“As mulheres têm autoestima, mas às vezes acomodam-se”

Cristina Vaz Tomé é administradora da RTP desde 2015. É engenheira de formação, passou pela Autoeuropa, pelo mundo da consultadoria KPMG e pela investigação científica, por via do Instituto de investigação Científica Tropical.

Atualmente, aos 49 anos, está desde 2015 à frente dos destinos da RTP e, como uma dos três administradores da empresa pública de media, tem os pelouros da Gestão, dos Recursos Humanos, das Compras e Património, da Área Financeira e Jurídica e da Engenharia, Sistemas e Tecnologia.

Num percurso profissional que a levou a estar entre homens, nunca sentiu discriminação negativa, nem positiva, sendo por isso – até há alguns anos – contra as quotas. Há cerca de meia dúzia de anos, mudou de opinião. Cristina Vaz Tomé concluiu que quando as empresas caçadoras de talentos não estão envolvidas em contratações de altos cargos, os homens tinham tendência para fazer um “clube bolinha” e as mulheres tinham pouca capacidade para o networking [redes de contactos]. A administradora quer mudar isso, quer trazer à RTP quem sabe para sensibilizar para o tema e, mesmo estando numa empresa que até cumpre a paridade nos lugares de topo, admite que há muito para fazer.

Como legado na RTP, Cristina Vaz Tomé gostava de ver uma direção de informação com mulheres mais visíveis e um departamento de engenharia com uma maior presença feminina.

Mãe de um rapaz e de uma rapariga, filhos com 18 e 15 anos, diz nunca ter sentido o dilema de ter de escolher entre família e carreira, crê que não falhou com os descendentes por isso. Reconhece que para mulheres sem recursos económicos e rede familiar tudo é um mais difícil, mas é a autoestima e a luta que podem fazer a diferença. E as mulheres têm de voltar às batalhas no trabalho, conquistando o que acham que é seu por direito. Sem vergonhas.

RTP fez, esta terça-feira, 7 de março, 60 anos. Como é ser mulher entre homens na gestão numa empresa pública de media, com este histórico?

Não poria a questão dessa forma. Poria, antes, como é gerir uma grande empresa pública portuguesa que faz 60 anos, na televisão, e já fez 80 na rádio. É gratificante, é um grande desafio. Por um lado, começou por ser uma escola do audiovisual português, o que é uma grande responsabilidade para quem está ao leme desta empresa no século XXI. Por outro, é também uma responsabilidade muito grande porque temos pessoas que estão aqui há 40 anos, que já passaram por muitas fases desta companhia, por muitas fases da sociedade portuguesa. Aparecemos nós, esta equipa jovem [Gonçalo Reis é o presidente da RTP e Nuno Artur Silva o outro administrador que compõe o Conselho] não só em termos de idade, mas também na gestão desta casa. Por isso, ter de gerir e dar continuidade a um barco agora com uma nova estratégia – a que apresentamos ao Conselho Geral Independente – para que a empresa continue a existir nos próximos 60 anos, acaba por ser muito gratificante. Ser mulher ou não, não é a tónica. Apesar de saber que hoje é o dia da Mulher e eu sou mulher.

Há caminho para fazer nesta empresa em matéria de paridade, sendo a administradora com o pelouro dos Recursos Humanos?

Não é uma empresa onde se sinta que há mais homens do que mulheres. Tenho a informação do que é o perfil da empresa relativamente às questões de género e acaba por ter paridade.

Ao nível da direção, tem um equilíbrio de 30% de diretoras da primeira linha, na RTP. Hoje em dia, a tónica são as quotas, mas a RTP já as cumpria antes.

Abaixo da administração, há quatro pilares em que dividimos a gestão da empresa: o suporte, as áreas corporativas, o apoio à produção e aos programas. Para cada pilar há um diretor, e temos uma mulher [Marina Ramos] como diretora de marketing e estratégia de comunicação. Achámos por bem dar essa visibilidade para o exterior naquilo que é o cerne da nossa operação.

Mas se olharmos, por exemplo, para o universo da rádio, temos apenas homens diretores. Alguns acumulam várias direções.

É verdade, aí tem razão. Mas foi buscar o caso mais negativo (risos).

Bem, no caso da televisão, em direções de oito serviços de programa há apenas uma mulher [Teresa Paixão, diretora de programas da RTP2].

E ela tem feito um papel excecional na RTP2. Às vezes, temos, nas segundas linhas, mulheres que acabam por ter um papel muito preponderante na estratégia do serviço de programa.

Mas como gestora de Recursos Humanos numa empresa desta natureza, é de promover a paridade neste campo?

