Catarina Alvarez é a coordenadora do projeto ‘Café Memória’ e ‘Cuidar Melhor’, ligados à Associação Alzheimer Portugal. Tem 43 anos e há dez que decidiu trocar o exercício do Direito para começar a frequentar Psicologia. Hoje, apaixonada pela neuropsicologia clínica, diz que é a faixa etária da população mais envelhecida que mais a cativa.
Num país que envelhece a olhos vistos, que conta com uma população com demência cada vez mais numerosa, esta psicóloga critica o atraso na definição de estratégias nacionais para pessoas com demência, mas também para quem cuida delas. Um universo no qual as mulheres são mais atingidas: seja pelo lado da doença, seja pelo lado dos cuidados.
Mas há mais e Catarina não ignora – uma preocupação que nunca se lhe descolou da pele – o aspeto jurídico associado à perda de autonomia de quem tem demência. Um mundo de memória onde o esquecimento não pode continuar.
Quando falamos de Alzheimer, falamos de uma doença que afeta mais as mulheres do que os homens. Porque é que tal acontece?
Em Portugal, estima-se que existam 182 mil pessoas com demência, esses são pelo menos os dados publicados pela Alzheimer Europe. Daqueles, 62 mil seriam homens e 120 mulheres. O principal fator de risco é a idade e o que sabemos é que a esperança média de vida para um homem português é de 77 anos e de 83 para a mulher e também sabemos que a partir dos 65 anos o risco de ter demência duplica de cinco em cinco anos. As taxas de prevalência podem chegar aos 40 ou 45 % aos 90 anos. Quando chegamos à quarta idade, os números são desanimadores e indicam uma maior prevalência em mulheres do que homens. A doença de Alzheimer, que é a forma mais prevalente de demência, pode chegar a 65% dos casos.
Há formas de identificar esses sintomas e de prevenir a doença?
Não há cura, nem forma de prevenção específica. Temos as indicações gerais que passam para a doença de Alzheimer e que passam por ter uma vida saudável, um bom padrão de sono, exercício físico, atitude preventiva em relação à saúde, fazer ‘check up’ regulares, ter atenção às quedas e acidentes, consumir moderadamente álcool, não consumir tabaco, nem drogas. Há depois a questão das doenças vasculares – e pode corresponder de 20 a 30% dos casos. Se evitar um acidente vascular cerebral, estarei também a evitar a demência vascular.
É coordenadora do ‘Café Memória’. Como surge, quem é que o procura e como pode ajudar a lidar com a doença de Alzheimer?
É um conceito internacional, bastante difundido no Reino Unido, e que nós adaptámos a Portugal, estando presente um pouco por todo o país. É um local de encontro para partilha de experiências, para suporte mútuo, para obter informações atuais, relevantes, cientificamente comprovadas sobre doença. Recebemos pessoas com problemas de memória, com demência, mas também cuidadores. Temos uma dupla missão: contribuir para que as pessoas saiam mais de casa, para que se sintam menos isoladas e tenham melhor qualidade de vida. Também temos um foco na comunidade no sentido de sensibilizar para este tema de saúde pública e social cada vez mais relevante em Portugal e no Mundo. O projeto arrancou em 2013 pelas mãos da associação Alzheimer Portugal e pela Sonae Sierra, temos um leque muito alargado de parceiros, entre eles a Fundação Calouste Gulbenkian, a Fundação Montepio e o Instituto de Ciências da Saúde da Universidade Católica Portuguesa. São também parceiros do projeto ‘Cuidar Melhor’ – que visa incluir e cuidar das pessoas com demências, mas também apoiar e valorizar os cuidadores, familiares e profissionais – integra a resposta técnica e de proximidade. Este projeto tem base concelhia e funciona em Cascais, Oeiras e Sintra. Para além destes gabinetes na comunidade, fazemos formação e sensibilização.
Quais os custos envolvidos para quem queira participar?
