Audur Ava Olafsdóttir: “Não nascemos mães ou pais, é algo que temos de aprender”

Um homem convencional perde tudo. Separa-se da mulher de sempre, descobre que não é o pai biológico da rapariga que sempre pensou e parte para arrumar de vez a vida. A história masculina sobre o arquétipo do islandês é contada, por contraste, pelas mulheres da vida daquele homem, no novo e premiado livro Hotel Silêncio [Editora Quetzal, €14,90]. É assim que a autora Auður Ava Ólafsdóttir, de 61 anos, natural de Reiquiavique quer contar histórias, varrendo para longe qualquer detalhe autobiográfico.

Romance 'Hotel Silêncio', da islandesa Audur Ava Olafsdóttir
Romance ‘Hotel Silêncio’, da islandesa Audur Ava Olafsdóttir

De voz calma e pausada, Auður, professora de História da Arte na Universidade da Islândia e diretora da coleção de arte dessa instituição, vai olhando para as mulheres dos romances, desiguais até na ficção, e para aquelas com quem convive na vida real, no país dos maiores progressos sociais. Fala dos mitos da maternidade e da paternidade, das mulheres que limpam as crises e até do caminho que falta para a igualdade salarial na Islândia.

No livro A Mulher é Uma Ilha escreveu sobre mulheres serem abandonadas e que depois reconstroem a vida. Neste novo livro, inverte e escreve sobre as impressões e efeitos de um abandono num homem. Quis olhar para as duas realidades?

Em ambos livros existe a questão da viagem, a viagem interior a um determinado ponto crucial das vidas das personagens. Ambos são sobre a capacidade de um e outro se regenerarem, como a Fénix, para se tornarem outra pessoa. A viagem na literatura é sempre interior. Quando se volta, é-se sempre uma pessoa diferente, com mudanças. É um tema comum em autores que vivem em ilhas: viajar, navegar e voltar depois mais maturo, mais sábio ou com outra perspetiva.

Há diferenças em ser-se abandonado sendo-se homem ou mulher?

Hotel Silêncio é mais focado no sofrimento humano e na dor, é mais sobre uma ressurreição. E pode vir de muitos pontos. Falo de um homem divorciado que descobre que não é pai da filha que achava e que não tinha vida sexual. Para lá do sofrimento, há sempre uma história pessoal. Tudo isto é diferente da felicidade, em que se está feliz, e ainda bem. Para o escritor é muito mais interessante o que está para lá do sofrimento. E acaba por ser um livro sobre mulheres, que têm o mais importante papel neste livro. A ficção funciona por opostos. Gosto de escrever livros que trazem alguma esperança, trazem luz, mas para isso é preciso falar da escuridão. Este homem é o anti-homem, é o arquétipo islandês, faz tudo o que uma mulher deseja, mas é silencioso.

Escreve sobre o silêncio dos homens num dos países mais progressivos para as mulheres.

(risos) Sim. Estou a falar sobre este arquétipo masculino da Islândia a um mundo partido, e de forma a tentar emendá-lo. Quero perguntar: é possível reparar um mundo partido? É possível ser-se bom na vida? Quão frágil é o corpo? Se há uma moral ou mensagem no livro é a de que ninguém pode fazer tudo para salvar o mundo, mas cada um pode fazer uma pequena parte. Se não fizermos nada, seremos os responsáveis. À minha volta, vejo miúdos serem pessimistas e penso que preciso de escrever sobre esperança. Tenho duas filhas adultas, são inteligentes, creio que elas são bastante pessimistas relativamente ao estado do Mundo.

Escreveu o livro a pensar nelas?

(Silêncio) É mais abstrato do que isso. De certa forma, poderia dizer isso, mas não é a única resposta. Também estou interessada nesta masculinidade e olhar para a essência da masculinidade em conexão com o sofrimento, trazer alguma luz sobre isso. Num romance anterior escrevi sobre sensibilidade masculina, a paternidade. No fim deste livro há uma citação: “a mulher é o futuro do mundo”. Um homem pensa o mundo em termos económicos e curto-prazo, as mulheres pensam o mundo socialmente e a longo-prazo. Brinquei com alguns números que conhecemos no livro, é assim que a literatura funciona, uma extração do real.

Mas que diferenças quis trazer?

Em A Mulher é Uma Ilha explorava a ilha como se fosse um corpo de uma mulher. Aqui exploro a viagem masculina como se fosse uma paisagem. É interessante quando lemos autobiografias escritas por homens, eles começam sempre pelo nascimento, tendo nascido génios. Eles escrevem os livros para mostrarem porque é que são génios. Mas se se escreve autobiografias por mulheres escritoras, autoficções – que não são os meus livros – o corpo é o tema central do livro e a história costuma começar sempre na puberdade. Não costuma começar no dia do nascimento.

As mulheres ‘nascem’ mais tarde? Porque é que isso acontece?

As mulheres escritoras nascem mais tarde e o corpo é sempre central. Eu sou uma típica mulher escritora porque comecei a escrever muito tarde, aos 40 anos, fui antes professora universidade, tinha uma profissão muito interessante e da qual gostava.

