#PowerWoman: Carla Caramujo, uma nova voz da ópera portuguesa no mundo

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L ‘Enfant et Les Sortileges’ traz Carla Caramujo ao Teatro São Carlos, em Lisboa, a 28,29 e 30 de dezembro e a 4,5 e 6 de janeiro de 2018, para interpretar as personagens da princesa e do morcego. Mas esta ópera de Ravel não é a única atuação na capital, da cantora lírica de Coimbra. No dia 31 de dezembro, canta no concerto Te Deum, na igreja de S. Roque, também na capital, como solista convidada, com o coro e orquestra Gulbenkian. Diplomada pela Guildhall School of Music and Drama e pelo Royal Conservatoire of Scotland, Carla Caramujo, de 38 anos, tem construído, ao longo de 10 anos de carreira, um percurso consolidado dentro e fora do país, somando distinções. Foi vencedora dos Concurso Nacional de Canto Luísa Todi, Musik för der preis der Hans-Sachs-Loge (Alemanha), Dewar Award, Chevron Excellence e Ye Cronies Awards (Inglaterra). A cantora já se apresentou também em vários festivais nacionais e internacionais e pisou vários palcos estrangeiros. Em maio de 2018 estreia-se no Teatro Mayor de Bogotá. Quando atua lá fora tenta levar, sempre que pode, reportório português. “O meu orgulho enquanto artista e profissional leva-me a pensar que também estou a dar o meu melhor pela minha classe no país”, refere em entrevista ao Delas.pt, onde explica ainda o desafio que ser mãe pode representar para uma cantora de ópera.

Quando é que começou a interessar-se por ópera?
Comecei a interessar-me pela ópera quando tinha 15 anos. Eu estudava no Conservatório, tocava violino e tive uma crise de identidade com o violino, portanto queria parar os meus estudos musicais. Na altura, o meu professor de violino achou que eu tinha demasiadas qualidades musicais para não continuar, então sugeriu-me eu terminar no 5º. grau o violino e mudar para canto. E a transição para o canto acabou por ser um processo normal dentro do Conservatório e fui descobrindo a ópera nas aulas, porque em Coimbra estava muito longe de Lisboa, do sítio onde existe o único teatro de ópera do país e não tinha uma tradição musical na família. Portanto, foi através da primeira professora de canto, que me foi mostrando também muitos vídeos, era muito apaixonada pela ópera e transmitiu-me essa paixão. E a partir daí fui descobrindo o mundo maravilhoso da ópera.

Lembra-se qual foi a primeira ópera a marcá-la?
Sim, lembro-me perfeitamente. A primeira produção de ópera que vi, foi um vídeo de um rigoletto com o Pavarotti e a Edita Gruberova. A Edita Gruberova ainda hoje é uma das minhas grandes referências no canto lírico, é realmente uma musa inspiradora. Eu lembro-me de olhar para aquele vídeo e aquela voz parecia-me transcendente, parecia-me que não era deste mundo. Isso levou-me a tentar perceber a minha voz, a tentar o que fazer com a minha voz. E desenvolvi a minha personalidade ao mesmo tempo que a minha voz se foi desenvolvendo. Uma coisa foi completando a outra. Acho que hoje não seria a pessoa que sou se não tivesse descoberto que tinha uma voz e se não tivesse percebido o seu desenvolvimento.

E que pessoa é a Carla Caramujo?
Sou uma pessoa extremamente sensível, deixo-me abalar por coisas muito pequeninas, que se calhar ao comum dos mortais não abalaria ou passariam despercebidas. Mas também tenho muita autoconfiança. Essa autoconfiança constrói-se e é muito necessária nesta carreira. Sem autoconfiança é impossível nós progredirmos ou continuarmos a avançar neste tipo de carreira, porque tem tanto de apaixonante como de muito difícil.

Estudou fora. Que importância teve essa experiência para si, para o seu percurso enquanto cantora de ópera?
Eu estudei em Londres, na Gildhall School of Music and Drama, onde fiz a Licenciatura e o Mestrado, e depois estudei também no Royal Conservatoire of Scotland. Fiz um curso de ópera, que seria o equivalente ao que aqui chamamos de um estúdio de ópera. E foi muito importante. Eram cursos extremamente práticos, detalhados, iam muito diretos a todas as disciplinas que formam um cantor de ópera, desde dança, expressão corporal, às línguas, como o francês, o inglês, o alemão, o espanhol, o italiano, tudo o que necessitávamos para abarcar todo o repertório. Depois os estilos específicos dentro da música clássica que abordamos. Não é só ópera, existe também oratória, o lied, a chanson française. São escolas que tratam o canto com todas as suas especificidades, para além de toda a formação musical.

