Cancro: esconder ou mostrar

Logo que se soube da morte de David Bowie, tão de repente, o mundo em choque quis saber as razões do fim da lenda britânica. Aos 69 anos, dois dias depois do aniversário e de lançar um álbum (uma despedida insuspeita). Seriam drogas? Ataque cardíaco? Cancro, não. Ninguém sabia disso, como podia ser? Mas era. Foi. Um cancro no fígado contra o qual lutou 18 meses. Em silêncio. “É triste dizer que é verdade. Vou estar offline uns tempos”, avisou no twitter o filho, Duncan Jones, pedindo também ele privacidade na dor pela morte – tão privada quem nem se soube se tinha sido ou não cremado – do pai.

“É violentíssimo perder uma filha. Não o desejamos a ninguém. Mas a Leonor tinha uma capacidade inata de aproveitar cada segundo, em casa ou no hospital, e assim passou a ser a vida para mim também.”

Dias antes, Sofia Ribeiro tinha rapado o cabelo – diagnóstico: cancro da mama – e publicado o vídeo no Facebook. “Passei a escova e caiu. É tempo de levantar a cabeça.” O vídeo foi partilhado, escreveram-se notícias, a doença da atriz portuguesa tornou-se ainda mais pública, desde que se conheceu, em meados de novembro. Entre um lado e o outro da linha, um mar de questões: porquê falar? Porquê esconder? Porquê julgar decisões alheias, que só quem tem a doença pode tomar?


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A luta da “Princesa Côderosa”
“É violentíssimo perder uma filha. Não o desejamos a ninguém. Mas a Leonor tinha uma capacidade inata de aproveitar cada segundo, em casa ou no hospital, e assim passou a ser a vida para mim também.” Vanessa Afonso, mãe da “Princesa Côderosa”, como a criança ficou conhecida, perdida aos 5 anos para um tumor de Wilms bilateral com metástases pulmonares e nos rins. Os pais nunca esconderam. Como não sabiam nada da doença, mexeram-se em busca de ajuda que lhes valesse. “À medida que enfrentávamos a realidade, percebíamos o valor do nosso testemunho. Ninguém gosta de falar de crianças que morrem, mas as pessoas precisam de saber como lutar pela vida dos seus filhos.” Enquanto isso, Jorge Coutinho ia escrevendo sobre a filha, exemplo na adversidade durante o tempo da doença, entre junho de 2013 e setembro de 2014.

“O diagnóstico de cancro é frequentemente vivido com sofrimento existencial, de modo que não podemos identificar uma resposta-tipo ou uma sequência habitual após receber a notícia”, diz Maria José Gil, do Instituto Português de Oncologia (IPO) de Lisboa. A psicóloga clínica lembra que cada caso é um caso, e tudo o que possa contribuir para uma melhor adaptação é uma mais-valia. A doença desencadeia reações emocionais intensas, como incerteza, sofrimento, dor física, dependência, perda de controlo e, consequentemente, respostas distintas. “As características individuais e os recursos internos são determinantes para o modo como cada pessoa lida e se adapta à doença: umas pessoas necessitam de partilhar as suas vivências enquanto outras, mais reservadas, elaboram a sua própria adaptação de forma mais contida.”

“A família detesta que eu fale tanto. Ao mesmo tempo, sabem que me faz bem. Posso morrer de cancro, mas ele nunca me matará”

A escolha pela divulgação de um diagnóstico e respetivo acompanhamento por parte do grande público deu azo a uma reflexão polémica do humorista Rui Sinel de Cordes, em meados de Janeiro, a lamentar a mediatização (chamou-lhe “cancro VIP”): “Ter Ccncro está cada vez mais difícil. Antigamente, bastava fumar, apanhar sol sem protetor ou ser o Manuel Forjaz. Hoje em dia, é preciso ter um amigo editor de vídeo e investir em duas Go-Pro. Ter amigos fotogénicos e contactos na imprensa.” O nome da atriz nunca foi mencionado no post no Facebook, mas alguns media associaram-na à crítica de Sinel de Cordes e o caso descambou em indignação.

