“As Boas Mães”: As mulheres que ousaram enfrentar a máfia italiana

Esta é a história de uma organização criminosa que controla 70% do tráfico de cocaína e heroína na Europa, que gere redes de extorsão, que distribui armas ilegais e que rouba fundos do Estado italiano e da União Europeia. Mas esta é acima de tudo a longa aventura de Alessandra Cerreti, a procuradora italiana que acreditou ser possível recrutar mulheres maltratadas pela máfia calabresa para ajudar a derrubar a ‘Ndrangheta’, com os seus códigos de silêncio e cultura misógina. É também a sina de Lea Garofalo e de uma série de outros rostos femininos do combate, ali nascidos e criados, que não sobreviveram à denúncia. “As Boas Mães” deram um livro, escrito por um jornalista inglês, Alex Terry, que passou por Lisboa para falar sobre esta obra com selo da Vogais.

Autor e argumentista, Alex Perry vive em New Hampshire, Inglaterra. Durante 15 anos assinou uma série de reportagens para revistas como a Time e Newsweek, fruto da sua passagem por continentes como Ásia e África, investigando conflitos e casos de corrupção e crime

O que mais o surpreendeu ao escrever esta não-ficção?

Passei duas décadas a cobrir histórias por todo o mundo e nunca tinha ouvido falar da ‘Ndrangheta. Conheci a dimensão e alcance de uma organização como esta. Espero que ao lerem o livro as pessoas possam olhar para a sua vida de outra forma. Desde que acabei de escrever isto, debrucei-me mais sobre o crime organizado no Reino Unido e cada vez mais vejo que este tem uma presença enorme nas nossas vidas, sem que o reparemos.

Os episódios que relata são também eles assustadoramente recentes, com homicídios e denúncias que têm meia dúzia de anos.
Claro. Andamos distraídos por uma bomba de um terrorista que mata aqui ou ali, ou por uma crise financeira, ou por um presidente americano de meter medo. Tudo coisas dramáticas. Mas se alguém protagoniza algo que não é dramático, não damos por isso. Surpreendeu-me o poder da ‘Ndrangheta, sobretudo a forma como chantageou países inteiros, e há provas disso. Quando se chega a este ponto e percebemos como funciona o mundo….Quando circulamos por bairros como Chelsea e Mayfair, em Londres, e percebemos que ninguém vive naqueles apartamentos luxuosos porque são apenas investimentos – tal como acontece em Lisboa – passamos a olhar para o mundo de maneira diferente.

Em que pé está a ‘Ndrangheta atualmente?
O legado das mulheres é enorme. Expuseram a existência da organização ao mundo. O estado italiano sabia que ela existia mas não sabia muito para além disso. Quantos clãs, quem matou quem, quantos negócios…De repente, países como a Alemanha perceberam que também tinham problemas enormes com a ‘Ndrangheta, como se viu em janeiro deste ano. Na Holanda, em Espanha, ou mesmo em Portugal, também têm impacto no tráfico de cocaína que vem do Brasil ou da Guiné-Bissau. O clã Pesce desapareceu, e a investigação de Alessandra motivou um grande rombo financeiro para a organização. Mas nunca há um sentimento de triunfo entre os procuradores, como se percebe no final do livro. Há sempre uma nota de pessimismo. Nunca sentem que podem ganhar se continuarmos a por o dinheiro acima dos princípios. Isto aponta para a cultura anglo-saxónica de fazer negócios. Concluí que se se for um bom criminoso, se lavar bem o seu dinheiro, será recompensado. Basta andar por Londres à noite para ver tipos a deixarem um saco com 50 mil libras num bar. É óbvio que falamos de gangsters que conduzem carros com matrículas douradas!

“As Boas Mães”, de Alex Perry, Vogais, setembro 2018, €21,98

O crime moderno vale-se de um misto de óbvio e sofisticação?
Os instrumentos financeiros nos últimos 30 anos tornaram-se muito sofisticados. É muito difícil seguir o dinheiro. Mas o verdadeiro problema é que mesmo que todo um país esteja a investigar dinheiro sujo, o país do lado está a colher dinheiro sujo. Estamos a falar de um mecanismo para tornar o dinheiro anónimo. Basta um país no mundo estar disponível para receber isso para tudo falhar. E vai sempre haver esse país.