Qual é o seu papel nesta produção do São Carlos?
Esta produção, o ‘L’enfant et les Sortilèges’, normalmente com a exceção do enfant, da criança, os papéis são repartidos, porque são imensos papéis. Na primeira parte faço a princesa, na segunda parte faço o morcego. Eu destacaria a princesa porque é um papel muito delicado e ao mesmo tempo muito virtuoso, é um momento de crescimento da criança, que começa por se portar mal e fazer uma grande birra e que vai crescendo ao longo da história, crescendo do ponto de vista emocional. É um momento de transição porque é um momento em que a princesa dos contos de fada, que a criança ama desesperadamente e que chama todas a noites ao adormecer, lhe aparece e diz: “mas tu destruíste o livro, nunca saberás o meu final, e tu poderias ser, eventualmente, o meu príncipe encantado”. É uma espécie de quase dueto de amor entre as duas personagens. Eu gosto especialmente, e sempre gostei muito, deste papel. Aliás quando fui para Glasgow esta foi a primeira produção que eu apanhei no estúdio de ópera e, portanto, diz-me muito essa princesa.

Que tipos de papéis gosta mais de interpretar?
Gosto de papéis que tenham uma dimensão emocional e que cresçam ao longo da história.

É mãe e durante a sua gravidez tentou manter a sua atividade profissional o máximo de tempo possível.
Sim, até ao final do sétimo mês. Foi o que achei que era razoável, e também porque no último mês me quis resguardar. Quis ser mãe a tempo inteiro.

São desafios que, quem está de fora, nem sempre considera…
Para uma cantora, a gravidez, e ser mãe, é algo que tem de ser ponderado. Mas eu queria muito e, portanto, foi um processo natural. Foi na altura que eu quis, correu tudo extremamente bem e depois tive os cuidados que tinha que ter para voltar à profissão.

Tem de se ter cuidados acrescidos?
Eu só consigo cantar bem se estiver em forma fisicamente. Portanto, tive todos os cuidados que uma pessoa tem de ter para se manter em forma. Claro que tive de ter muito cuidado com a questão dos músculos abdominais intercostais. Todos esses músculos influenciam o canto e, portanto, tive realmente de ter cuidados acrescidos a esse nível, mas tudo se supera.

E canta para o seu filho?
Ultimamente é mais ele que canta para mim [risos]. O meu filho, desde os três anos, vem regularmente a concertos. Aprecia e está a desenvolver um ouvido musical interessante.

Começou a interessar-se por esta profissão, como referiu, ainda adolescente. Sentiu que teve de abdicar de muita coisa da vida de adolescente, das vivências próprias da juventude?
De certa forma não, porque o canto cresceu comigo e eu não consigo dissociar a minha voz, a minha personalidade e a minha vida do canto. Se eu me privei de alguma coisa pelo canto? Não. Eu não sei se o canto me levou a isso ou não, mas a verdade é que eu nunca fui muito uma miúda de ir a discotecas, por exemplo, que falasse muito alto. Nunca me apeteceu fumar, nunca bebi bebidas alcoólicas, que seriam os fatores de maior risco. Nesse sentido, acho que não. Eu não consigo dissociar a minha vida do canto, da minha voz, embora faça muito bem a separação e cada vez mais, com a experiência, entre vida pessoal e vida profissional. E a voz faz parte da vida pessoal porque não é o meu instrumento, é uma parte de mim, mas também faz parte da minha vida profissional. Mas eu nunca trago a minha vida profissional, nem os meus problemas profissionais para casa. Nunca. E adoro chegar a casa, ter sorrisos à minha espera e esquecer que fui cantora nas muitas horas anteriores.

E faz separação semelhante quando muda de língua, ou seja é uma cantora diferente conforme a língua em que interpreta a ópera e a personagem que representa?
Eu tenho de encarnar diferentes personagens e de acordo com a língua que estou a cantar também há uma fisicalidade e uma vocalidade que é necessária. Depois de muito estudar e ter uma técnica vocal consolidada, nós estamos sempre a evoluir, porque cada trabalho apresenta-nos desafios diferentes. E um deles é esse: o desafio que cada personagem, e que cada obra, no seu tempo também representa.

Está agora a preparar-se para uma nova tournée internacional. Ao longo destes anos sente que de alguma forma, quando está lá fora, representa o país e a ópera portuguesa?
Não tenho essa consciência, mas o meu orgulho enquanto artista e profissional leva-me a pensar que também estou a dar o meu melhor pela minha classe no país, que não é protegida, de todo. Nós não somos apoiados, nunca fomos. Os cantores líricos portugueses trilham um caminho com muitos pedregulhos. Portanto, cada vez que tenho uma boa prestação e que sinto orgulho naquilo que estou a fazer fora do país, sinto que também estou a ajudar a trilhar esse caminho para mim e para os meus colegas e, sempre que me é possível, levo reportório português. Sempre que me é possível incluir alguma obra de minha escolha eu penso sempre em reportório português, seja contemporâneo, século XVIII – temos música do século XVIII brilhante – e tento levar sempre música de compositores portugueses. Eu tenho muito orgulho nas minhas raízes. Infelizmente, gostaria que o país olhasse mais para os cantores portugueses e os valorizasse mais, mas tenho muito orgulho em ser portuguesa.

Que conselho daria, a quem quer ser cantor/cantora de ópera?
Que trabalhem afincadamente, se mantenham abertos a todas as opiniões, a todo o universo musical, mas se mantenham também fiéis aos seus princípios, que construam uma personalidade forte mas generosa, sempre generosa, porque a chave está aí.

Fotografias: Diana Quintela/Global Imagens