O exemplo de Manuel Forjaz
O gestor Manuel Forjaz é um caso paradigmático na divulgação de uma doença como esta: revelou sem medo o cancro no pulmão, deu palestras, conselhos no Facebook e escreveu o livro ‘O Meu Cancro’ para dizer a outros que a primeira quimioterapia foi má, a doença é má, mas há vida para lá dela. “Abrir-me assim é uma forma de lidar com tudo, porque me obriga a pensar nos assuntos”, disse em janeiro de 2014 numa entrevista à NOTÍCIAS MAGAZINE. “A família detesta que eu fale tanto. Ao mesmo tempo, sabem que me faz bem. Posso morrer de cancro, mas ele nunca me matará”, disse, três meses antes de perder a batalha, aos 50 anos.

Maria José Gil enobrece este impacto que as figuras públicas têm na sensibilização para algumas causas. Na doença oncológica, tem permitido quebrar o estigma e assumir uma normalidade na vivência da doença, bem como dos efeitos secundários dos tratamentos. “Desde o momento do diagnóstico, os doentes e familiares lidam com perdas ao nível da autonomia, imagem corporal , relações interpessoais, capacidades e preocupações existenciais”, diz a psicóloga. É um momento de vulnerabilidade, dúvidas, raiva e medo, o que implica mudanças significativas nas inúmeras áreas pessoais: relacional, laboral, familiar, social. “O suporte familiar e a rede social de apoio têm um papel único, por serem os recursos basilares da vida das pessoas.”

“Fui às urgências e vi logo pela cara da médica o que se passava. Pensei ‘Tirem-me isto. Operem-me, porque eu tenho um bebé e ele não pode ficar sem mãe’.”

Que o diga Carla Amorim, 42 anos. Em 2009 foi confrontada com o melhor e o pior da vida: um filho e um cancro na mama. “Comecei a perder líquido do peito já sem amamentar [o filho tinha nove meses quando veio o diagnóstico], fui às urgências e vi logo pela cara da médica o que se passava. Pensei ‘Tirem-me isto. Operem-me, porque eu tenho um bebé e ele não pode ficar sem mãe’.” No trabalho avisou que ia continuar, apesar do cansaço. Pôs toda a gente ao corrente pedindo-lhes que não chorassem. Ainda não estava morta. Em agosto chegou a ir à praia de casaco, já sem peito. “Disseram que não seria capaz. Mas ficar fechada em pânico não era opção.”

Viver com cancro
Sete anos depois, Carla mantém a postura de desabafar no blogue e página do Facebook, “Viver Com Cancro da Mama”, um alívio para quem o vive e quem o lê. “Falar ajuda a perceber que estamos a lutar com força, a pôr a tónica na cura e não na morte: se nós não nos vamos abaixo, por que razão irão as pessoas à nossa volta?” Ainda faz tratamentos de hormonoterapia, um comprimido por dia, e sente a sombra a pairar, sempre presente. Ficou careca. Reconstruiu o peito e abominou os olhares de pena. Sacrificou ovários e útero. E depois de passar pelos tratamentos revoltou-se e atirou-se à escrita, para dizer a todas as mulheres que a sua fase má durou oito meses, os piores da vida, mas passou. “Não se resignem à doença. Não desistam. Custa muito, obviamente que sim. Mas custa mais se nos fecharmos em casa a chorar, sozinhas.”

Marine Antunes concorda. Também está presa às palavras desde que foi diagnosticada com linfoma não-Hodgkin, há 12 anos, tinha então 13. «Detetaram-me uma mancha de cinco centímetros no hospital de Leiria. Na semana seguinte já tinha onze, mais do dobro. A médica que me seguiu em Coimbra fala em milagre: se o corpo não respondesse tão bem ao tratamento, o cancro tinha-se espalhado e eu não estaria aqui.” A notícia correu como um rastilho em Ourém, onde vive com os pais. O telefone a tocar noite dentro, os amigos, a família e a escola mobilizados, desconhecidos que a procuravam porque queriam saber. “Tornei-me uma celebridade no mau sentido, sempre a falar disso quando só pensava em não chumbar. A dada altura tornou-se um sufoco. Era tratada como doente.”

