‘As Flores Perdidas de Alice Hart’, o aclamado romance de estreia de Holly Ringland

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‘As Flores Perdidas de Alice Hart’ é o aclamado primeiro romance da escritora australiana Holly Ringland e uma das apostas da Porto Editora para esta rentrée.

O livro conta a história de uma jovem rapariga, Alice, filha de um pai abusador e violento, que aprende, a custo, a romper com os padrões do passado e a viver segundo as suas próprias regras – ao mesmo tempo que vai descobrindo a sua força interior.

O livro está em pré-venda a partir desta segunda-feira, dia 1 de outubro, e chega a todas as livrarias no dia 15 do mesmo mês.

O Delas.pt, em parceria com a Porto Editora, pré-publica o primeiro capítulo do livro, ‘As Flores Perdidas de Alice Hart’, que pode ler em baixo:

1

Orquídea Fogo Negro

Significado: Desejo de possuir Pyrorchis nigricans – Austrália Ocidental

Precisa de fogo para florescer. Brota de bolbos eventualmente mantidos inativos. Riscas carmim escuro sobre polpa pálida.

Fica negra após a floração, como que carbonizada.

Na casa revestida a tábuas, já no fim do trilho, Alice Hart, de nove anos, está sentada à secretária junto à janela, a sonhar com formas várias de atear fogo ao pai.

À sua frente, na secretária de eucalipto feita por ele, um livro de biblioteca, aberto. Estava carregado de histórias, recolhidas de todo o mundo, acerca dos mitos do fogo. Ainda que correndo uma brisa nordestina, vinda do Pacífico e carregada de salmoura, Alice sentia um cheiro a fumo, a terra, e a penas incineradas. Leu, num murmúrio alto:

A ave fénix é emersa no fogo, para que as chamas a consumam, fazendo-a arder até às cinzas, para delas renascer, refeita, reformada – a mesma, mas completamente diferente.

Alice passou o indicador pela ilustração da fénix renascida: as penas branco-prata cintilando, as asas escancaradas, a cabeça lançada para trás para cantar. Tirou a mão com um gesto súbito, como que temendo que as lambidas de oiro laranja escuro lhe queimassem a pele. Uma lufada fresca entrou pela janela trazendo-lhe o cheiro a algas; os sininhos do jardim da mãe avisaram-na que vinha aí vento forte.

Inclinando-se sobre a secretária, Alice fechou a janela, deixando apenas uma fresta aberta. Afastou o livro, observando a ilustração enquanto estendia a mão para o prato com a torrada que fizera há horas. Trincou o triângulo amanteigado e mastigou lentamente a torrada fria. Como seria se o pai fosse consumido pelas chamas? Com todos os seus monstros reduzidos a cinzas, o melhor de si poderia renascer, renovado pelas chamas, reconstruído no homem que ele por vezes era: o homem que lhe construiu uma secretária para que ela escrevesse histórias.

Alice fechou os olhos, imaginando por um momento que o mar próximo, cujas ondas ela ouvia bater através da janela, era um oceano cuspindo fogo. Conseguiria empurrar o pai para lá, para ser consumido como a fénix deste livro? E se ele emergisse, abanando a cabeça como quem acorda de um pesadelo, e abrisse os braços para ela? B’ dia Coelhinha, dir-lhe-ia provavelmente. Ou talvez se limitasse a assobiar, as mãos nos bolsos e um sorriso no olhar. Quem sabe Alice nunca mais voltasse a ver-lhe os olhos azuis enegrecerem de raiva, ou o sangue escoar-lhe das faces, o cuspo nos cantos da boca, numa espuma tão branca quanto a sua palidez. Ela poderia então concentrar-se apenas na direção do vento, ou nos livros a trazer da biblioteca, ou na sua escrita à secretária. Renascido pelo fogo, o toque do pai de Alice no corpo grávido da mãe seria sempre delicado; as mãos dele no corpo da filha sempre suaves e afetuosas. E mais do que tudo, iria embalar o bebé quando ele chegasse, e Alice não teria de ficar acordada a pensar em como proteger a família.