São sempre pensados em termos de valores sociais, tendo em conta os rendimentos das famílias ou fazendo face aos custos que a entidade tem. Os ‘Cafés Memória’ são gratuitos, não requerem inscrição prévia. No programa ‘Cuidar Melhor’ há uma série de serviços que são gratuitos, como por exemplo o encaminhamento. Temos depois serviços clínicos com preços sociais – em função dos rendimentos sociais – como, por exemplo, apoio psicológico, atividades cognitivas, mas tudo isso ainda muito concentrado em Lisboa. A Alzheimer Portugal tem também alguns gabinetes e núcleos por Portugal onde fazem este tipo de trabalhos.
Há possibilidade de alargamento deste projeto para fora de Lisboa?
Estivemos, até ao final de 2015, numa fase experimental do projeto, procuramos ver se esta resposta fazia sentido, se havia retorno social. Após a implementação da resposta no terreno, os parceiros entenderam que havia margem para continuar e para expandir do ponto de vista geográfico para outros pontos do país e à semelhança do que já temos vindo a fazer com o ‘Café Memória’. Este ano gostávamos de ter mais um gabinete a funcionar: no Porto.
Para quem não está em Lisboa ou Porto, como pode fazer?
Há atendimento pessoal, mas também telefónico, há ações de formação. O mais difícil, muitas vezes, é tomar a decisão de pedir ajuda e como nós não somos super-mulheres – embora por vezes achemos isso – temos que procurar apoio e não é só na associação Alzheimer Portugal. Muitas vezes, é preciso procurar, no contexto da própria família, na rede pessoal de cada um – os amigos, os vizinhos – todo este apoio e não contar apenas com um cuidador. O ideal seria: uma pessoa com demência, uma família.
Quando é que quem cuida de pessoas dementes procura ajuda?
A esmagadora maioria já chega quando tem o problema nas mãos e em fases muito adiantadas.
“Os homens assumem melhor não saber o que fazer e são mais pragmáticos, mais orientados para resolução de problemas. Muitas vezes encaram os cuidados como um novo trabalho”, afirma Catarina Alvarez
Em desespero?
Sim. Muitas vezes a pessoas não sabem onde pedir ajuda e já só quando não conseguem lidar com a situação é que vêm pedir ajuda. No caso das mulheres, sentem em particular uma certa obrigação e dever social e cultural, familiar de cuidar dos pais, dos sogros ou marido e concentram em si essa função. E como acham que é um dever e para o qual têm de ter especial competência para executar a tarefa, pedir ajuda pode significar, no fundo, não estar à altura.
Como preparar as mulheres ou dar ferramentas para evitar a espiral da depressão?
Mais depressão, mais vulnerabilidade à doença a física, a intervenção deveria acontecer antes da espiral e, infelizmente, tal não acontece. Muito precocemente e assim que assume o papel de cuidador, deve logo procurar ajuda.
Os homens assumem melhor como lidar com uma pessoa demente?
Eles assumem melhor não saber o que fazer e são mais pragmáticos, mais orientados para resolução de problemas. Muitas vezes encaram isto como um novo trabalho, conseguem distanciar-se mais do ponto de vista emocional. Os homens quando cuidam das suas mulheres têm mais apoio do que quando são elas a cuidar deles. Eles recebem mais apoio social de amigos, família, vizinhos. Parece que é mais fácil, ou parece que gera menos carga para os homens.
Que tipo de angústias, dúvidas é que as pessoas trazem quando chegam ao ‘Café Memória’?
É importante vincar que a tarefa de cuidar afeta a vida do cuidador. O tema que as pessoas mais trazem prende-se com a questão emocional, as pessoas vêm pedir estratégias para gerir esta sobrecarga. Por outro lado, procuram lidar melhor com a pessoa com demência. É que podemos ter de cuidar de um familiar com o qual há uma relação prévia pobre, pouco significativa e, de repente, temos de cuidar daquela pessoa. Portanto, é importante saber o que fazer perante a alteração do comportamento. Do ponto de vista da sobrecarga emocional, é complicado lidar com a deseducação social do nosso pai ou da nossa mãe, tal gera vergonha social e, em consequência, o isolamento.
“As cuidadoras mulheres reduzem muitas vezes a carga horária ou deixam muitas vezes de trabalhar para cuidar. Isto acontece precisamente numa altura em que precisam de mais dinheiro e de mais recursos. É um paradoxo infeliz, mas real”, diz coordenadora
E do ponto de vista financeiro? Numa sociedade com poucos, e cada vez menos, recursos, que tipo de angústia é que as pessoas demonstram ter?
