‘As Enviadas Especiais’: Hemingway  roubou reportagem à mulher, mas Martha é que brilhou

GELLHORN
Jornalista e repórter de guerra Martha Gellhorn [Fotografia: AP Photo/HO/Arquivo Global Imagens]

Ser mulher e repórter na frente de guerra foi, em si mesmo, uma longa batalha pela igualdade de condições que teve de ser travada pelas próprias e contra ‘inimigos’ que também estavam lado a lado.

Na véspera de se assinalar um ano sobre a guerra na Ucrânia, após invasão russa, a editora Casa das Letras (20,61€) traz para o presente as histórias de seis mulheres que trouxeram o olhar sobre a Segunda Guerra Mundial e a luta que elas próprias travaram para fazer frente, contornar as circunstâncias e limitações que lhes foram impostas para conseguirem entrar em iguais condições nos teatros de guerra.

Em As Enviadas Especiais, da autora britânica Judith Mackrell, chegam histórias e reportagens da Segunda Guerra Mundial contadas por Clare Hollingworth, autora do ‘furo do século’ e depois de noticiar em primeira mão o início da guerra na fronteira da Alemanha com a Polónia e de Lee Miller, uma modelo da Vogue que se tornou correspondente de guerra, tendo chegado a conhecer o apartamento de Hitler em Munique após a derrota germânica.

 

Uma obra que traz o percurso de Sigrid Schultz, uma judia que escondeu as suas origens para fazer reportagens na Alemanha e denunciar ao mundo os planos do III Reich, e de Virginia Cowles, que trocou o jornalismo cor-de-rosa pelos campos de batalha da Guerra Civil de Espanha e da catástrofe ainda maior que se seguiu. Também Helen Kirkpatrick faz parte do leque de As Enviadas Especiais bem como os seus relatos dos bombardeamentos de Londres, na invasão de Itália e na libertação de Paris, tendo sido a primeira repórter a conseguir os mesmos direitos que os homens numa zona de combate controlada pelos Aliados.

O livro não poderia deixar escapar uma das mais importantes vozes femininas da reportagem de guerra e deste tempo negro em particular: a de Martha Gellhorn, que viu a sua acreditação ser roubada pelo então marido, o Nobel da Literatura Ernest Hemingway.

Martha Gellhorn [Fotografia: Divulgação/As Enviadas Especiais]

Impedida de poder reportar a guerra pelo escritor e companheiro, a jornalista embarcou clandestinamente num navio‑hospital, em junho de 1944, e esteve a recolher feridos de guerra durante o desembarque na Normandia, tendo sido também uma das primeiras jornalistas mundiais a entrar num campo de extermínio nazi. Recorde-se que Marta Gellhorn, uma das maiores repórteres de guerra de sempre, nasceu em 1908 e foi uma das vozes que reportou conflitos como a Guerra Civil Espanhola, em 1936-39, até à invasão do Panamá pelos EUA em 1989. Morreu em 1998,

Em antecipação, leia a pré-publicação do excerto da obra As Enviadas Especiais e no qual é relatado este processo de Marta Gelhorn com o então marido, Hemingway, e importância do que testemunhou como enfermeira da Cruz Vermelha infiltrada.

