Em “3D: Double Vision”, a curadora leva os visitantes ao passado do Mosteiro através de uma máquina estereográfica há muito desaparecida.
Por Ana Rita Guerra, em Los Angeles
A maquineta de madeira foi construída há quase um século pela Keystone View Company, no auge da loucura com imagens estereográficas. Ao aproximar os olhos dos orifícios com lentes, a mente é imediatamente transportada para o passado: o que a maquineta mostra é uma cena 3D no interior do Mosteiro dos Jerónimos, por volta de 1934, quando o espaço ainda era ocupado pela Real Casa Pia de Lisboa.
A raríssima imagem estereográfica, onde se podem ver quatro crianças no orfanato que existia à altura nos Jerónimos, foi escolhida pela curadora Britt Salvesen para ilustrar a tecnologia da Keystone View Company nos anos trinta do século passado. Faz parte da exposição “3D: Double Vision” que abre em Los Angeles no domingo e se debruça sobre 175 anos de exploração de imagens 3D, desde a obsessão dos vitorianos em meados do século XIX até às televisões com óculos especiais que invadiram as lojas entre 2009 e 2010.
“É diferente de ver um quadro ou uma fotografia”, explica Britt Salvesen ao Delas sobre a experiência de ver estas imagens estereográficas. O seu funcionamento é simples: colocam-se duas imagens lado a lado, com ligeiras diferenças, e o cérebro “funde-as” através de lentes que passam a mostrar uma única imagem com relevo. Dá a sensação de profundidade e de presença no espaço, imitando o processo natural de visão binocular. “Claustros do Mosteiro dos Jerónimos, agora Orfanato, olhando para o pátio, perto de Belém, Lisboa, Portugal”, é a legenda desta imagem estereográfica que poderá ser vista pelo público de Los Angeles a partir de 15 de julho. A imagem é a número 463 de uma série de 600 que foi produzida nos anos trinta com a designação “Tour of the World Travel Series.” Está inserida na coleção do Museu de Fotografia da Califórnia e foi escolhida para a maquineta da Keystone View Company que estará na exposição “Double Vision” até março de 2019.
Salvesen, diretora do Wallis Annenberg Photography Department e do Prints and Drawings Department do LACMA (Los Angeles County Museum of Art), passou os últimos cinco anos a conceber esta exposição inédita na América do Norte. “Levou muito tempo por causa de toda a investigação envolvida”, explica. “Precisávamos de imagens de elevada qualidade e de garantir que estavam bem alinhadas”, diz, referindo-se às imagens estereográficas como a do Mosteiro dos Jerónimos. Há também cenas de Paris no século XIX, da guerra civil americana e de uma Londres desaparecida. São, provavelmente, os momentos mais interessantes da exposição, que atravessa todo o histórico de composição de imagens 3D em várias partes do mundo. A sensação de transporte para o passado é maior com estas imagens que na visualização de vídeos 2D.
“Existe, ao longo do período moderno e começando na revolução industrial, um fascínio com a imagem mais realista possível e com a duplicação da perceção humana”, afirma a curadora. “De certa forma, são objetivos inalcançáveis: a meta está continuamente a fugir.” Este interesse pela ilusão, nos últimos anos, materializou-se no advento de novas tecnologias de realidade virtual e realidade aumentada, que Salvesen acredita serem a extensão do fenómeno 3D que falhou em termos de consumo de massas há cerca de dez anos. A intenção? “Ser capaz de escapar para uma realidade alternativa convincente.”
Na verdade, diz Salvesen, um Google Cardboard “não é muito diferente de um estereoscópio vitoriano: duas lentes que oferecem duas imagens aos olhos e produzem uma ilusão ao sistema visual.” O que explica este interesse da humanidade, acredita a responsável, é o facto de ativar a nossa perceção: “de repente, tomamos consciência daquilo que o nosso cérebro e olhos estão a fazer.” E isso, diz, “torna-se viciante.”
Na exposição, que estará patente no edifício das Américas do Lacma, o visitante é convidado a interagir com os artefactos. Há três tipos de óculos especiais que lhe são dados para poder experimentar as ilusões ópticas ao longo da história e muitos exercícios para fazer com os olhos. Numa pequena sala de projeção, são mostrados pedaços de filmes 3D da era dourada em que Hollywood estava fascinada com a tecnologia, nos anos 40 e 50 do século passado. Há exemplares do Viewmaster, um gadget que foi muito popular nos anos oitenta, imagens holográficas e todo o tipo de obras de arte relacionadas. Curiosamente, a exposição está inserida numa iniciativa conjunta entre o museu e a sul-coreana Hyundai, “The Hyundai Project: Art + Technology at LACMA.
Além de pretender mostrar que o 3D tem sido objeto de inovação e investigação permanente, não apenas uma moda que vai e vem, Britt Salvesen diz que tem também uma intenção mais filosófica. “Não há apenas uma forma de ver uma coisa. Se há algo que esta exposição mostra, é isso.” A responsável quer que as pessoas reflitam sobre o momento que se vive na sociedade, no qual as crispações políticas e sociais estão elevadas e há a tentação de focar apenas num ponto de vista.
“O sistema visual é diferente em cada pessoa. Não sei o que é que você vê na imagem de Paris, porque as imagens 3D estão na nossa cabeça. Não estamos a olhar para a mesma coisa.” No entanto, sublinha, podemos falar sobre isso, é algo em comum. “Só esse simples reconhecimento pode ajudar neste momento em que nos fixamos num ponto de vista e há tremenda polarização.”