Os anos 90 trouxeram as televisões privadas e, com elas, bailarinas e assistentes de produção subitamente transformadas em objetos de desejo sexual. Elas foram uma das maiores armas de arremesso na acesa competição por audiências. Mulheres jovens, particularmente bonitas e que surgiam no ecrã praticamente despidas para receberem concorrentes, darem beijinhos ou estalos, para dizerem a lotaria e para entreterem, geralmente sem proferirem uma única palavra.
Mais de três décadas depois, o documentário de dois episódios da Max, Yo fui Mujer Florero (Fui mulher decorativa, em tradução literal) reúne e volta a escutar muitas dessas mulheres que foram estrelas com a chegada da estação privada Telecinco, a Espanha. Desde as célebres Mama Chicho ou Cacao Maravillao, passando pelas assistentes da lotaria – que liam o número sorteado em microssaias e crop tops -, e pelas ajudantes em concursos, elas eram a beleza sexualizada e objetificada em formatos liderados por apresentadores masculinos geralmente de meia idade.
A série que é tudo menos uma viagem nostálgica a esse uso do corpo da mulher – e que também teve lugar em Portugal -, analisa esta realidade não pelos olhos da sociedade, mas pela voz destas mulheres, de como se sentiram à data e como se veem agora depois deste percurso.
Com estreia de Yo fui Mujer Florero marcada para esta quinta-feira, 12 de dezembro, na plataforma de streaming Max (cujo trailer pode ver abaixo), a Delas.pt ouviu o realizador da minissérie documental, Rafa de los Arcos, e a subdiretora da produção, Meritxell Aranda.
“Ultimamente, temos assistido a muitos projetos em torno de momentos nostálgicas da cultura popular, mas este era um tema por explorar, não é apenas um tema saudosista, [o documentário] tem uma componente social que nos permite fazer uma reflexão e trazer este momento para a atualidade e para o papel atual da mulher”, conta o realizador Rafa de Los Arcos. A subdiretora da produção Meritxell Aranda detalha que se está diante de “uma viagem pelas mãos destas mulheres, que protagonizaram esta era da televisão” e que foi feito ao longo de quatro anos, alguns ‘sim’ e outros ‘não’. “Houve muitas mulheres que nos disseram que não ou porque já eram atrizes ou porque tinham seguido as suas vidas e quiseram deixar esta fase para trás, enterrar, mas também encontrámos mulheres com muita nostalgia daqueles anos e daquela época”, acrescenta a subdiretora.
Uma análise histórica, mas também na primeira pessoa e que ouviu bailarinas e assistentes como Beatriz Rico, Miriam Diaz Aroca, Carmen Russo, Maria Abradelo e Loreto Valverde. “Quando lhes ligámos a primeira vez não foi tão fácil, mas aos poucos fomos ganhando a confiança e explicando que este trabalho era um olhar de homenagem e de investigação”.
“Ouvi-las para este documentário
mudou a perspetiva que tínhamos sobre elas”
E, nesta investigação documental de dois episódios, o que mais surpreende Meritxell Aranda é que “aquelas mulheres, na sua maioria, não se sentiam objetificadas, mas sentiam que lhes tinha sido colada uma etiqueta, vemos que aquelas mulheres sentem que tiveram um papel imprescindível nos anos 90 e sentem que foi uma fase plena das suas vidas”.
Para a subdiretora as respostas que ouviu – e a surpresa – são claras: “elas sentiam-se bem com os seus trabalhos, com dinheiro, tornaram-se totalmente independentes com o que ganhavam e faziam o que queriam. Ouvi-las para este documentário mudou a perspetiva que tínhamos sobre elas.”
Rafa de los Arcos confessa que havia uma sensação “condescendente, de piedade, como jornalistas, realizadores e produtores, e estamos surpreendidos com o que ouvimos. As coisas são mais complicadas do que parecem. Olhar para esta realidade apenas vista do sofá seria uma barbaridade, sinto que elas resgataram a dignidade que têm do seu trabalho”.
“Elas são muito conscientes do que viveram e fica claro que não é justo avaliar o que faziam à data pelos olhos dos dias de hoje, era importante dar-lhes voz”, acrescenta a subdiretora.
Assédio sexual, e como um ‘não’ lhes pôs fim aos trabalhos
Apesar desta dignificação e de voz que os responsáveis de Yo fui Mujer Florero dizem ter escutado das entrevistadas, a verdade é que, parte delas, viu a sua carreira interrompida por terem dito um “não” mediante uma tentativa de assédio sexual exercida, tendo em conta os relatos, por responsáveis televisivos.
“Era um dos temas que, no início, não estava no guião, mas que elas sentiram necessidade de abordar”, nota o realizador Rafa de los Arcos. E porquê? “Na sociedade daquele tempo, a maioria dos diretores era do sexo masculino, e elas trouxeram [neste documentário] a realidade de uma sociedade machista, um retrato de um país que não falava disso e ainda muito longe do MeToo”, argumenta Meritxell Aranda.
Uma realidade que, para los Arcos, não mudou, “matizou-se”. “O processo continua a correr sobre as mulheres bonitas, agora mais nas redes sociais. Na verdade, a mulher continua a ser e a estar no centro do mercado”.