“Martha regressara a Londres totalmente preparada para a Operação Overlord e ficara horrorizada por saber que teria de ser mantida em quarentena com «uma boa percentagem da imprensa mundial». Telefonou a Helen com a sugestão amigável de que se encontrassem, quase de certeza com o objetivo de obter alguma imformação. Helen, no entanto, não pôde ajudá-la e, a 6 de junho, Martha teve de aguardar na sala das conferências de imprensa, onde ia recebendo as informações a conta-gotas, como todos os outros. Ao fim do dia já tinha perdido a paciência e, embora soubesse que corria o risco de perder a acreditação e ir a conselho de guerra, estava resolvida a arranjar maneira de chegar a França.
Inicialmente não tinha qualquer plano em mente, mas com a ajuda do uniforme conseguiu arranjar boleia para um dos portos de Inglaterra (nunca chegou a dizer qual) e, uma vez lá, a persuadir o polícia militar de guarda de que tinha autorização para entrevistar uma das enfermeiras americanas antes de embarcar. O polícia acompanhou-a e, fazendo um esforço para parecer que vinha ali com um plano concreto, Martha dirigiu-se a um navio de grandes dimensões ali ancorado e com uma cruz vermelha claramente pintada no casco. Subiu a bordo, sem saber bem o que fazia, procurou uma casa de banho desocupada que dava para um dos corredores e fechou-se à espera.
Na altura não percebera a que ponto tivera sorte por chegar tão longe. Havia um grande nervosismo nas docas quanto à imposição das restrições aos jornalistas. No dia seguinte, quando Ruth Cowan foi enviada pela Associated Press para cobrir o regresso a casa dos primeiros homens feridos, foi abordada por um oficial muito nervoso que lhe anunciou que se tentasse falar com algum deles levaria um tiro. Seja como for, mesmo que tivesse percebido os riscos que corria, não estava inclinada à prudência. Estava completamente enfurecida – contra os burocratas militares que insistiam em tratar as mulheres como leprosos, mas também contra Ernest, que concordara finalmente regressar ao jornalismo de guerra, mas, num ato de pura malevolência, o fizera roubando a Martha o seu emprego na Collier’s. Quando regressara a Cuba em março, Martha tentara acreditar que os dois ainda encontrariam uma maneira de salvar o casamento. Tinha consciência de que nenhum deles estava inteiramente inocente, nem era inteiramente culpado, no meio das discussões sobre o que ele tratava com desprezo como a sua «maluquice da guerra». Ernest conseguia ser monstruoso – agressivo e egocêntrico –, mas Martha aceitava que era igualmente implacável, um «pequeno espaço vazio» de independência e egoísmo, que tinha de manter livre sob pena de morrer. Voltara-se contra Bertrand quando ele se introduzira nesse espaço e nesse momento estava a fazer o mesmo com Ernest. O que não percebeu, todavia, foi que a sua longa ausência na Europa fora para além de um certo limiar. Ernest amara Martha com um amor ávido e inteiro, mas quando se sentiu traído por ela foi capaz de recuar para dentro de si mesmo e de a punir da forma mais cruel possível. Depois de duas semanas de discussões e longos silêncios, anunciou de repente que afinal também ia para a Europa. E com uma maldade que deixou Martha incrédula, comunicou-lhe que não iria como seu companheiro mas como seu substituto – como o novo correspondente especial da Collier’s para a invasão aliada.
O mundo de Martha caiu. Havia apenas um mês a revista celebrara-a como a sua grande repórter mulher. Ainda lhe custava acreditar que Charles Colebaugh a tivesse abandonado para a substituir tão prontamente pela sonoridade do nome de Hemingway. Para sermos justos com Colebaugh, é possível que ele tivesse previsto que o novo protocolo do SHAEF restringisse os movimentos de Martha, e que o melhor era investir o seu orçamento num homem. No entanto, decidira sacrificá-la e, desamparada e solitária, Martha escreveu a Eleanor Roosevelt: «Fiquei sem aquilo que mais me interessava, para observar ou escrever, em todo o mundo e talvez na minha vida. Fui uma palerma em ter regressado da Europa, e sabia.»
