Para seres vítima não te basta ser, tens de parecer

“Mulher determinada, autossuficiente. Não é verosímil que uma mulher autodeterminada, independente financeiramente não tenha ido a uma urgência hospitalar. Ela era uma mulher destemida.”

É verdade. A lei portuguesa distingue a violência doméstica da ofensa à integridade física pela conjuntura de sujeição da vítima ao agressor. A vítima tem de estar numa posição subalterna e essa posição em que a vítima se sente um ser inferior pode ser uma questão objetiva – como não ter rendimentos ou habitação próprios – ou pode ser subjetiva. Se a vítima se sente inferiorizada por meses ou anos a ouvir que é burra, que não presta para nada, que deve estar calada não se consegue aferir. Numa situação como esta nunca vamos saber se a posição diminuída em que a vítima se encontra é real ou não. A própria vítima terá muitas vezes dificuldade em detetar que está a ser alvo de abuso até ser tarde demais. Quem nunca passou por uma relação abusiva que atire a primeira pedra.

O impressionante dos casos que têm vindo a público nos últimos meses é esta facilidade com que se julga o carácter da vítima para se chegar a uma conclusão, a uma sentença. A mulher é adúltera logo não é indefesa. A mulher é independente, logo não é vítima. A mulher tem uma vida sexual ativa logo não se pode queixar de ser violada.

Sim, violada. Aqui ao lado, em Pamplona, corre nos tribunais um processo conhecido publicamente por La Manada. Nas festas de San Firmin de 2016, cinco rapazes terão violado uma rapariga na rua. A acusação diz que a vítima estava envolvida com um dos homens do grupo e que os restantes quatro resolveram participar. Desse passo à violação coletiva foi um piscar de olhos. A rapariga diz que não deu consentimento e apenas fechou os olhos, “para que passasse depressa”. A defesa dos presumíveis violadores diz que nas gravações que fizeram – porque agora há sempre vídeos das agressões para perpetuar a valentia dos criminosos (?) – não se vê “nem asco, nem dor, nem sofrimento”. O caso rola nos tribunais, deve chegar a sentença no início de janeiro e, entretanto, o tribunal e o público ficaram a saber da vida sexual da vítima ao detalhe, enquanto os “amigos” dos agressores têm tempo de antena para que se saiba que são todos bons rapazes.

Hoje também ouvimos dizer que o acusado de violência doméstica agora ilibado de todas as agressões é “professor muito querido pelos alunos” e figura de “gabarito intelectual”. A declaração é atribuída à Juíza que assim defende a decisão de inocentar o professor.

Então, para seres uma vítima relevante é melhor que durante todos os períodos da tua vida sejas impoluta (seja lá o que isso for), que nunca dês um mau passo – ou seja, nunca tenhas a veleidade de ter uma vida sexual feliz. Aliás, nunca sejas feliz, nem independente, nem forte. Limita-te a não seres nada, nunca, na vida. Talvez assim possas um dia chegar à barra do tribunal e dizer que és uma vítima verdadeira, que sim apanhaste sem merecer, sim tiveste numa violação a tua primeira relação sexual. Aliás, nunca venhas a tribunal porque isso de quereres que se faça justiça por um crime cometido contra ti já configura uma espécie de autodeterminação e isso, toda a gente sabe, é o primeiro passo para não seres uma vítima.