Falava sobre paternidade em Rosa Cândida. Hoje em dia, a Islândia tem um dos sistemas de licença de parentalidade mais equilibrado [3 meses para mãe, 3 para o pai e 3 à escolha de um outro]. Que diferenças nota?

Muda enormemente tudo. Os pais têm uma conexão muito mais próxima com os filhos, laços mais estreitos que se refletem mais tarde. É muito muito bom para a sociedade. Os primeiros meses e anos contam imenso.

Que mudanças notou?

Na minha geração, via-se um pai a andar sozinho com o carrinho, mas hoje vemos jovens juntos com os seus filhos a irem a cafés, nos jardins. Mudou a maneira como os jovens homens veem o mundo e como dividem as tarefas em casa. Mas as mulheres continuam, na Islândia, a trabalhar ainda mais do que os homens.

Há uma parte que é opcional. Eles escolhem mais ou ainda são elas a ficar com o segundo período de três meses?

É mais comum a mãe ficar com os seis meses e o pai três. Depende também dos trabalhos de cada um e das suas capacidades de cada um tomar conta de um bebé. Não nascemos mães ou pais, é algo que temos de aprender. Não está nos nossos genes. Não acredito que as mulheres estejam mais aptas que os homens. Há casos em que sim, mas também pode ser o contrário. Também depende do trabalho dos pais. Se um tem um trabalho parcial, ele talvez fique mais tempo em casa, e isso pode acontecer com o pai.

No que diz respeito à igualdade salarial na lei, a Islândia foi pioneira a legalizá-la. Contudo, o diploma não diz se esse nivelamento de salários entre homens e mulheres deve ser feito se por cima, se por baixo. Como olha para isto?

A lei é uma coisa, a realidade é outra. Temos de começar por algum lado. Mas, de facto, não é perfeito. Bem, as mulheres parecem estar ainda menos interessadas em responsabilidades em dirigir coisas por alguma razão, porque há ainda mais responsabilidades junto das famílias. Há muitas mães solteiras na Islândia, também há pais solteiros. Mas, a verdade é que, pelo menos, tentaram alterar a lei. Na Islândia temos um problema – que podendo não parecer – tem a ver com a educação mais alta que elas têm face aos homens, mas que depois não se reflete no resto da cadeia. São mais de 70% de alunos femininos e que prosseguem os estudos.

Portugal poderá adaptar modelo islandês para a igualdade salarial

Em engenharias, costumam existir mais homens, mas hoje temos muito mais mulheres, que depois não chegam ao campo. Mas isto pode vir a ser um problema no futuro. Está ter mulheres mais formadas. Quando há mais gente formada, os salários depois baixam e temos de ver como ficará isso no futuro. O maior desafio hoje em dia são os salários mais altos e como os nivelar. Somos uma sociedade pequena, conhecemo-nos todos, é preciso olhar para a realidade e não voltar a cometer os mesmos erros do que antes de 2008 [crise da banca], evitar que os mais salários altos continuem a disparar.

As mulheres ainda fazem os trabalhos mais duros?

Temos agora uma mulher primeira-ministra, Katryn Jakobsdóttir. Tivemos uma mulher governante [Jóhanna Sigurðardóttir] que, em 2008, fez toda a limpeza depois da crise financeira que atingiu a Islândia. Ela não foi muito popular, não foi reeleita, mas fez o que tinha de ser feito. Hoje, temos esta coligação de esquerda-verde, temos uma jovem mulher da literatura, muito inteligente, que até tem vindo a ensinar os meus livros (risos). Sim, acho que as mulheres fazem a limpeza em sociedades pós-crise, pós-guerra, e isso ficou evidente sobretudo depois da IIª Guerra Mundial.

E fazem-no porquê?

As pesquisas dizem que quando há crises, há imensa pressão, é é preciso manter a sociedade coesa. E quando a crise financeira se deu, as mulheres foram para a emergência porque tinham de ser os pilares da sociedade.

Que romances, que livros está a preparar?

Estou sempre a procurar buscar o que significa ser humano. Tentar descobrir coisas sobre o tempo, estou interessada no paradoxo que nos torna humanos. Estou a trabalhar num novo romance sobre uma poeta, de 1963, que entra numa competição de beleza. Chama-se Miss Islândia. Estou a trabalhar numa peça para o Teatro Nacional de Reiquiavique, que estreia em setembro. É uma peça que escrevi antes de Hotel Silêncio, que coloquei de parte e à qual voltei. Chama-se qualquer coisa como O Homem é o Único Animal Que Ri.

Miss Islândia é autobiográfico, uma vez que, creio, também passou pelo universo da moda?

Não. Escrevo para procurar respostas para algo que não conheço. É sempre imaginação. Aqui, lamento, não há nada meu.

É uma decisão constante?

Sempre tive esta ideia de que tenho algo a dizer. Claro que temos sentimentos, experiências, sabemos coisas – sabemos ainda mais com a idade – também sinto que sei menos (risos). Mas se há algo de autobiográfico, é sempre o que se esperaria menos. Gosto de colocar a minha imaginação ao serviço da exploração de paisagens interiores de pessoas e personagens.

Fotografia: Filipe Amorim/Global Imagens

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