É curioso imaginar o processo de modernização da máfia, neste caso particular da calabresa. Pensamos no velho rural, nos métodos iminentemente físicos, no poder ancestral de uma instituição como a família…
É muito interessante. A ‘Ndrangheta é muito esquizofrénica. Temos o velhote no seu campo de limões, com 83 anos, e que nem telefone tem, mas o seu filho formou-se em Harvard e trabalha num banco de investimentos em Londres, com um óptimo ordenado. A organização vive destes dois mundos. A questão é: se são sofisticados por que haveriam de continuar a traficar cocaína, algo tão arriscado? A resposta é que este negócio é demasiado lucrativo. Se o abandonarem, alguém vem e toma conta dele. Na verdade nunca podem deixar de ser criminosos. Se és um profissional do crime pensas muito na segurança. Estás sempre à espera que te batam à porta e te prendam. Nunca podes relaxar, constróis bunkers como eles fazem. Tornas-te paranoico.

É quase uma maldição.
Sim, é como uma maldição. Não há alternativa. Há um desejo infame de fama local, de precisar que toda a gente na minha rua saiba que sou eu que mando, que exijo respeito. Isto existe num mundo em que o teu universo é a tua aldeia, com 400 pessoas, e aí podes ser o número um. Não sei como isso pode funcionar na era na internet, mas é de facto notável que persista ainda hoje.

Como combinam a frieza que os negócios exigem com o lado passional? Mata-se porque se é traído.
Sim, mas vê como Carlo calcula tudo para matar a mulher. Tecnicamente é um crime terrível, ele tenta várias abordagens, finge que se está a apaixonar de novo para se aproximar dela. No final ambos têm sentimentos um pelo outro mas acaba por encomendar a morte dela. Ele sublima as suas emoções por este código de vida. É um sacrifício.

Mesmo depois das denúncias de mulheres como Lea Garofalo, que acaba assassinada, Itália tem real noção deste universo?
O que estas mulheres fizeram abriu os olhos de toda a gente. O sistema judicial italiano tem total noção disto, tal como a imprensa.

Que acusa medo?
Um pouco, claro. Os políticos também estão a par. Mas muitos italianos que conheci não fazem ideia de nada disto. Ou então pensa-se que a máfia é um problema exclusivo do sul da Itália. Nos últimos cinco anos, os do norte perceberam que esta e as outras máfias [a Cosa Nostra siciliana e a Camorra napolitana) têm muito mais presença no norte que no sul. É aí que está o dinheiro. Ao mesmo tempo há quem diga que a máfia é coisa de filmes. Fora de Itália ainda há muito a fazer.

“Devíamos estar todos a ler Virginia Woolf e a importar-nos a sério com o feminismo. Porque no limite a misoginia resulta em crime, como mostra a história”

As suas mulheres são tão desprezadas quanto temidas?
Se basear este sistema todo no segredo familiar, muita desta dinâmica envolve misoginia, sim. Uma mulher independente representa uma ameaça à existência da organização. Se for esperto, moderniza-se, liberta-se do sexismo, promove umas quantas mulheres, algo que está a acontecer. Algumas mulheres já foram presas. Penso que as mulheres inteligentes são a chave para desmontar o crime organizado como este. Muito do crime organizado é dominado pelos homens, que tratam mal as mulheres, e subestimam o seu papel. São um troféu e um objeto decorativo. Vivemos um tempo interessante, com esta onda de feminismo e MeToo. Para ser sincero, quando duas atrizes de Hollywood andam à bulha porque uma delas não é suficientemente feminista, estou-me a borrifar. São duas privilegiadas que não têm relevância nenhuma para esta discussão. Devíamos estar todos a ler Virginia Woolf e a importar-nos a sério com o feminismo. Porque no limite a misoginia resulta em crime, como mostra a história.

Fez a diferença neste caso ter uma procuradora mulher como Alessandra?
Acho que é vital, é o coração desta história. É uma daquelas mulheres sem a qual nada disto teria acontecido. Estive com ela nove horas e no final planeámos outra entrevista mas tivemos que cortar contacto – ela vendeu os direitos da história dela a Hollywood.

Sério?
Sim! E não podia falar mais. Mas compreendo. Acho que vão fazer uma série. Não me surpreende nada, a personagem dela é incrível. Ela é a mulher que todas as outras tentam ser. Está no centro da sociedade italiana, a abanar o sistema e o Estado.

Com um papel igualmente difícil num universo de homens?
Muito duro, sim. Já a conheci com 39 anos e não conheço todas as suas batalhas mas vi-a a arrasar um agente mais novo com uma grande classe, com uma fúria controlada (risos). É uma voz de contacto.

