“As pessoas já não querem ver-se ao espelho como elas são”

Autora de novelas de sucesso como O Clone, América ou Caminho das Índias, Glória Perez prepara-se para estrear uma nova história A Força do Querer. Conhecida por apostar em mulheres que quebram barreiras e trazer a discussão, na ficção, temas fraturantes da sociedade, a argumentista quer agora falar da transsexualidade e do corpo.

Já sabe que vai instalar a polémica, mas isso é o que menos a preocupa. Critica a elite brasileira, que se sente melindrada e parece não gostar de ver alguma homossexualidade na televisão. Mas Glória dispara também contra a sociedade, cada vez mais divorciada do corpo e da mente.

Uma conversa transversal na qual Glória não esconde as duras recordações: o cancro e a perda da filha

Prepara-se para estrear uma novela no Brasil, A Força do Querer, que vai tratar o tema da transsexualidade. Porque escolheu este tema’

É o tema que está no ar, a desconstrução de género é uma barreira que está a ser quebrada e as pessoas estão perplexas, sem conseguirem entender o que é isso. Resolvi falar da transsexualidade agora porque é a hora de explicar o que é, o que é o género e o como vive quem nasce e sente incompatibilidade com o corpo, como é que a família, por exemplo, vive essa transformação.

Há alguma razão de debate no Brasil, de momento?

É uma coisa que está a ser discutida no mundo, está à nossa volta. A internet deu voz a pessoas que se sentiam muito isoladas antes. Muita da pesquisa que fiz foi através da internet, contactei pessoas que falavam nas redes sociais, nos media, em videos para conseguir compreender melhor este universo. As redes sociais deram uma visibilidade maior e elas, ao sentirem que não estavam tão sozinhas, começaram a falar mais.

Escolheu lançar a discussão na adolescência. A sua personagem é adolescente. Porquê?

A personagem [interpretada por Carol Duarte] tem 19 anos.

Mas escolheu essa idade porque é a altura em que lhes é permitido fazerem todo o processo de mudança de sexo e registo civil?

Poderiam, mas há muita dificuldade ainda, eles reclamam muito sobretudo no que diz respeito ao nome social. Há ainda muita dificuldade nesse campo Todos eles falam muito de uma situação em que, num consultório médico, está um homem sentado na sala de espera, mas depois ouve-se chamar por uma mulher.

Há muita luta pela aceitação do nome social, pela utilização de casas de banho, uma situação que está sempre a provocar conflitos: que casa de banho estas pessoas devem frequentar?

Enfim, é uma condição muito nova. O trans não é uma questão humanamente falando, mas ela é nova para o social, é algo que está agora em movimento na sociedade, que ainda se está a arrumar na cabeça das pessoas.

Se olharmos para trás, na novela America em 2006, escreveu um beijo gay. Foi filmado, com várias versões até e a Glória dizia que o público queria ver essas imagens. A verdade que a Globo não as passou. Se foram preciso oito anos para a emissora mostrar um primeiro beijo gay numa novela, quanto tempo precisou a Glória para convencer a Globo a tratar o tema da transsexualidade?

Não tive de convencer, aceitaram muito naturalmente.

O envolvimento amoroso e sexual de um transsexual vai ser retratado?

Nem é preciso chegar aí. Admitir a condição do trans, o direito da pessoa em fazer travessia para outro género já é é polémica e já está a despertar curiosidade e reações positivas ou negativas. Não é preciso retratar o envolvimento amoroso e sexual. Essa parte não vai ser o principal da minha novela.

Começo por mostrar o drama de uma pessoa não se reconhecer no seu próprio corpo. Muitas delas, não sabiam o que eram e só começaram a definir-se após a conversa com outras. Depois dessa angustia, quero mostrar como ter acesso a tratamento, aos remédios, ao médico. Muitas vezes a maioria das pessoas não tem. Muitas vão à farmácia, automedicam-se e até se colocam em risco.

Vou retratar também a extrema agressão que essas pessoas sofrem. Há espancamentos, há reações muito violentas e tudo isso vai ser mostrado em A Força do Querer. Por isso, o relacionamento o mínimo. Mas votando ao beijo gay, é curioso porque, naquela época, eu sabia que as pessoas na rua queriam ver. Mas as maiores reações vinham da parte de setores, nos blocos de classes mais altas.

Isso prova que…

…Prova que temos uma elite muito chata. E talvez a emissora tenha levado isso em conta na hora de decidir não mostrar. Temos uma elite no Brasil que tem uma aversão – e isso está a melhorar com o tempo, mas não está totalmente sanado – a tudo o que é muito popular e tem aquela coisa elitista de querer ensinar o povo, de que eles podem divertir-se, mas que as novelas tem de educar.

