A minha memória do fogo e uma proposta infantil para o fim da seca

Uma das memórias mais antigas que tenho é do fogo. A minha tia Isabel aos gritos a dizer-nos para ficarmos em casa – a minha irmã, a minha prima Fátima, a minha avó e eu – enquanto todos os outros (os meus pais, os meus quatro primos mais velhos e os meus tios) saíam para lutar contra o fogo. Lembro-me muito bem das palavras que usou:

Se o fogo passar da estrada corram para a ribeira”.

Passámos a noite à janela. Lá ao fundo na estrada, o meu primo Manel lavrava a terra com o trator e o arado atrelado sacrificando o milho que estava crescido e quase ao ponto de colher. Víamos ao longe as giestas levantadas e deitadas com força à terra para asfixiar as chamas. Se o fogo passasse da estrada ninguém saía dali vivo, só nós, as pequenas, as que conseguíssemos correr até à ribeira.

Salvámo-nos todos. Para dizer a verdade, foi minha tia Isabel, com a sua voz forte de comandante, que nos salvou a todos. Ela sabia lutar contra o fogo. Conhecia o campo. Salvou-nos a nós, salvou a casa, o rebanho de ovelhas, as alfaias e a maior parte das culturas. Se fosse tudo igual, mas nas condições do fim-de-semana passado, não. Ninguém se salvava. Nem as pequenas.

A ribeira de Linhares vai seca desde agosto. No seu leito há um silvado enorme. As hortas que rodeavam as casas há 30 anos estão feitas em pó e raízes secas. Este é o ano mais seco dos últimos 87. Na aldeia já só há um rebanho digno desse nome. A minha tia recebeu subsídios da PAC para reduzir as cabeças de gado. Como ela, muitos. A Quinta Branca onde morava nesse verão de 1984 está abandonada – a minha tia foi a última rendeira. O campo na Beira Alta não é negócio, não é vida, só fica quem não pode sair. Ou quem, vivendo no campo, se sustenta com um emprego na vila ou na cidade mais próxima.


Nestes dias ouvi os apelos para o aumento do financiamento ao combate aos fogos – o orçamento de Estado de 2018 já prevê um acréscimo de 11% e tudo leva a crer que será aprovado. Não consigo deixar de ficar perplexa. Na televisão vimos incessantemente lutas inglórias. Pobres bombeiros, em grupos de 4 ou 5, a empunhar uma mangueira contra labaredas gigantes.

A minha tia haveria de saber que aquele fogo era impossível de travar, não se atreveria a combater, não pegaria em nada para lutar contra ele. Lutar contra um fogo tão alto e tão forte é morrer em combate – por melhores que sejam os fatos de proteção, por maiores que os autotanques sejam, por mais alcance que tenham as mangueiras, por mais aviões que existam. Pobres bombeiros.

Quem pede mais meios para o combate está a enviar rapazes para a fogueira, sem nenhuma hipótese de ganhar o combate, com muito pouca possibilidade de sobreviver.

Não sou especialista em agricultura, floresta ou vida no campo. Muito menos em alterações climáticas ou secas extremas. Mas não me lembro de um verão tão triste, nem da minha aldeia tão só. Nem de ver, ao mesmo tempo, as terras dos amigos devastadas – Álvaro, onde passei férias, com quarenta casas queimadas; Vale de Azares com fogo na casa diante da da minha amiga Xana; Pinhel rodeado de fogo; Vila Ruiva a arder; Folgosinho com o incêndio às portas. E antes de todos, os mortos e a dor daquela mãe que perdeu o filho no fogo. Quem estava ainda na Beira há de sair. Não há nada para ganhar a vida ali, não há campo nenhum para o sustento.

A não ser que os responsáveis políticos todos se demitam com efeitos retroativos – e não apenas esta Ministra do Combate Falhado aos Fogos, mas todos os que durante anos empurraram as pessoas para as cidades, com decisões irreversíveis para a vida no campo, para as gentes do campo.

Estes fogos não eram para vencer. Estes fogos eram para não acontecer se, apesar da seca extrema, a vida no campo e na floresta fosse sustentável, se se conseguisse viver da terra, se as ovelhas e as cabras pudessem ser criadas livremente pelos pastores – as cabras comem tudo, tojos e restolho – se a produção de leite e a produção de hortícolas e de mel e de azeite e de frutas não fosse esmifrada aos produtores, por políticas e por revendedores de alimentos. Talvez não ficassem só os velhos nas terras. Talvez ainda houvesse braços novos para ir apagar o primeiro foco de incêndio, antes de deixar o fogo crescer.


A minha filha tem 6 anos e acredita ter a solução para a seca. Diz-me que “se há água no mar podemos construir tubos para tirar o sal e enviar a água para os sítios onde ela faz falta”.

Não temos gasodutos e oleodutos muito mais compridos do que a distância que vai da fronteira interior ao litoral? – pergunto eu. Não há países que vivem da água dessalinizada que produzem? Acredito que a seca pode ter uma solução mais barata do que um banco insolvente e que é tão lógica que uma criança de seis anos a consegue ver.

Aproveitando a boleia das ideias inusitadas, talvez possamos pagar a quem produz oxigénio para fomentar o regresso à vida sustentável no campo. Em vez de subsidiar para que não se produza, talvez se possa reconhecer a importância de quem fica no campo a guardar um elemento essencial à vida, o oxigénio, e recompensá-lo por isso.