Fechou o livro. O som pesado reverberou pela secretária de madeira que acompanhava toda a extensão da parede do seu quarto. A secretária ficava em frente às duas janelas grandes que abriam diretamente para o jardim de fetos, samambaias, e plantas de folhas borboleta que a sua mãe insistia em cuidar até os enjoos lhe impossibilitarem a tarefa. Ainda naquela manhã a mãe andara a envasar sementes de Pata de Canguru – até se dobrar em duas, caindo sobre os fetos. Alice estava à secretária, a ler; ao ouvir os vómitos da mãe, saltou pela janela, aterrando no leito de fetos. Sem saber o que mais fazer, limitou-se a agarrar firmemente na mão da mãe.

* Eu estou bem – tossiu ela, apertando a mão de Alice antes de a largar. – São só enjoos matinais, coelhinha, não te preocupes. – Ao inclinar a cabeça para trás em busca de ar, o rosto revelou um novo hematoma, roxo como

o mar ao amanhecer, rodeando uma ferida na pele sensível por detrás da orelha. Alice desviou rapidamente o olhar.

* Oh, querida – murmurou a mãe enquanto se levantava. – Estava na cozinha, não vi onde pus os pés e… tropecei. O bebé dá-me muitas tonturas.

– Levou a mão à barriga e, com a outra, varreu a sujidade do vestido. Alice fixou os fetos jovens esmagados pelo peso da mãe.

Pouco depois, os pais saíram. Alice ficou a vê-los da porta de casa até a nuvem de pó levantada pela carrinha se desfazer no céu azul daquela manhã. Dirigiam-se à vila para mais uma consulta no obstetra; a carrinha tinha apenas dois lugares. Porta-te bem, querida, implorara-lhe a mãe roçando os lábios na face de Alice. Cheirava a jasmim, e a medo.

Alice pegou noutro triângulo de torrada e segurou-o nos dentes enquanto pegava no saco com os livros trazidos da biblioteca. Prometera à mãe que ia estudar para o exame do 4º ano, mas o teste idiota que a escola por correspondência enviara pelo correio continuava na secretária, por abrir. Quando tirou um livro do saco e leu o título, ficou de queixo caído. O exame ficou automaticamente esquecido.

À luz ténue de uma tempestade iminente, a capa em relevo de O Fogo: Guia Para Principiantes surgia como algo iluminado, quase vivo. Um incêndio incontrolável irrompendo em chamas metálicas. Alice sentiu qualquer coisa de perigoso e eletrizante percorrer-lhe as entranhas, as palmas das mãos pegajosas. Tinha acabado de tocar com os dedos no canto da capa quando, como se invocadas pelos nervos trémulos, as medalhas da coleira do Toby tilintaram atrás dela. O cão encostou o focinho à perna dela, deixando-lhe uma mancha húmida na pele. Aliviada pela interrupção, Alice sorriu ao ver o cachorro sentar-se obedientemente. Estendeu-lhe a boca com a torrada entre os dentes e Toby retirou-a delicadamente com os seus, antes de a engolir de um trago só. Gotas de baba de cão pingaram-lhe para os pés.

– Que nojo, Tobes! – disse a menina, afagando-lhe as orelhas. Ergueu um indicador e abanou-o de um lado para o outro. A cauda do cachorro abanou também, em jeito de resposta. Levantou uma pata e pousou-a na perna dela.

Toby fora uma oferta do pai, e era o melhor amigo de Alice. Quando era cachorrinho, tinha o hábito de mordiscar os pés do pai debaixo da mesa, até que um dia levou um pontapé que o fez voar de encontro à máquina de lavar. O pai de Alice proibiu-a de o levar ao veterinário e Toby ficara surdo desde então. Quando a menina percebeu que ele não a ouvia, dedicou-se a criar uma linguagem secreta a ser partilhada só pelos dois, recorrendo a gestos das mãos. Abanou de novo o dedo à frente dele, agora de cima para baixo, para lhe dizer que tinha sido lindo. Toby lambeu a cara de Alice, fazendo-a rir, e ela limpou a bochecha com uma expressão de falso desagrado. Depois andou em círculos por uns segundos até se instalar confortavelmente aos pés da dona. Já não era cachorrinho, e estava agora bem mais parecido com um lobo de olhos cinzentos do que com um cão-pastor. Alice enroscou os dedos dos pés no pelo fofo e comprido do seu melhor amigo. Encorajada pela sua companhia, abriu finalmente O Fogo: Guia Para Principiantes, sendo rapidamente absorvida pela primeira história.