Ainda assim, Martha recusou deixar-se bater. No início de maio, quando Ernest se preparava para apanhar um voo da RAF para França (um voo que ela própria negociara), começou a pressionar a revista para a deixar trabalhar como freelancer. Teria de financiar e organizar a sua própria viagem, mas com a ajuda de Allen Grover conseguiu arranjar um beliche num cargueiro norueguês que transportava equipamento militar para Liverpool. A viagem foi longa – vinte dias – e ao princípio Martha nem percebeu como poderia suportá-la. O Atlântico parecia coberto de nevoeiro e, sem mais passageiros a bordo, não lhe restava grande ocupação além de refletir nas ruínas do seu casamento. Tinha desejo de acreditar que Ernest era um homem bom – um grande homem até – e de que os dois estavam simplesmente errados um para o outro. Ainda assim, bastava-lhe pensar nele para se sentir assustada e não havia nada que desejasse tanto como pôr fim ao casamento e ver-se livre do apelido «Hemingway».
Com a passagem dos dias, no entanto, o peso do fracasso, da humilhação e da tristeza começou a desaparecer. Sentiu que a sua mente voltava a funcionar, que as ideias para novas histórias estavam a começar a formar-se e, quando o perfil de Liverpool apareceu no horizonte, sentiu-se surpreendida por um momento de «felicidade selvagem». Voltara à guerra, voltara ao seu próprio combate, e pela primeira vez em muitos anos teve a impressão de pertencer de novo a si mesma – «livre de respirar, viver, olhar o mundo e vê-lo como ele é». Sentia-se tão determinada a aproveitar a independência que quis confrontar Ernest assim que chegasse a Londres e insistir na dor rápida e violenta de um divórcio. Ele, no entanto, ficara ferido num acidente de carro por conduzir embriagado e, quando foi visitá-lo ao hospital, encontrou-o no meio de um grupo de amigos desordeiros. Esse mesmo bando manteve-se à sua volta mesmo depois de ele ter alta e, sabendo que Ernest andava a contar histórias vingativas a seu respeito, preferiu retirar-se e concentrar-se no seu trabalho e na guerra.
No entanto, não pôde deixar de pensar em Ernest quando, no dia 6 de junho, foi acordada ao nascer do dia por «um bando gigantesco de bombardeiros». «Agora estou a ficar assustada. Preocupada com E.», garatujou no diário. Tentou imaginar o que ele estaria a sentir no barco a caminho da Normandia, num dos navios de assalto dos Aliados. A sua ansiedade, todavia, transformou-se em raiva quando recordou a maneira como ele conseguira aquele lugar nesse navio e a raiva ajudou-a a ganhar coragem para se pôr a caminho das docas e embarcar no navio-hospital.
Quando se fechou na casa de banho, contudo, ainda tinha muitas horas de espera e ansiedade até que um gemido poderoso de metal lhe fez perceber que o navio levantara âncora e estava a caminho do mar alto. Agachada no seu esconderijo, Martha estava à espera de ouvir a qualquer momento o puxador metálico a rodar ou um grito ameaçador. No entanto, a sua presença não foi detetada e, quando por fim se atreveu a sair da casa de banho, o seu uniforme pareceu impedir quaisquer perguntas indiscretas. Teve sorte por o navio em que decidira embarcar ser tripulado por homens da marinha mercante – e não pela marinha dos Estados Unidos –, que a deixaram em paz e lhe permitiram passar o resto da viagem no convés a beber whisky e a tentar adivinhar o que se ocultava no meio da escuridão.
Quando o dia nasceu sobre Omaha Red, o sector americano de Omaha Beach, a cena com que se deparou revelou-se diferente de tudo o que imaginara. «Foi o maior engarrafamento naval da história», escreveu sobre o assunto, «tão gigantesco, tão espantoso, que mais parecia um ato da natureza do que alguma coisa que pudesse ser feita pelo homem.» Os navios estendiam-
-se a perder de vista – embarcações de assalto a deixar homens e máquinas na praia, navios-hospitais a embarcar feridos, navios de guerra a disparar projéteis contra a defesa inimiga – e durante alguns momentos Martha limitou-se a olhar de boca aberta, fascinada com a imensidão da cena.
A escala da armada aliada surpreendera da mesma maneira os alemães quando acordaram no dia 6 de junho perante uma muralha gigantesca de navios que saíam da bruma marítima. Embora tivessem sido avisados quanto à possibilidade de um ataque, nunca haviam imaginado nada tão colossal, e a sua primeira resposta fora de pânico. Contudo, quando os primeiros soldados aliados saltaram dos navios de assalto e começaram a patinhar com a sua pesada carga de equipamento, os alemães ficaram incrédulos por ter de defrontar alvos tão fáceis. «Cheguei a ter pena por eles», recordaria um artilheiro. «Continuavam a desembarcar […] e nós disparávamos sobre eles […] O meu