Olham para esta questão gay e acham que isto é deseducação ou um incentivo para todos serem homossexuais. O grande público estava apenas a ver a história de alguém, mas há uma “elite” intelectual que gosta de ditar regras, dizer que o povo deve seguir uma cartilha e que a novela tem de ser educativa. A novela não tem de ser educativa.

Se educar, melhor ainda, mas ela é diversão. Quando falo destas pessoas chatas, estou a dizer que ; ficam contra a dramaturgia e a televisão precisamente porque elas diverte, porque é uma alienação.

Traz o culto do corpo nesta novela. Porquê?

Porque uma coisa puxa a outra. Se falamos da compatibilidade com o corpo, também vivemos numa época de uma ditadura do corpo. Aqui em Portugal acho que é menos, mas no Brasil é inacreditável.

Como assim.

Lá, há uma cultura do corpo perfeito que leva as pessoas a extremos.

Como por exemplo?

Anorexia, tomar bombas para ficar muito insuflado – homens e mulheres fazem isso – e com repercussões na saúde. Nós vemos no quotidiano as pessoas que nascem com um corpo e querem ter outro, muito para lá do que é a transsexualidade. Vivem numa angústia. É como se houvesse um menosprezo pela pessoa que não tem o corpo correspondente ao da revista e ao da manequim.

Por isso, trouxe para esta novela poder do plus size, o poder da gordinha, que não liga a isso, que está muito contente com o corpo que tem. Que se acha e é muito sedutora e vive muito mais feliz do que a outra que come uma alface por semana (risos), para poder manter um corpo que, na verdade, nunca chega lá.

Repare, basta abrir o Facebook para ver que tudo tem muito photoshop, filtros porque as pessoas já não querem ver-se ao espelho como elas são. Elas querem formar uma imagem, uma idealização do corpo perfeito e isso é um problema muito grave da nossa época. É uma distorção, um divórcio da mente com o corpo.

Também vai tratar a compulsão do jogo na pele de uma mulher. Porquê?

Aí quero apenas falar da compulsão. Está na pele de uma mulher (Lília Cabral), mas o que pretendo é retratar o vício, não necessariamente pelo género.

Com as devidas distâncias, a Glória também adora jogar e há um jogo em particular: caçar Pókemons.

Gosto. Estou no nível 21 (risos).

Quantos é que já apanhou nesta visita que fez a Portugal?

Apanhei alguns e houve quem tivesse apanhado uns no Porto por mim. Eram três maravilhosos (risos). Mas não ando atrás de Pókemons na rua (risos). Só faltava essa. Já era de mais e eu tenho preguiça (risos). Agora, se eu estou no lugar e ele está, então eu capturo (risos).

Quando escreve novelas, pensa nos temas olhando para as mulheres?

Não, eu penso em gente, homens ou mulheres.

Que papel têm as mulheres na sua ficção?

As mulheres da minha ficção rompem sempre barreiras. Os homens também, mas para eles as barreiras estão abertas desde que nascem, não precisam de quebrar muitas fechaduras. (Sorriso). As minhas protagonistas são sempre mulheres que rompem regras, desafiam situações.

Nesta novela também é uma mulher que faz a travessia para o sexo masculino.

Olhe, nem pensei em género. Queria tratar do tema e achei que era mais desafiante ter uma mulher a fazer a travessia para Homem do que ao contrário. Como há aliás, e até bastante popularizada, a figura do travesti, achei que poderia ser confundido. E vou ter travestis na minha novela para poder exatamente explicar as duas realidades.

Há novelas sem mulheres protagonistas e ter público?

Não sei. Não faço essa diferenciação de género quando faço uma novela, não penso nisso. Gosto de escrever sobre gente e ai olho a sociedade como ela é e, se escolho uma mulher, ela vai enfrentar os problemas desse ponto de vista. É claro que escrevo mais comodamente sobre mulheres porque sou mulher, é um universo que me é mais íntimo. Mas não o faço por ter uma postura exacerbadamente feminista.

Esta sua novela vai embater com uma outra, na TV Record, baseada na história da Bíblia: O Rico e o Lázaro. Como antecipa este embate na sociedade?

