe perfeição. Acho-me bonita, uma mistura do meu pai e da minha mãe, um caldo genético de loiros e morenos, cara do sul, as minhas rugas já começam a ter histórias para contar, os meus olhos também, acho que sou vaidosa. Acredito que a sensualidade tem mais a ver com confiança e autoestima do que qualquer outra coisa. Aliás, tenho a certeza.

Alguma vez se sentiu estigmatizada por não corresponder aos padrões estéticos atuais?

Não sou vítima. E também não ando à “luta” comigo mesma, não caio nessa esparrela. Em geral, não me sinto nada estigmatizada, pelo contrário, mas sigo nas redes sociais outros artistas com excesso de peso e vejo como são alvos fáceis de um ódio cobarde: aquele que se esconde atrás de um ecrã. Gostaria muito que a imprensa e o público que comenta se lembrassem que, do outro lado, está um ser humano como eles. Gostava que chegassem a essa conclusão depressa, antes que me acontecesse um episódio desse género…

Alguns músicos classificam-na como carismática. Qual é o seu fascínio?

Só espero que carismática não seja outra forma de me chamar espalhafatosa ou, pior, mau feitio! Talvez a minha entrega no momento tenha algo a ver com esse “fascínio”… Não sei. Só sei que não sei fazer as coisas pela metade.

Mau feito? Parece sempre bem disposta.

Costumo andar bem disposta, gosto muito de rir, de converseta, de humor, de fazer piadas, de sorrisos. O resto… sou um bocado mandona mas só porque quando me entusiasmo levo tudo à frente! E não me importo de liderar. Rezingona só quando estou muito cansada… ou com fome! Não há muito quem se queixe, acho que me safo!

Também se comenta a sua generosidade: mesmo quando está cansada continua a tocar enquanto houver gente a querer dançar.

É um prazer tocar para quem dança. Eu dou da minha energia mas também recebo em troca, em forma de sorrisos de gratidão, portanto é generosidade de parte a parte! Se a festa estiver boa, se o público quiser dançar mais, se eu ainda tiver braços… siga a rusga! Esses são os meus bens, quanto mais dou mais tenho!

No último Andanças, enquanto o fogo consumia centenas de automóveis, pôs-se a tocar…

Era o mínimo que poderia fazer por todas aquelas pessoas. Tal como todos os participantes, fui no grande “êxodo” da evacuação, na fuga ao incêndio. Passámos toda a tarde sem saber o que iríamos encontrar ao regresso. Embora não me apetecesse, porque estava cheia de medo, toquei, senti que se tocasse poderia ajudar a acalmar as pessoas à minha volta. Chorava e tocava, as duas coisas ao mesmo tempo. Quando regressámos ficamos mudos: quase 450 carros ardidos, a maioria de artistas e voluntários. Percebi logo que o meu estava a salvo, estrategicamente muito mal estacionado num sítio onde não devia estar, porque se estivesse no sítio certo teria ardido, de certeza, mas a maioria dos meus amigos ficou sem carro. Não tinha palavras que chegassem para os consolar. Só mesmo tocando…

Acabou de lançar o seu terceiro disco, Sol. O que é que representa para si?

Este disco representa uma certeza: eu não sou daquelas que se fica só pelo segundo disco! Será sempre assim… O quarto será a certeza de que o terceiro não foi o último! Para além deste eterno desafio a mim própria, sinto que com este disco esta “aldeia” – ou seja, o grupo incrível de gente que o fez comigo – ajudou-me a alcançar um trabalho muito mais maduro que nos discos anteriores.

Deu oportunidade a uma jovem de 14 anos de fazer o vídeo de “Assim Sou Eu”, tema de apresentação do disco.

Foi, de facto, feito pela Alice do Carmo Afonso, numa técnica mista de vídeo e stopmotion. É filha da minha amiga e grande fotógrafa de música Rita Carmo e aceitou sem pestanejar o desafio de fazer um videoclip para esta música. Demos-lhe toda a liberdade criativa que ela precisava e não poderia ter ficado mais feliz com o resultado! Se dei oportunidade? Depende do ponto de vista… A meu ver a Alice é que me deu uma grande oportunidade… uma enorme!

Viaja bastante e, quando viu as favelas do Rio de Janeiro, escreveu um texto em que se assumia como ativista contra a descriminação social. Que causas a preocupam?

São muitas mas sem dúvida que a descriminação social continua a mexer comigo. Passarem um atestado de marginalidade a todo um bairro social é inaceitável. Mas é o que os municípios muitas vezes fazem ao não cuidarem dele, ao não limparem o lixo público como fazem em qualquer outro bairro mais privilegiado da cidade. Não te darem um emprego com base na tua morada é uma coisa que simplesmente não aceito. E sei de casos em que isso acontece. Em Portugal! A pobreza invisível é também algo que me preocupa muito, porque são a fome e o frio mais difíceis de combater. Famílias que escondem a sua pobreza, por vergonha ou incapacidade, que não conseguem pedir auxílio, e ninguém lhes consegue dar a mão…

Como vê o papel das mulheres hoje em dia? É feminista?

Serei feminista enquanto houver misoginia. Como, infelizmente, não me parece que esta esteja em vias de extinção, parece-me que não vai dar para baixar os braços. Olho de forma muito amarga para os papéis que as mulheres do mundo ocidental andam a querer representar. Estou pelos cabelos com a conversa da “supermulher” apregoada nas capas das revistas, que é mega bem sucedida na carreira, vai ao ginásio, lê Proust, recolhe os filhos na escola, chega à sua casa mega linda e bem decorada e ainda cozinha pratos elaborados e a seguir vai à ópera. Tenho a certeza que quem anda a escrever isso são homens. Ou solteironas amarguradas, ricas e muito sádicas. Não caiam nessa meninas!

Nos Tais Quais, por exemplo, é a única mulher. Como é tocar só com homens?

Estou habituada, foram anos a trabalhar só com homens, é o mais comum. Agora tenho uma banda só com mulheres. Foi um desafio que me foi feito pela Câmara de Almada para o Dia Mundial da Mulher e correu super bem. Gostei muito do ambiente, da energia que foi criada.

Há descriminação no mundo da música?

Se senti alguma foi maioritariamente positiva porque sempre trabalhei num meio de homens, muitos deles com tendência para serem cavalheiros. No entanto, recentemente reparei que nunca vi nenhum faltar a nada por causa de um filho estar doente mas já vi uma mulher música ter de o fazer, neste caso uma mulher música casada com outro músico… e isto diz tudo.

Disse que Acredito, com letra da sua autoria e que será o segundo single, é um tema autobiográfico. “Acredito nas façanhas, muito menos nas patranhas de quem faz só porque sim”. Faz tudo com convicção?

Não sei como é não fazer dessa forma. Tenho que acreditar no que faço. E entrego-me, todos os dias, com emoção e entusiasmo a isso, ainda mais se estiver em palco.

“Acredito na minha mãe, ela que sofreu bem para que eu fosse como sou”. O que é para si a família?

É o ponto de partida do que sou e é o ponto de chegada para onde caminho, todos os dias.