As angústias são grandes e sabemos, nomeadamente, que as cuidadoras mulheres reduzem muitas vezes a carga horária ou deixam muitas vezes de trabalhar para cuidar. Isto acontece precisamente numa altura em que precisam de mais dinheiro e de mais recursos. É um paradoxo infeliz, mas real.
Há uma ideia de quantas mulheres em Portugal tomam essas opções?
Também há homens, mas a literatura diz que as mulheres são quem mais reduz a carga horária ou deixa de trabalhar para cuidar de familiares com demência. O ato de cuidar é tradicionalmente um ato feminino e, em Portugal, não há condições, nem sequer politicas, no sentido em que não há estratégia nacional para abordar este tema, apesar de solicitado há muitos anos para que seja discutida e publicada a dita estratégia – há duas resoluções na Assembleia da República promovidas por grupos parlamentares diferentes. Só com uma estratégia vamos conseguir cuidar das pessoas com demência e dos cuidadores de forma integrada. Há em França, no Reino Unido, mas, infelizmente, em Portugal não há. Não há ambiente político favorável e integrado nesta matéria. Não há nenhum estatuto do cuidador que privilegie ou que dê certos direitos a cuidadores. Estimamos que cerca de 80% das pessoas dementes sejam cuidadas pelos seus familiares [nr: contas feitas, as estimativas apontam para mais de 145 mil pessoas], não estão institucionalizadas. Apesar de sabermos que existem muitas pessoas com demência em lares, a maior parte das pessoas é tratada em casa e até certa altura da doença.
Porque é que a estratégia tem atrasado?
Para se implementar uma política, ela tem de estar financiada. Os princípios de atuação têm de estar enumerados, mas depois tem de haver um suporte financeiro para essas politicas. Os números são preocupantes e os gastos são, de facto, de monta.
Há uma ideia do montante necessário para implementar estas medidas ou quanto uma família gasta quando é cuidadora?
Não sei dar esse número, mas temos a noção que as despesas associadas a demência, do ponto de vista das famílias, são enormes. A partir do momento em que o país assumir o problema que tem em mãos vai ter de assumir esse custo e eu acredito que essa seja uma das razões que tem impedido o pontapé de saída nesta situação.
“Enquanto não houver uma politica para fazer face a este problema, a prestação de cuidados não vai ter a qualidade necessária, os requisitos – nomeadamente em contexto institucional e hospitalar – não vão estar atualizados porque a legislação sobre lares e centros de dia é antiga”, diz Catarina Alvarez
Quanto tempo em média um cuidador está responsável por uma pessoa com demência? Há estudos?
A estimativa aponta para oito a 10 anos.
Como se faz a transição para o lar?
É sempre uma questão difícil e à cabeça está a questão financeira. É difícil encontrar um lar que reúna todos os critérios que se pretendem para a pessoa de quem cuidam. Depois, é muito difícil sermos os responsáveis por tirar as pessoas o seu ambiente, da sua casa e de os colocar em instituições. É um verdadeiro desafio, com um período de adaptação longo, e muitas vezes as pessoas nunca se adaptam totalmente ao novo contexto, que deve ter rotinas sempre muito bem definidas. Ao contrário das pessoas que não têm demência, que devem ser estimuladas.
Mas com o envelhecimento da população tido por inexorável, essa é uma matéria incontornável. Como e o que fazer?
Se considerarmos 182 mil pessoas com demência – cerca de 1,7% população portuguesa – e de acrescentarmos um cuidador por cada doente, o número de pessoas duplica. Se for a família toda, o número quadruplica. No mundo inteiro, temos, em 2013, 44 milhões de pessoas com demência. Em 2030 serão 75 milhões, ou seja, um aumento exponencial vai acontecer no mundo e em Portugal. Sabemos que o problema em Portugal vai ser muito mais gravoso nos próximos anos e já é grave agora. Enquanto não houver uma política para fazer face a este problema, a prestação de cuidados não vai ter a qualidade necessária, os requisitos – nomeadamente em contexto institucional e hospitalar – não vão estar atualizados porque a legislação sobre lares e centros de dia é antiga.