“Há quem faça da narrativa uma ferramenta de integração dos acontecimentos de vida. Outras utilizam a participação em grupos de autoajuda, atividades do quotidiano, expressão artística ou lúdica.”

Dez anos depois, habituada a gracejar no diário acerca de vómitos e perda, criou o blogue “Cancro Com Humor”, mais tarde página de Facebook, projeto e livro com o mesmo nome. Nem na morte do namorado foi pela revolta. “Conheci o Pedro em 2013, foi dos primeiros carequinhas a dizer-me que encontrava grande sentido no que eu fazia. Na altura superara um cancro na perna e estava bem.” Começaram a namorar em 2014, quando o cancro dele se metastizou no pescoço. “A doença foi evoluindo no tempo de namoro, foi um segundo cancro para mim. Era difícil mas super emocionante, cada dia uma novidade.” O que Pedro guardava para si, tímido, ela extravasava pelos dois. Espantava-lhe os males com o otimismo de que era capaz e escrevia sem parar, exorcizando os demónios de ambos. “Gozávamos muito com tudo, até morrer em maio de 2015, com 23 anos. Não estou grata ao cancro por me ter tirado o meu amor. Mas estou grata à vida por me ter ensinado a cuidar.”

Recursos para lidar com a doença
Os domínios do público e do privado têm registado alterações nos últimos anos. O importante é que qualquer deles permita à pessoa encontrar os seus recursos para lidar com a doença. “Há quem faça da narrativa uma ferramenta de integração dos acontecimentos de vida. Outras utilizam a participação em grupos de autoajuda, atividades do quotidiano, expressão artística ou lúdica”, diz Maria José Gil, psicóloga no IPO de Lisboa. “Continua a ser um estigma que ainda não conseguimos desmistificar, mas a ideia tem de ser ultrapassada», diz Vítor Veloso, presidente do Núcleo Regional do Norte da Liga Portuguesa Contra o Cancro e médico no IPO-Porto.

Vânia Castanheira teve um primeiro vislumbre deste peso aos 31 anos, quando a bomba caiu: cancro de mama triplo negativo. “Se me sentia bem, porque é que estava com uma doença que me podia matar? A morar em São Paulo, casada com um brasileiro, longe da família em Portugal. Como dar a notícia aos meus pais e imaginá-los a digerir aquilo? É horrível fazermos sofrer quem amamos.” Era tanto o desnorte que pediu ao marido para guardar segredo. “Só contei à família cinco dias depois, certa do diagnóstico e de que o passo seguinte seria operar. ‘Vá, não precisam de fazer cara séria. Estou com um tumorzito no peito. É maligno, mas na semana que vem vou retirar. Estamos superpositivos.’ Alguns amigos ficaram ressentidos de não terem sabido antes, mas não há forma boa de dar notícias como estas.”

“Ao descobrir que tinha cancro achei que fosse mentira. Não queria admitir que o monstro me tinha atacado. Só me abri nas redes sociais quando senti que tinha uma obrigação de partilhar com o mundo o que aprendi.”

Aos 34 anos, a coach de saúde e bem-estar dá palestras, escreve livros, tem um blogue ativo há três anos (“Minha Vida Comigo”) e inspira milhares de pessoas a lidar com a doença. “Ao descobrir que tinha cancro achei que fosse mentira. Não queria admitir que o monstro me tinha atacado. Só me abri nas redes sociais quando senti que tinha uma obrigação de partilhar com o mundo o que aprendi.” O blogue revelou-se a melhor terapia que podia ter criado. “Devíamos falar de cancro como falamos de pneumonia: ambos são graves e, se não tratarmos, podemos morrer. No entanto, um diagnóstico não é uma sentença de morte.”