companheiro abanava a cabeça e dizia que os americanos não deviam estar a sacrificar os seus homens daquela maneira.» Na altura em que Martha chegou a Omaha Red, na manhã seguinte, a costa era um matadouro. Depois de ter deixado de olhar boquiaberta para o tamanho da armada, começou a ver que a água à sua volta estava manchada de óleo, lama e sangue, e à superfície flutuavam os mortos – ensopados e irreconhecíveis,
«como sacas acinzentadas e inchadas».
Mas eram os vivos que exigiam a atenção de Martha. Durante as últimas vinte e quatro horas, os americanos tinham dominado uma faixa pequena mas crítica da praia e os feridos estavam ali deitados na areia à espera de ser tratados e levados. O navio de Martha lançou ao mar alguns pequenos barcos que podiam chegar à costa para ir a terra recolhê-los e quando as equipas de socorro do navio entraram em ação juntou-se a elas e começou a fazer sanduíches de carne para os que podiam comer e a servir de intérprete aos não americanos – alguns deles franceses, outros alemães capturados.
Quando a noite caiu, Martha foi autorizada a ir a terra para recolher mais homens. Embora os combates se tivessem deslocado para lá das falésias, o ruído na praia era assombroso – metal contra metal, um staccato de tiros contínuos e gritos angustiados de dor. Sempre que uma bomba explodia, Martha via os destroços de camiões e tanques iluminados por uma luz sinistra, e, surpreendentemente, mesmo no meio daquele inferno conseguiu cheirar algures a doçura da erva. Durante essa longa noite, ela e os companheiros deixaram para trás o cansaço e foram localizando os feridos, que depois transportavam nas macas até aos barcos e daí para o navio-hospital.
«Há um ponto em que nos sentimos tão pequenos e indefesos. No meio de um pesadelo monstruoso e de um mundo que parece indiferente a tudo que começamos a não ligar nenhuma a nada», observaria Martha. «Os dias confundem-se com as noites e a invasão […] começa a parecer qualquer coisa que sempre existiu, e deixamos de conseguir imaginar qualquer outra condição para a vida.»
Por fim, o navio ficou completo, sem possibilidade de levar mais ninguém e, de regresso a Inglaterra, Martha continuou a fazer o que pôde. Os GI despertavam a sua admiração: «Havia homens com tantas dores que tudo o que queriam fazer era voltar a cara e chorar, mas que mesmo assim sorriam, e homens que diziam piadas quando precisavam de todas as suas forças para sobreviver.» No entanto, pelos alemães feridos sentia apenas uma aversão à mistura com fascínio. De acordo com a Convenção de Genebra, estava proibida de os questionar, mas isso não a impediu de os olhar fixamente, surpreendida por não estar perante os gigantes louros que a sua imaginação construíra. Partiu do princípio de que teriam de ser ou oportunistas ou idiotas para terem aceitado lutar pelo regime nazi, homens que ou «tiram partido ou aceitam ordens, sem nada no meio». Tranquilizada com esta condenação, mostrou simpatia pelo tenente americano com um rosto doce que procurou ajudar e que, quando soube que o homem no beliche de baixo era alemão, lhe sussurrara com repugnância: «Se me conseguisse mexer, matava-o.»
Os dois artigos que Martha escreveu depois de regressar foram dos seus melhores, com base em observações exatas, num registo humano simples que comunicava a imensidão da invasão sem melodrama nem estereótipos. Sabia que eram bons e, se não fossem os problemas que entretanto teria de enfrentar, podia ter ficado irritada por ver o nome de Ernest acima do dela no cabeçalho da Collier’s. A presença de Martha a bordo do navio-hospital fora descoberta por um oficial americano e, dada a natureza dupla do seu delito – viajar clandestinamente e entrar numa zona de combate proibida –, não pôde apelar da punição que foi determinada pelo SHAEF. Assim que chegou a Londres o seu AGO foi rescindido e ela própria foi acompanhada a um campo de treino de enfermeiras onde lhe foi dito que teria de ficar até novas ordens.
Da perspetiva do SHAEF a punição foi razoável. Assim que fosse assegurada uma testa de ponte na Normandia estava planeado concederem algumas licenças limitadas de um dia para mulheres e a acreditação de Martha sera novamente atribuída nessa altura. No entanto, esta concessão pareceu-lhe sem significado. «Eu tinha sido enviada para a Europa para fazer o meu trabalho», escreveria, «que não era cobrir a retaguarda de uma perspetiva feminina.»