A minha experiência e a minha formação em engenharia – venho da indústria automóvel, onde estive sete anos – colocou-me em men’s world [mundo de homens], ou seja, era eu no meio de homens: shop-floor [chão de fábrica, em tradução literal], bata, botas de biqueira de aço (risos), venho de um ambiente muito masculino, era responsável por uma área da linha de produção e tinha a meu cargo vários homens. Depois estive no mundo da consultadoria e aí havia uma paridade maior. A minha evolução na carreira sempre aconteceu naturalmente.

Primo mais pela capacidade que temos de trabalho e o que é a visibilidade sobre o trabalho que fazemos do que pela necessidade de termos de puxar pelas mulheres.

Obviamente, elas têm de ter um papel mais relevante na gestão das empresas porque, especialmente nos cargos de topo, de liderança, se não houver quotas, só em 2100 é que vamos ter paridade. Eu já fui contra quotas e agora sou completamente a favor. E vamos ter a paridade por questões naturais porque cada vez há menos homens nas faculdades, elas estão em maioria, portanto a probabilidade de uma mulher chegar a um cargo de topo é maior, porque a oferta é maior, pondo as questões do ponto de vista da lei da oferta e da procura.

Numa nova oportunidade de nomeações na RTP, faz sentido pensar em mulheres para os cargos?

Agora, voltando à questão das nomeações das direções, nunca foi uma preocupação que estivesse no nosso subconsciente enquanto administração, o de ter o cuidado de ter x % de mulheres e x% de homens. Foi um processo natural, olhámos para as competências que as pessoas têm para desenvolver o trabalho. Agora, faz sentido mantermos em mente que devemos dar essa oportunidade, em igualdade de circunstâncias e mediante uma vaga em cargos de direção, de olharmos para a disponibilidade e competência das pessoas, de ponderar se deve ser um homem ou mulher. Em igualdade de circunstâncias, porque não dar oportunidade às mulheres?

Quando mudou e porque mudou de opinião relativamente às quotas.

Eu era contra quotas porque achava que tudo acontecia naturalmente. Felizmente, a minha carreira sempre evoluiu e não era pelo atributo mulher que as coisas me aconteciam, e vinha de um ambiente muito masculino. Mas comecei a olhar ao meu redor e comecei depois a participar noutro tipo de fóruns nas empresas e senti que via alguma penalização pelo facto de as mulheres serem preteridas no âmbito da progressão de carreira. A dada altura, a secretária de Estado para a Igualdade [Teresa Morais] teve um discurso que foi um ponto de viragem para mim.

Foi muito clarificador porque, olhando para as estatísticas e chegando a um certo nível, vemos que os profissionais não chegam lá por Head Hunting (empresas que caçam talentos profissionais), mas porque conhecem alguém. Já todos ouvimos: “Tens aí alguém que possa vir a ocupar este cargo?” e nisso os homens são muito corporativos, falam muito entre eles e, naturalmente, quem aparece é um homem para o lugar.

Não aparece uma mulher. Quando estes processos não são seguidos por empresas que têm essa missão, mas são feitos de forma informal, a probabilidade de haver mais homens é muito maior.

Há, passo a expressão, um “clube bolinha”?

É, acho que sim. É mesmo bolinha, há várias coisas: o tuff [os durões] e outros (risos)

Mas era esse o caminho que devia ser feito pelas mulheres, ir por esses clubes? E as quotas viriam servir esse propósito?

Não consigo dar uma resposta. Tenho feito imensas reflexões sobre essa questão. Porque, se por um lado, é importante as mulheres fazerem esse networking [rede de contactos], e sempre que posso faço-o, por outro lado, tenho sempre o receio de que se começarmos a criar esses clubes, os homens olhem para nós – se não os envolvermos – e considerem o clube das meninas. Nós mulheres, nisso tenho estado mais atenta e tenho participado em grupos em Portugal, mas também na Eurovisão (Women Executives in Media), não temos feito este trabalho de networking.

Porquê?

Há várias razões: possivelmente não há muitas mulheres nestes cargos, é difícil estabelecer redes quando não tenho ao meu lado pares, ou porque temos muitas outras coisas para fazer, outras ocupações. Estas questões da paridade são muito importantes, mas não havendo um suporte muito forte familiar é muito difícil, porque ela [a mulher] é que tem sempre a responsabilidade. O meu filho tem de ir à pediatra, eu tenho de sair mais cedo. A minha filha precisa de uma assinatura do colégio, sou eu que tenho de ir lá. Acaba por ser a própria que toma essa responsabilidade e a ter a iniciativa.

Por um lado têm a responsabilidade da vida quotidiana.

Elas próprias é que assumem essa responsabilidade e valorizam-se por isso.