Foi o mesmo que sentiu Paula Lobo, 59 anos quando lhe detetaram cancro dos ovários, em janeiro de 2012: nunca lhe pertenceu. Mas um mês e um ano depois perdeu a batalha. “Saber que temos cancro, ou que alguém que amamos tem cancro, é das coisas mais difíceis de encaixar na vida”, diz a filha, Marina Lobo. “A minha mãe já sentia que tinha algo na barriga, mas não disse a ninguém. Tinha dores, um alto, medo. Mas havia muita gente a precisar dela. Guardou tudo para si. Não falava. Ia periodicamente ao ginecologista, mas concentrou-se em cuidar da sogra e da mãe (que entretanto adoeceram e faleceram uma após a outra), ficou quatro anos sem ir ao médico. E então veio o pesadelo, eu a perceber que a minha mãe tinha um cancro em estado avançado e se calhar ia morrer, mas não podia morrer porque viver sem ela não ia dar”, conta a filha em lágrimas.

“Toda a gente foi despedir-se ao hospital, parecia uma festa. Não se ouviam choros (a não ser uns abafados no corredor), mas risos, gargalhadas.”

Paula via as três filhas vacilar, o marido tão perdido, que levantou as armas, recuperando ao fim do primeiro ciclo de quimioterapia. “A esperança esteve sempre connosco, permitiu-nos ter ainda momentos felizes.” Mas o cancro era demasiado agressivo e acabou por voltar. Em janeiro de 2013, com os médicos a concluírem não haver mais nada a fazer, chamou a família e os amigos próximos para lhes dizer que tinha sido afortunada. “Toda a gente foi despedir-se ao hospital, parecia uma festa. Não se ouviam choros (a não ser uns abafados no corredor), mas risos, gargalhadas.” Por dia passavam dezenas de pessoas naquele quarto, até amigas que não via há mais de trinta anos. “Na vida, como na morte, a minha mãe ensinou-me que devemos tirar partido das coisas boas e desvalorizar as más. Tudo estará bem se, na hora de partir, tivermos um jardim florido como o dela.”

O muro de silêncio
Catarina Malheiro também sonhou com esse jardim para a mãe, Luísa, mas viu-se esmagada sob um muro de silêncio. “Quando os médicos vão à televisão só falam do cancro da mama ou do colo do útero, nunca do pâncreas”, lamenta, em luto há dois anos, depois de uma luta de cinco meses. “É um cancro muito agressivo, fulminante, não transmite esperança. Mas por matar tanto é que se torna necessário alertar para salvar vidas.” Segundo o médico oncologista Hélder Mansinho, a doença cursa de forma silenciosa e é importante a atenção para sintomas de dor abdominal, perda de peso e más digestões incaracterísticas, que podem levar ao diagnóstico precoce e devolver alguma esperança para o tratamento. Ainda assim, 99% das pessoas não lhe resistem.

“Foi comigo que a minha mãe entrou em coma e teve de ser entubada a primeira vez, comigo deixou de comer e beber. Vivemos aquilo juntas, só as duas. Fechei a loja de artigos de criança para ficar com ela. Hoje tenho 36 anos e sinto que as forças se foram.” Não houve um rol de gente com quem partilhar, mensagens de apoio, consolo anónimo. Com o irmão a viver em França e a irmã incapaz de encarar aquela morte anunciada, Catarina acompanhou a mãe nas consultas e no internamento. Fez de enfermeira, amiga, confidente. Falava com os médicos e transmitia os vereditos suavemente para não assustar ninguém. Já em 2015, quando começou a conseguir lidar com a perda, criou no Facebook a página Cancro do Pâncreas. “É a única que existe em Portugal sobre este tipo de cancro. A minha avó morreu dele aos 73 anos, a minha mãe aos 77 e não se fala do que os doentes devem comer, o que devem fazer, o que pode ajudar-nos a todos.” Claro que tem medo de vir a ser a próxima, mas é preciso dizer as coisas. C-a-n-c-r-o. Com todas as letras. “É menos duro do que consentir o vazio.”