Quem poderia fazer dela em Hollywood?
Acho que todos pensam em Tilda Swinton. É extraordinária. São todas mulheres incríveis a combater o crime organizado de diferentes formas, a começar pela denúncia. Alexandra disse-me que não quis ter filhos porque isso a enfraqueceria. Todos vimos isso como um preço a pagar mas hoje percebo que foi uma decisão racional e algo positivo na sua vida. Ela quis esta carreira, desde os oito anos.

“Penso que as mulheres inteligentes são a chave para desmontar o crime organizado como este. Muito do crime organizado é dominado pelos homens, que tratam mal as mulheres, e subestimam o seu papel.”

Esta forma de organização parece assentar como uma luva a Itália, por uma série de razões culturais. Imagina-a fora do país?
Aprende-se muito num programa sobre assuntos correntes na televisão italiana. Tens quatro homens à volta de uma mesa com uma mulher com quatro quilos de base a mediar. Cada um fala dez minutos e o papel dela é sorrir. Ela é uma facilitadora do saber masculino. Penso que a Itália tem muito a caminhar em matéria de sexismo.

Mulheres como Lea, mortas às mãos da máfia, não se assumem mais por medo ou conformação com os códigos de conduta?
Há de tudo, no livro também temos mães indefetíveis da máfia e dos seus valores. É geracional. A internet tem muito a ver com isto. Outras mulheres têm aparecido depois delas. Mas lá está, a organização readapta-se e continua.

Há mais oportunidade ou ameaça para um grupo destes numa era marcada pelas redes sociais e pela decadência do sigilo?
O segredo do sucesso… era o segredo. Bom, se alguém passa a vida no Twitter como o Donald Trump não pode ser um grande criminoso, vendo por aí pode ser um consolo (risos). Um dos ambientes da máfia é a confusão e a desconfiança. As redes sociais são um contexto perfeito para eles; adoram fake news. Assim podem operar à vontade e passar por defensores dos pobres e oprimidos. Passei três anos de volta deste livro e penso que percebi pelo menos que há um problema em Itália, falta-lhe base factual. Em 1971 houve um ataque à bomba em Roma, ativistas de esquerda e direita foram presos, e até hoje persiste a incerteza sobre quem foi. Há muitos aspetos baseados na dúvida. Parece que tudo é baseado em opinião e território disputável. Claro que até a máfia pode dizer “somos vossos amigos”. No final, reduz a liberdade dos cidadãos.

Perguntam-lhe muitas vezes porque não foi um italiano a escrever o livro?
Tenho a certeza que Alessandra pensou muito nisso (risos). Não faremos uma edição italiana, penso que o país terá zero interesse num livro escrito por um inglês. Sinceramente, acho que há um preconceito. Fui correspondente vários anos e senti-o em outras ocasiões, é normal. Em minha defesa, posso falar da vantagem do distanciamento e do facto de a minha profissão ser contar histórias, não interessa de onde são. É isso que faço.

Tem medo das reações?
Bom, isso também pesou na decisão de não editar o livro em Itália, honestamente. Perguntei a procuradores se me devia preocupar e pelo menos dois disseram-me que se eu vivo no Reino Unido estou safo, porque eles lavam tanto dinheiro lá que não querem atrair atenções (risos). Tive uns casos em que percebi que algumas pessoas com quem estava a falar trabalhavam para a máfia. Fui à terra de Lea Garofalo e fizeram-me uma pequena emboscada, por exemplo. A irmã queria dar-me uma entrevista sem eu a ter pedido (risos). Enfim, sou jornalista, ossos do ofício.

Que memória de Lea persiste?
Tornou-se um ícone em Itália. Um rosto anti-máfia sempre que há uma manifestação contra estas organizações. Tornou-se também um emblema feminista, vimos a cara dela em diferentes cidades, a ressoar pelo país. Acho que os italianos se encarregaram de que será lembrada, dos nomes de ruas a memoriais.

Têm noção de que o seu Estado falhou na proteção?
Têm, e penso que a proteção do Estado tem tentado melhorar. Eles pediram-lhe para arriscar a vida e depois retiraram-na do programa. É uma traição.

A filha continua sob esse programa?
Sim, e pelo sei tem estado bem melhor. Parece equilibrada, algo que Lea não era. Está a completar os estudos e há esperança de que tenha uma vida melhor do que a que tinha.

O clube italiano que não admite mulheres nas primeiras dez filas do estádio