Em locais longínquos, como a Alemanha e a Dinamarca, as pessoas usavam o fogo para queimar o velho e invitar o novo, dando as boas-vindas ao próximo ciclo: uma estação, uma morte, uma vida, ou um amor. Algumas chegavam mesmo a construir figuras gigantes de vime e silvas, mantendo-as ateadas para estabelecer um final e marcar um início: para atrair milagres.

Alice recostou-se na cadeira. Sentiu os olhos quentes e pesados. Pressionou as mãos sobre as páginas, sobre a fotografia de um homem a arder, feito de vime. Que milagre atrairia a sua figueira? Acima de tudo, nunca mais se ouviriam os sons de coisas a partirem-se naquela casa. E o cheiro amargo do medo não voltaria jamais a empestar o ar. Alice plantaria uma horta, sem ser castigada por utilizar inadvertidamente o sacho errado. Quem sabe não aprenderia a andar de bicicleta sem sentir as raízes dos cabelos serem arranca- das pela mão do pai, só por não conseguir equilibrar-se. Os únicos sinais que passaria a interpretar seriam os do céu; já não precisaria de decifrar as nuvens e as sombras que anunciavam o monstro ou o homem que fizera dum eucalipto uma secretária para ela escrever.

Construíra a secretária no dia seguinte a ter lançado Alice ao mar, deixando-a nadar sozinha até à margem. Enfiou-se na cabana de madeira nessa mesma noite, e só saiu de lá dois dias passados. Quando o fez, surgiu vergado sob o peso de uma secretária retangular, mais comprida do que o que ele media em altura. Fizera-a a partir de troncos de eucalipto manchado que tinha acumulado ao longo do tempo, com a intenção de construir uma nova estufa de fetos para a mãe. Alice encolhera-se a um canto do quarto enquanto o pai pregava a secretária à parede, debaixo do longo parapeito. Encheu-lhe o quarto de fragrâncias fortes a madeira fresca, óleo e verniz. O pai mostrou a Alice como a tampa se abria sob as dobradiças de latão, revelando um tampo lisinho, pronto a ser preenchido com folhas, lápis e livros. Lembrara-se até de fazer um braço de um ramo de eucalipto para manter a tampa aberta e Alice poder usar as duas mãos para mexer no interior à sua vontade.

– Quando for à vila, trago-te todos os lápis de escrever e lápis de cera de que vais precisar, Coelhinha.

Alice lançou as mãos ao pescoço dele. Cheirava a sabonete Cussons, suor e aguarrás. – Para a minha Coelhinha. A barba dele arranhou-lhe a cara. Um tapete de palavras forrou a língua de Alice: Eu sabia que continuavas cá. Fica. Por favor, não deixes que os ventos mudem. Mas tudo o que conseguiu dizer foi Obrigada.

Alice desviou o olhar para o livro aberto.

O fogo é um elemento que requer fricção, combustível e oxigénio para inflamar e arder. Um fogo ideal necessita destas excelentes condições.

Ergueu os olhos para o jardim. A força invisível do vento puxava e empurrava os vasos de fetos dos ganchos que os seguravam. Uivava pela fresta estreita da janela aberta. Alice inspirou fundo algumas vezes, enchendo e esvaziando os pulmões lentamente. O fogo é um elemento que requer fricção, combustível e oxigénio para inflamar e arder.

Fixando o olhar no coração verdejante do jardim da mãe, Alice soube então o que fazer.

