Quarto 27

Sempre que me aproximo do edifício do Hospital Garcia de Orta, por momentos volto a viver dentro dele. Mesmo que passem anos, mesmo que ali vá por motivos que nada tenham a ver com o que passei em 2005, não consigo evitar sentir que aquilo faz um bocadinho parte de mim. É como se voltasse a uma espécie de casa, onde me senti protegida e onde, quando saí, deixei uma parte da família.

A estrada que me leva até lá também me transporta para o momento em que, depois de dois meses de internamento no quarto 27 do piso da Cirurgia, me deram alta e me deixaram continuar a recuperação em casa. Descer aquele elevador, sabendo que ia poder sair pelas portas que davam para a rua, acelerou-me o coração.

Estava uma manhã cheia de luz, até quente para uma manhã de abril. O hospital era rodeado de espaços verdes e o jardineiro tinha acabado de cortar a relva. Sempre gostei do cheiro da relva acabada de cortar.

Instantes depois, a minha mãe estacionou o carro à frente da porta principal e eu enfiei-me, ainda a custo, lá dentro. Fechou a minha cadeira de rodas, colocou-a no porta-bagagens, sentou-se, pôs as mãos no volante, olhou para mim, respirou fundo, e disse-me “pronto, miúda, vamos para casa.”.

O percurso era curto, morávamos perto, e fizemo-lo com a sensação de estar a caminho do paraíso. Assim que arrancámos, abri a janela para sentir o vento e deixar que o sol me tocasse diretamente da cara, sem ser através do vidro do carro ou, durante tanto tempo, da janela do quarto. A sensação de perceber que ia finalmente voltar a casa, ver a minha sobrinha, os meus cães, e poder dormir no meu quarto, foi tão forte, que as lágrimas me inundaram os olhos. Pelo meio delas, ainda olhei para trás, para o hospital, e pensei, “então e agora? Quem é que me protege, se eu me sentir pior?”.

Há umas semanas voltei lá para uma consulta de rotina. E quis ir com tempo, para poder dizer “olá!” a quem cuidou de mim durante aquela fase da minha vida. Quando se abriram as portas do piso da Cirurgia e senti o cheiro que vinha do corredor, foi como se o tempo tivesse voltado para trás. Ali estava eu, em 2005, a regressar porque a febre tinha dado sinal, com as enfermeiras a receberem-me “no colo”, a dizerem-me “calma, que nós estamos aqui…”, e a levarem-me até ao quarto 27. O quarto isolado onde acomodavam os casos mais complicados.

Percorri todo o corredor, abracei quem ainda conhecia. Fui avançando devagar, continuava tudo no mesmo sítio. Inclusive o quarto 27. A porta estava entreaberta. Apeteceu-me espreitar, entrar, deitar-me em cima daquela cama que já tinha sido tão minha e olhar pela janela, como fazia naquela altura. Senti o estômago apertado, mas o coração tranquilo. Segui o meu caminho e só parei na sala das enfermeiras, onde ainda hoje, 14 anos depois, está pendurado o quadro com uma caricatura minha, de braços abertos e a dizer “Obrigada, convosco foi muito mais fácil!” E foi. Foi. Passado. Mas para nunca esquecer.