O sofrimento e o heroísmo que presenciara em Omaha Red redobraram a sua determinação de escrever tudo o que pudesse acerca daquela guerra. Achava que tinha o dever de se tornar os olhos, os ouvidos e o coração de
«milhões de pessoas nos Estados Unidos que estão desesperadas por ver, mas não podem fazê-lo por elas próprias». Assim que percebeu que ninguém a vigiava no campo, procurou uma abertura na vedação, escapuliu-se por baixo e regressou a Dorchester.
Nessa altura já tinha decidido que tanto lhe fazia que lhe devolvessem o AGO como não. Embora se tivesse dado ao trabalho de escrever uma carta de protesto contra o «tratamento curiosamente condescendente das mulheres correspondentes», estava na disposição de ignorar o SHAEF. O êxito da sua aventura como passageira clandestina convencera-a de que era mais provável arranjar histórias interessantes acerca da guerra se improvisasse a sua abordagem. E estava determinada a obedecer a uma única regra a partir desse momento: «Se não quiserem acreditar-me, tanto pior. Qualquer pequena mentira resolve o problema.»
Ainda assim, França continuava demasiado regulamentada para ela, de maneira que Martha optou por Itália, onde era mais fácil contornar as regras. Conseguiu introduzir-se num avião para Nápoles, convencendo o piloto de que andava à procura do noivo desaparecido em combate, e a partir dali juntou-se a uma coluna de polacos, os lanceiros dos Cárpatos, que monitorizavam a retirada dos alemães a partir da retaguarda. Quando se encaminhavam para norte, avançando em direção a Roma, a coluna começou a sofrer ataques aéreos regulares – «era um jogo de roleta em que o melhor que podíamos esperar se fôssemos atingidos era sair dali antes de sermos queimados vivos» –, mas para Martha os perigos não se aproximavam sequer do que vira na Normandia. O verão italiano era dourado e acampar com os polacos era como «ser cigana num circo de pequena cidade». Enquanto isso os homens bebiam vinho todas as noites e cantavam canções rudes, melancólicas e complicadas acerca das bata- lhas em que tinham combatido.
No fim de julho, Martha já estava em Florença, onde os Aliados continuavam a combater pelo domínio da cidade. As bombas inimigas atingiam-nos disparadas das posições alemãs, havia combates em algumas ruas dos arredores e ainda assim, no meio da confusão daquela zona de batalha urbana, Martha voltou a encontrar-se com Ginny. Havia quatro meses que Vir- ginia estivera pela última vez perto dos combates, um tempo durante o qual recebera a tarefa mais árida que se possa imaginar: escrever uma espécie de cartilha acerca da constituição dos Estados Unidos para leitores britânicos. Todavia, quando Martha regressara com as suas histórias acerca de Omaha Red, Virginia voltara a sentir o chamamento do campo de batalha e persuadira o Daily Telegraph – para onde continuava a escrever ocasionalmente – a enviá-la de regresso a Itália. É provável que as duas tenham calculado uma data para se reencontrar e que estivessem a contar seguir juntas, porque pouco antes de Virginia ter saído de Londres contactara o general De Lattre de Tassigny, comandante do que então era conhecido como o exército B francês, e conseguira uma autorização escrita tanto para ela como para Martha acompanharem o exército através de Itália como correspondentes de guerra.