Como gestora de Recursos Humanos, a RTP tem medidas previstas que possam colocar os homens à vontade para que eles tomem a dianteira: como por exemplo, sair para cuidar dos filhos, ir à pediatra.

Claramente, temos. Há casos de pais que já estão a usufruir da baixa de paternidade. Temos um subdiretor a pedir o mês para ficar com os filhos. A RTP é bastante permissiva – temos que o ser, está previsto na lei. Tem havido homens a usufruir dessa licença sem qualquer tipo de constrangimento relativamente ao que é a sua atividade na empresa. No próprio Acordo da Empresa temos previstas situações como a paridade.

Que exemplos concretos tem?

Para já este apoio à família, para além do que a lei nos exige, nós vamos um bocadinho mais longe e isso é indiferente de ser para homem ou para mulher.

Mas no concreto.

Apoio à família, não só para filhos, como para acompanhar pais seniores. Mais do que a lei prevê. Depois, no âmbito da responsabilidade social, temos apoios à ações de voluntariado.

Na questão do apoio a seniores, falamos de que medidas em concreto?

De dias, dar dias. Um x por trimestre, um x por quinzena.

Tendo em conta a sua experiência, ter acesso a esses direitos é mais fácil numa empresa pública do que numa privada?

(pausa) Colocaria a pergunta de outra forma: “Se a vida numa empresa com Acordo, em que temos organizações coletivas de trabalhadores, comissões e sindicatos, a tentarem uma maior equidade e uma situação mais justa dos direitos dos trabalhadores difere de de uma outra companhia que não tenha essas organizações?” Eu acho que a existência dessas estruturas acaba por ter mais peso. Venho do setor privado, e no setor privado (pausa) é muito diferente.

Mas as quotas viriam favorecer a entrada delas no topo?

As quotas vêm trazer mais mulheres aos cargos de liderança. O networking entre mulheres vai acontecer naturalmente, o gatilho vai ser a quota. É um meio para chegar a algum lado. Se calhar, daqui a cinco ou dez anos já não vai haver quotas. Haverá outras para questões de diversidade e que são também importantes.

As quotas no Parlamento foram instituídas em 2006 e só nesta legislatura é que se cumpriu, pela primeira vez, o rácio de 33% de mulheres deputadas. Tendo em conta a sua experiência e os vários setores por onde passou, dez anos chegam?

Na investigação científica é mais fácil, há mais mulheres. Estive dois anos a gerir o instituto público da área da investigação e consegue-se ver mais mulheres a terem mais protagonismo nessa área do que nas empresas

Tem integrado as conferências de mulheres da Eurovisão, Women Executives in Media. O que pretende este grupo europeu?

Fui como espectadora. Estou a tentar trazer a Portugal a alemã Monika Schulz-Strelow, do Fidar [associação que reúne empresas privadas alemãs que quer fomentar a presença de mulheres em cargos de liderança na primeira e segunda linhas de poder]. Ela tem uma experiência muito grande nas iniciativas que se estão a desenvolver em Portugal ao nível da Professional Women’s Network [organização sem fins lucrativos, com delegação em Lisboa, e que tem o objetivo de promover uma carreira profissional sustentável das mulheres]. Podemos aprender um bocadinho com o caminho que ela já percorreu, é sempre interessante falar com mulheres que já têm um currículo muito grande.

O que vê lá fora, o que nos falta? O que devemos importar?

Acho que estamos todos muito alinhados. Todas partilhamos das mesmas preocupações e temas.

Mulheres no topo, mas em que condições, é por aí?

Não necessariamente, e já falo de um tema que abordamos em Londres [2016] e me chocou. A realidade é que todas nós, independentemente de estarmos na Alemanha, Áustria, Portugal, Espanha – este grupo tinha mais presença do grupo do Norte da Europa, onde isto também é tema – estamos a discutir esta matéria, mas não estamos, em Portugal, na cauda da Europa.

E o que a chocou?

Estarmos num grupo em que mulheres afirmavam que, para estarem naquela posição, tiveram de optar: ter filhos ou carreira. Isto é que não podemos aceitar, não pode ser o caminho a seguir.

Nunca se sentiu confrontada a ter de fazer uma opção dessas?

Sou mãe, tenho dois filhos. Não me senti nem confrontada, nem culpabilizada e tive horários muito complicados.

Então, como olha para o que elas dizem?

Há uma explicação: no Sul da Europa temos um apoio familiar muito maior do que no norte. Temos mais rede.

Aos 18 anos, no norte da Europa, os pais põem literalmente os filhos fora de casa, dizem-lhes para irem arranjar um apartamento com os amigos e para se fazerem à vida. Aqui no sul, nos países da orla mediterrânica, somos muito mais paternalistas e temos o conceito de família muito mais próximo, há mais solidariedade.