A Igreja, o Papa Francisco deu um avanço muito grande, ele está a olhar para a realidade. Há muito tempo que não tínhamos um papa que falasse da realidade, não da idealizada, mas daquela em que mundo é como é. Não sei o que ele falou dos “trans”, mas se não falou está para falar daqui a pouco (risos). Mas se me pergunta como vai ser o embate entre uma história desafiadora e uma outra bíblica, que fala de bem e de mal…

Essa conceção está em todas as histórias, independentemente de ser bíblica ou não, depende de como a pessoa vê a situação. Há muita gente que vai olhar para o “trans” e vai ver o bem ou o mal, há muita gente que vai assistir à outra história bíblica… mas repare, da novela não sei, mas a Bíblia não é nada inocente.

Todas as circunstâncias humanas estão ali retratadas, tal como na tragédia grega. Qualquer história que queira contar, está lá. Portanto, para já não vejo a diferença. ;

Fafá de Belém sempre vai participar em A Força do Querer?

Vai fazer uma participação na novela, mais pelo meio. Ela vai cantar (risos). Ela é uma mulher bem popular que vem do Belém do Pára. Ela vai estar como atriz, embora surja como cantora. Foi facílimo convencê-la a participar porque ela é de Belém e ela aprecia muito isso.

Viveu um cancro [linfoma]. Tratando-se de uma realidade cada vez mais crescente, os números e as perspetivas apontam para um aumento, que mensagem deixa a quem se confronta com a doença?

Fui muito atenta e segui à risca o que o meu médico me disse: parte do tratamento depende dos remédios e parte depende de nós. Devemos fazer a parte que nos cabe, que é manter a confiança porque, hoje em dia, é possível vencer em muitos casos. É importante continuar a trabalhar e estar sempre com um projeto para o futuro.

Mas como se faz isso quando se está perante uma situação destas?

Nós vimos de uma geração em que nem sequer se dizia o nome da doença. Claro que quando tive este diagnóstico, a primeira coisa que perguntei ao médico foi quanto tempo tinha. Ele deu-me o tal conselho. Na altura, eu estava a escrever a novela Caminho das índias e perguntei se devia entregar a novela – como trabalho sozinha e isto implica um número grande de pessoas e custos – para poder fazer o tratamento. E ele disse-me para não largar porque era muito importante manter a visão do futuro.

Acabei a novela, o tratamento, fiquei boa e no fim ganhei um prémio: um Emmy. (Risos) Então, por menos percentagens que se tenham, é importante manter a fé nesse prognóstico. Porque na verdade, o estado de espírito influi, até quando estamos perante doenças menores.

Se se fica depressivo, isso ajuda a doença a tomar mais conta de nós. Não estou a dizer que o estado de espírito é a salvação, mas ajuda. Eu conheci pessoas que fizeram o tratamento na mesma altura que eu e que sabiam que não iam sobreviver, mas duraram mais tempo do que o que estava previsto por terem esse pensamento.

Em dezembro fez uma homenagem à sua filha Daniela Perez [assassinada em 1992 por um colega de elenco e pela mulher deste]…

… faço todos os anos. É um desabafo.

Como mulher e como mãe, como se vive esta perda ao longo dos anos e como se gere isto com o outro filho?

Essa é uma pergunta complicada porque são baques, são coisas que massacram e que não passam. Por mais que estejamos rindo, alegres e curtindo outras situações, aquilo está lá dentro, vai caminhar connosco até ao fim das nossas vidas. Não há receita para viver isso. A receita é “aguente” porque não há outra maneira, não há como se desenvencilhar desse peso.

Faz sentido procurar ajuda, conversar. É um caminho que se faz sozinha ou é melhor ser feito acompanhada por pessoas que tenham sofrido uma perda semelhante, de luto?

De certa forma, as pessoas que viveram situações de perda e de luto atraem-se, até porque a vida não passa para a pessoa, mas para quem está à volta sim, e depressa. A mãe do Cazuza, a Lucinda Araújo, sempre diz que está muito alegre, não fala desse assunto porque logo vão dizer “lá vem a chata!” Porque a vida anda para as outras pessoas, mas aquele assunto fica sempre dentro de si. As pessoas que têm luto entendem-se porque há coisas que só quem viveu sabe e podem conversar entre si de uma forma que não vão fazer noutros ambientes. Mas tudo depende da necessidade de cada um.

E como se lida com esta realidade quando se tem outro filho. Como se vive?

Normal, porque é o seu filho [Glória tem três filhos, perdeu o segundo, Rafael, em 2002, por doença]. Há continuidade e é importante viver a vida que sempre se teve com ele, procurar não sufocar de mais. Ficamos mais preocupados com tudo, mas é normal. Não se pode ficar a trazer essas coisas para a convivência porque isso é um peso meu. É claro que ele tem peso dele, como irmão é menor, mas não posso transferir isso para ele, nem de o sufocar ou paralisar.

Imagem de destaque: Gonçalo Villaverde/Global Imagens