***

Enquanto o vendaval vindo de leste varria o céu em cortinas negras, Alice vestiu o corta-vento à porta das traseiras. Toby mantinha-se junto dela e a menina enfiou os dedos no seu pelo sedoso. Ele gemeu e, de orelhas baixas, aconchegou-se na barriga dela. Lá fora o vento arrancou as pétalas das rosas da mãe e espalhou-as pelo quintal como estrelas cadentes. À distância, mesmo ao fundo da propriedade, via-se a sombra da cabana do pai – sempre trancada. Alice bateu no bolso do casaco, sentindo a chave. Levou ainda um momento, esforçando-se por arranjar coragem, abriu a porta e saiu de casa a correr, di- reta para o vento, com Toby atrás de si.

Mesmo estando proibida de lá entrar, nada impedia Alice de imaginar o que esconderia a cabana de madeira do pai. Na maioria das vezes, as reclusões do pai na cabana ocorriam depois das coisas horríveis que ele fazia. Mas quando saía, parecia sempre melhor. Alice decidira que a cabana

detinha algum tipo de magia transformacional; como se dentro das suas paredes existisse um espelho encantado, ou uma roda de fiar. Em tempos, era ainda muito pequena, tivera coragem para perguntar ao pai o que havia dentro da cabana. Ele não respondeu, mas depois de lhe ter construído a secretária, Alice compreendeu. Tinha lido coisas sobre alquimia nos livros da biblioteca; conhecia a história do Rumpelstiskin. A cabana do pai era onde ele fiava palha, transformando-a em ouro.

As pernas e os pulmões ardiam-lhe enquanto corria. Toby ladrou para o céu até que o vislumbre de um relâmpago por cima da sua cabeça o fez meter o rabo entre as pernas. À porta da cabana, Alice tirou a chave do bolso e enfiou-a na fechadura. Não abriu. O vento chicoteava-lhe a cara e ameaçava-lhe o equilíbrio; só a quente pressão de Toby contra o seu corpo a mantinha de pé. Tentou de novo. A chave magoou-lhe a palma da mão enquanto a empurrava para a fazer ceder. Mas nem se mexeu. O pânico toldou-lhe a visão. Largou a chave, esfregou os olhos e afastou o cabelo da cara. E tentou de novo. Desta vez, a chave cedeu tão facilmente que parecia que alguém tinha oleado a fechadura. Alice rodou a tranca, e tropeçou lá para dentro, com Toby nos seus calcanhares. O vento sugou a porta, que se fechou com estrondo.

O interior da cabana, sem uma única janela, surgiu escuro como breu. Toby rosnou. Alice estendeu uma mão na escuridão para o sossegar. Estava quase surda, tal o afluir do sangue nos ouvidos, juntamente com o rugido feroz da ventania. Sementes da acácia rubra por detrás do casebre choviam sem parar como se alguém com pantufas de lata dançasse pelo telhado.

O ar fedia a aguarrás. Alice tateou à sua volta até que os dedos tocaram num candeeiro a petróleo na bancada de trabalho. Reconheceu-lhe a forma, a mãe tinha um muito semelhante dentro de casa. Ao lado estava uma caixa de fósforos. Uma voz zangada ecoou-lhe na mente. Não devias estar aqui. Não devias estar aqui. Alice encolheu-se, mas conseguiu abrir a caixa de fósforos. Apalpou a ponta de um fósforo, passou-a pela superfície de lixa e sentiu o odor a enxofre quando uma chama rápida envolveu o ambiente. Levou-a ao pavio do candeeiro a petróleo e atarraxou na base a campânula de vidro. A luz difundiu-se ao longo da bancada de trabalho do pai. À frente dela, uma gaveta entreaberta. Com um dedo trémulo, Alice abriu-a. Lá dentro, uma fotografia e outra coisa que não conseguiu discernir. Pegou na fotografia. Tinha os cantos descolados e amarelados, mas a imagem era nítida; uma casa antiga, ampla e resplandecente, coberta por hera. Alice enfiou a mão na gaveta para alcançar o outro objeto. As pontas dos dedos roçaram algo suave. Retirou-o, aproximando-o da luz: uma madeixa de cabelo atada numa fita esmorecida pelo tempo.