Por outro lado, em Portugal, vivemos a circunstância de termos muita imigração, o que nos permite ter empregadas que nos conseguem libertar de algum trabalho. Tenho amigas a viver em Londres e para quem é incomportável ter uma nanny [ama] a tempo inteiro. Isto dá-nos alguma flexibilidade. Mas é muito duro tomar a decisão da carreira e família. É duríssimo para uma família. Agora, no meu caso, diria que houve momentos em que sacrifiquei a minha vida pessoal e familiar, mas o balanço global é positivo. Acho que os meus filhos hoje sentem, se houve momentos em que falhei – eu acho que falhei, mas na ótica deles talvez não porque eles não conhecem outro exemplo de mãe –…

Como não têm comparação, não há problema?

(risos) Há as mães que trabalham e as que não o fazem e a comparação é com as que trabalham. Mas acho que isto também os ajuda a crescer, dá-lhes um certo orgulho perceber que a mãe e o pai trabalham, que a mãe também tem uma carreira, que fala de outras coisas e não apenas, por exemplo, da escola. O leque de assuntos e desafios que lhes posso apresentar que é diferente.

Então, em Portugal, as mulheres não precisam de optar entre carreira e família se e só se cumprirem duas condições: ter alguns recursos económicos e rede familiar. É preciso então explicar que a chegada das mulheres ao topo não é assim tão simples.

Há empresas e empresas. Há vários níveis onde as mulheres podem estar ao presente em matéria da liderança. Óbvio, que a carga de trabalho é bastante grande. Havendo uma boa estrutura de cargos de direção – que esta casa tem –, é uma questão de como ajustamos os horários. Fazendo isso, tal não tem que ver só necessariamente com recursos financeiros e rede familiar. É claro que isso importante, mas é importante a mulher acreditar nela própria e deixar de achar que não tem hipótese. Aqui, tenho mais homens a baterem-me à porta a pedirem-me para rever a carreira do que mulheres.

Porquê?

O homem reclama muito mais as suas capacidades e competências, as mulheres acabam por ser mais passivas. Se houver uma primeira reação, se calhar, de agora não ser o momento certo para a empresa, elas acabam por aceitar.

Está a convidar as mulheres da RTP a virem bater à sua porta?

O que eu estou a dizer não se passa só no contexto da RTP, mas de outros onde também estive. Os homens acham que têm de pedir, têm de exigir. As mulheres não pedem e acho que é uma questão cultural.

Esta reviravolta tem de passar por, primeiro, pela consciência da competência que elas têm, e, segundo, pela luta pela sua posição. Nós, enquanto mulheres, e falo por mim, temos de ser muito mais lutadoras.

No encontro em que estive, em Berlim, isso também foi falado. Elas têm autoestima, mas às vezes acomodam-se, são mais compreensivas com a situação. Se a empresa estiver a passar por um momento menos oportuno, a mulher não vem reclamar uma promoção. O homem não faz isso. Esta é a minha experiência geral e não daqui.

E aqui, também é assim?

(Pausa) É a minha experiência.

Como mulher e tendo em conta os pelouros administrativos que tem em mãos, que marca gostava de deixar na RTP?

O legado que gostaria de deixar era o de que, pelo facto de ser mulher, a nossa missão e a nossa estratégia não ficam condicionadas. As questões da paridade já aconteciam na RTP, embora existam áreas onde devamos ser mais arrojados nesta matéria.

Quais?

Na área da informação, acho que precisamos de mais mulheres a dirigir, com mais visibilidade.

Porque não acontece?

Se calhar, a circunstância não permitiu.

Foram contratados alguns diretores [homens], recentemente.

Às vezes isso não acontece. Não há naquele momento uma mulher que reúna as características para aquela função, isso acontece. Também não podemos pôr uma senhora por ser uma senhora. Uma vez que tenho alguns chapéus/áreas de homens, gostava de mostrar que, pelo facto de ser mulher, há iniciativas e projetos dos quais não devemos estar afastadas.

Há ou sente resistência na RTP e nas áreas mais masculinas: engenharia, por exemplo?

Não senti. Esse é o meu background e vejo as coisas com naturalidade. Estou lá, ao lado, a promover que o trabalho seja feito, a identificar dificuldades, a ajudar a que as barreiras sejam ultrapassadas, sem medo, sem mostrar algum desconhecimento que possa ter sobre este contexto tecnológico. O importante é ter vontade de aprender, mostrar que tem outras perspetivas – e que talvez outras pessoas que trabalham há muitos anos aqui não terão -, e fazer esse caminho em conjunto. Estar ao lado e a puxar e não sistematicamente à frente. Essa é uma das minhas características e acho que é um legado que deixo aqui.

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