Em geral, os britânicos e os americanos agarravam-se defensivamente às suas próprias regras, de maneira que Virginia foi forçada a enviar uma mensagem a queixar-se ao general Sir Maitland Wilson, comandante supremo das operações no Mediterrâneo, a exigir que a sua autorização fosse respeitada. Apesar de todos os obstáculos, conseguira chegar a Florença sem grande dificuldade e uma vez ali pôde reunir-se não só com Martha mas também com Nigel Nicolson, o seu oficial dos serviços de informações da Tunísia. «É sempre um prazer ver Virginia, com o seu sorriso satisfeito, a sua voz encantadora, o seu espírito de aventura, o seu estilo», recordaria mais tarde Nigel, mas ela própria ficou igualmente satisfeita por vê-lo a ele. O centro de Florença continuava a ser uma zona ativa de batalha, proibida a jornalistas sem escolta militar, e Virginia sabia que em Nigel tinha um guia voluntário cheio de boa vontade.
Juntos passaram um dia extraordinário a visitar os monumentos históricos da cidade e concordaram que parecia, ao mesmo tempo, milagroso e errado ser turistas interessados em arte numa cidade no meio de uma guerra. As forças do Eixo e os Aliados tinham chegado a acordo quanto à necessidade de preservar os tesouros culturais de Florença, bem como os de Roma e de Veneza. Mas ainda assim os combates tinham feito estragos devastadores: a Ponte Vecchio estava em ruínas, tinha sido aberto um buraco na Galeria dos Uffizi e nos Jardins Boboli, os mortos tinham sido atirados para fossas abertas. Quando Virginia e Nigel subiram montes de escombros para observar a magnífica catedral, parecia quase impossível que as esculturas góticas do Duomo, a sua magnífica abóbada e o campanário tivessem sobrevivido aos bombardeamentos e foi ainda mais estranho ver a obra-prima de Benozzo Gozzoli, A Viagem dos Magos, sem quaisquer estragos no Palácio Medici. Era em torno deste tipo de pormenores que Virginia gostava de desenvolver as suas reportagens, mas
o seu passeio por Florença foi brutalmente interrompido quando, ao contornarem os Uffizi, começou a contorcer-se com «uma cãibra horrível ou uma dor interna qualquer».
A dor era de tal maneira forte que Virginia mal conseguia andar e Nigel teve de a conduzir de carro até ao centro médico britânico mais próximo, onde os médicos consideraram o seu estado suficientemente grave para a enviarem para Londres. Não ficaram registos do diagnóstico – é possível que os britânicos apenas quisessem tirar uma mulher metediça dali. No entanto, fosse qual fosse a natureza da sua doença, pôs fim à aventura italiana de Virginia, e marcaria igualmente a sua carreira de combate. Quando regressou a Londres, encontrou o livro sobre a constituição americana por terminar, embora de qualquer maneira começasse a pensar se não teria já esgotado o seu interesse pela guerra. No ano seguinte ela e Martha escreveriam um livro humorístico autobiográfico sobre as suas experiências de correspondentes e a personagem de Virginia, Jane, enumera todas as razões por que está a começar a ficar cansada do trabalho: os obstáculos criados pelos oficiais de ligação com a imprensa, o egocentrismo dos jornalistas homens, as noites mal dormidas e o horror das rações militares. «Estou até a ficar farta de levar tiros», confessa a personagem de Virginia – e, para uma mulher que se orgulhava de ter enfrentado o fogo inimigo em Espanha, na Finlândia, em Dover e no deserto do Norte de África, esta era a confissão mais reveladora de todas.”