Uma rajada poderosa fez estremecer com violência a porta da cabana. Alice largou a fotografia e a madeixa, voltando-se repentinamente. Não havia ali ninguém. Era apenas o vento. O seu coração tinha começado a abrandar, quando Toby fletiu as ancas e rosnou novamente. A tremer, Alice ergueu o candeeiro para iluminar o resto da cabana do pai. O queixo caiu-lhe, literalmente; os joelhos pareceram-lhe gelatina.

À sua volta havia dezenas de esculturas de madeira, de miniaturas a figuras de tamanho real, todas representando duas únicas fisionomias. Uma era uma velhota que surgia numa série de poses: cheirando uma folha de eucalipto, inspecionando plantas em vasos, deitada de costas com um braço sobre os olhos e o outro apontando para cima, transportando na saia molhos de flores que Alice desconhecia. As outras esculturas representavam uma menina: lendo um livro, escrevendo à secretária, soprando num dente-de-leão. Reconhecendo-se nas esculturas do pai, Alice sentiu uma forte dor na cabeça.

Inúmeras versões da mulher e da rapariga enchiam a cabana, dispostas em semicírculos que acabavam junto à bancada de trabalho. Alice respirou várias vezes, em sopros lentos e profundos, escutando as batidas do coração. Estou aqui, dizia. Estou aqui. Se o fogo podia ser um feitiço que transformava uma coisa noutra, as palavras também. Alice já tinha lido o suficiente para entender os encantos que as palavras podiam conter, sobretudo quando repetidas. Dizer uma coisa tantas vezes até que se torne realidade. Concentrou-se no feitiço que lhe batia no coração.

Estou aqui. Estou aqui. Estou aqui.

Alice voltou-se em círculos lentos, assimilando as figuras de madeira. Lembrou-se que, uma vez, tinha lido sobre um rei cruel que fizera tantos inimigos no reino que decidira criar um exército de guerreiros de pedra e barro para o rodear – só que o barro não é carne e a pedra não é coração nem sangue. No fim, os aldeões de quem o rei se esforçara por se defender recorreram ao próprio exército que ele criara para o esmagar enquanto dor- mia. Alice sentiu arrepios subirem e descerem-lhe pelas costas ao recordar as palavras que lera há pouco: o fogo requer fricção, combustível e oxigénio para inflamar e arder.

– Vamos, Tobes – disse, ansiosa, levando a mão a uma figurinha, depois a outra. Imitando uma delas, usou a t-shirt como bolsa para guardar todas as miniaturas que conseguiu.

O cão manteve-se ao lado de Alice. A menina sentia o coração a bater fortemente contra as costelas. Com tantas estátuas na cabana, certamente que o pai não daria por falta de algumas das mais pequenas. Seriam o combustível ideal para ela praticar.

Alice lembrar-se-ia para sempre deste dia como aquele que mudou a sua vida de forma irreversível – ainda que lhe levasse os próximos vinte anos a compreender: a vida acontece para a frente, mas só pode ser entendida para trás. Enquanto fazemos parte da paisagem não a conseguimos realmente ver.

***

Estacionando à entrada de casa, o pai de Alice agarrou com força o volante, em silêncio. A mulher tinha vergões recentes no rosto – que tentava esconder com uma mão. Com a outra segurava a barriga, mantendo-se bem encostada à porta do lugar do passageiro. Ele tinha visto com os próprios olhos a forma como ela tocara no braço do médico. Vira a expressão no rosto dele. Ele tinha visto. O olho direito começou a piscar-lhe incontrolavelmente, como um tique. Assim que se sentou, depois da ecografia, a mulher sofreu uma tontura; ele não quis perder tempo com o pequeno-almoço e arriscar perder a consulta. Ela tinha tentado equilibrar-se. E o médico ajudara-a.

O pai de Alice fechou e abriu o punho. Os nós dos dedos ainda lhe doíam. Olhou de relance para a mulher, encolhida, enrolada em si própria, criando um desfiladeiro entre os dois. Ele teve vontade de estender a mão para ela, explicar-se, dizer-lhe que ela tinha de ter mais cuidado com as suas atitudes, precisamente para não o provocar. Se lhe falasse na linguagem das flores, talvez ela percebesse. Drosera forqueada, morre, se desleixada. Arlequim fúcsia, cura e alívio. Arbusto do casamento, constância. Mas há anos que ele tinha deixado de lhe oferecer flores – praticamente desde que saíram de Thornfield.