“É preciso que as queixas de memória sejam valorizadas pelos clínicos”
No que diz respeito à pessoa com demência, por onde se deve começar?
Primeiro, num diagnóstico precoce e ainda há muitas pessoas diagnosticadas em fases tardias da doença. É preciso que as queixas de memória sejam valorizadas pelos clínicos, tenham uma avaliação formal. É que se forem diagnosticadas em tempo, as pessoas podem, elas próprias, preparar o seu futuro e, sempre que possível, tomar decisões sobre como vão querer ser cuidadas, como vão querer que o seu património e finanças sejam geridos, quem é que o irá assistir no que respeita a cuidados de saúde.
E quase como um testamento vital.
O testamento vital, uma fase inicial da doença, pode ser feito pelo próprio. Acontece muito pouco em Portugal. Temos de continuar a divulgar o testamento vital porque nos responsabiliza, porque dizemos como queremos ser tratados. O passo seguinte é cuidar e criar condições para que a pessoa com demência tenha mais autonomia durante uma fase mais prolongada no tempo. E maior autonomia corresponde a mais qualidade de vida. No âmbito da demência, levantam-se questões jurídicas importantes.
Como por exemplo?
O facto de as pessoas, a partir de determinada altura, deixarem de conseguir exercer de forma autónoma os seus direitos e de precisarem de ajuda por parte de quem os represente de forma legal, não pode ser uma representação informal. É um processo que decorre nos tribunais, perante um juiz, e há uma série de caraterísticas, de pressupostos jurídicos que as famílias deviam ter mais em conta e não têm. Há muita falta de informação sobre estes temas que incidem sobre o que fazer quando a pessoa deixa de ter autonomia, como resolver questões não só pessoais, mas também patrimoniais.
E como delegar? Normalmente, há um familiar que surge para cuidar da pessoa com demência, mas depois não há o risco de surgirem outros para cuidar do resto?
Na maior parte dos casos, os familiares são muito bem-intencionados. Já nem vou para aqueles que não o são. Há muita falta de informação, as pessoas acabam por agir de forma ilegítima e sem representação devida, e tal pode ter consequências gravosas.
E em matéria de cuidador, por onde se deve começar?
O cuidador, quando faz face a uma situação dessas, tem de procurar duas coisas: informação e formação. Não nascemos ensinados e é preciso conhecer e ter estratégias para lidar com alterações cognitivas e comportamentais de uma pessoa com demência. E, depois, é preciso que tenha, ao longo do processo, apoio psicológico. Há fases mais complicadas do que outras e o cuidador vai atravessar várias delas. Pode sentir-se muito capacitado, mas de repente a pessoa com demência entra numa nova fase, um novo comportamento, e o cuidador fica sem saber o que fazer.
“Apoiar o cuidador a um nível financeiro pode traduzir-se numa verba ou então numa redução de horas de trabalho sem a perda de remuneração (…) É importante aproveitar a rede familiar que existe ainda em Portugal, apoiá-la, suportá-la e qualificar as respostas que existem no terreno, institucionais ou hospitalares”, sugere Catarina Alvarez.
E a questão económica, por onde começar?
Parece que agora o estatuto do cuidador estará em cima da mesa e, no fundo, o caminho passa por variar as condições do ponto de vista social e económico para que possa cuidar melhor, sem sobrecarga, com contrapartidas. Se o cuidador trabalhar menos horas, mas tiver repercussão direta no seu rendimento, então estamos outra vez no mesmo. Lá fora, não conheço bem os regimes, mas apoiar o cuidador a um nível financeiro pode traduzir-se numa verba ou então numa redução de horas de trabalho sem a perda de remuneração. Há de passar por este tipo de esquemas.
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Como é que o Estado se pode ou deve envolver neste processo?
Com certeza que há envolvimento possível até porque estas famílias prestam serviço a comunidade ao cuidar dos seus. É claro que tem de haver um enquadramento, mas o estado não se pode alhear desta obrigação porque são cidadãos, em circunstâncias vulneráveis e que têm de receber apoio. Ou então, quem lhes presta apoio tem de ser apoiado. Portanto, é importante aproveitar a rede familiar que existe ainda em Portugal, apoiá-la, suportá-la e qualificar as respostas que existem no terreno, institucionais ou hospitalares.