Ela hoje não o tinha ajudado. Devia ter acordado a tempo de preparar um pequeno-almoço para levarem na viagem; assim, já não teria ficado tonta, e ele não teria testemunhado aquele encontro de mãos entre ela e o médico. Ela sabia o que lhe custavam aquelas idas à vila, o pessoal médico metendo as mãos onde não devia, no corpo da sua mulher. Ao longo desta gravidez, ainda não tinham feito uma ecografia que fosse, ou um check-up, em que não tivesse havido problemas. Nem com as consultas de Alice. Seria realmente culpa dele se ela insistira em não o apoiar, de todas as vezes?

– Estamos em casa – disse ele, puxando o travão de mão e desligando o motor.

A mulher tirou a mão da cara e levou-a ao puxador da porta. E esperou. Ele sentiu a raiva a fervilhar. Porque é que ela não dizia nada? Destrancou as portas, esperando que ela se voltasse para ele e lhe sorrisse de gratidão, ou até lhe concedesse um sorriso de desculpas. Mas ela saltou para fora do carro como uma galinha fugindo do galinheiro. Ele saiu do carro a gritar o nome dela, abruptamente silenciado pelo vendaval. Encolhendo-se sob

o vento cortante, irrompeu atrás da mulher, decidido a mostrar-lhe quem mandava. Tinha quase chegado a casa, quando algo lhe despertou a atenção.

A porta da cabana estava aberta. A tranca pendia da porta. Alertou-o um vislumbre rápido do corta-vento vermelho da filha, na soleira.

***

Quando a t-shirt já não conseguia albergar mais figurinhas, Alice precipitou-se para fora da cabana, sob a luz obscura. O rugido de um trovão tomou os céus, tão alto que Alice deixou cair as figurinhas e encolheu-se, encostada à porta da cabana. Apavorado, Toby reagiu, e o pelo arqueou-se ao longo da espinha. Ela estendeu a mão para o acalmar e ao levantar-se viu-se de novo lançada para trás por uma rajada tenebrosa. Esquecendo as estatuetas, fez sinal ao cão e correu para casa. Estavam prestes a alcançar a porta das traseiras quando um relâmpago gigantesco estilhaçou as nuvens negras em fragmentos prata, numa seta ameaçadora voltada para baixo. Alice paralisou. Foi nesse raio branco que ela o viu. O pai estava à porta, abraçando-se a si mesmo, as mãos fechadas em punhos ameaçadores. Ela não precisou de mais luz nem de se aproximar para lhe discernir a negritude do olhar.

Alice mudou de direção e correu para um dos lados da casa. Não estava certa de que o pai a tivesse visto. Enquanto corria em direção aos fetos verdes do jardim da mãe, acometeu-a um pensamento sinistro: o candeeiro a petróleo na cabana do pai. Na cabana de madeira do pai. Esquecera-se de o apagar.

Alice voou pela janela do quarto adentro, para cima da secretária, içando Toby com ela. Agacharam-se ambos, arquejando para tentarem recuperar o fôlego. Toby lambeu-lhe a cara e Alice fez-lhe uma festa reconfortante. Cheirou-lhe… a fumo? Uma onda de terror fê-la estremecer. Saltou da secretária e reuniu os seus livros da biblioteca, enfiando-os no saco atabalhoadamente. Despiu o corta-vento e enfiou-o no saco, e por fim fechou a janela. Alguém deve ter assaltado a tua cabana, Pai. Eu estava dentro de casa, à espera que tu voltasses.

Não ouviu o pai entrar no quarto. Nem foi suficientemente rápida para se esquivar. A última coisa que Alice viu foi Toby arreganhar os dentes, os olhos tolhidos pelo medo. Sentiu o cheiro a fumo, a terra, e a penas incineradas. Uma forte e ardente pancada na cara de Alice fê-la mergulhar na escuridão.