A carreira de quase 85 anos da atriz Carmen Dolores é percorrida em mais de 200 imagens e memórias, em Carmen Dolores Fotobiografia do Centenário, da autoria do filho, Rui Veres, que será apresentada na terça-feira, 29 de outubro, em Lisboa.
A obra tem início nas Origens da atriz, nascida em 22 de abril de 1924, em Lisboa, e termina na “Passagem” desse dia 15 de fevereiro de 2021: “Carmen Dolores viveu o seu quotidiano normal, em casa, com o filho. À tarde, preparou e bebeu o seu chá, sentou-se no cadeirão do seu quarto e partiu. Na sua mesinha de trabalho, um caderno aberto e a caneta de feltro verde”, escreve Rui Veres.
Ao lado do testemunho do filho, inscreve-se um lamento da que é considerada uma das maiores atrizes portugueses de sempre: “Deus devia ter-nos dado duas vidas, uma para ensaiar, outra para viver. Agora que estou a acabar os ensaios, será que me sinto finalmente apta para viver? É pena ser tão tarde.”
“Carmen Dolores Fotobiografia do Centenário” é um álbum em 11 capítulos, 11 atos da vida de 96 anos dessa “observadora atenta do mundo e de si própria”, como a descreve Rui Veres.
Nas “Origens”, primeiro ‘ato’ da obra, a história dos pais, o nascimento tardio da atriz, os irmãos António Fernando e Maria Luísa, 14 e 16 anos mais velhos, respetivamente, a infância e a adolescência, e a aproximação ao teatro, sobretudo através do pai, jornalista e escritor republicano, crítico e tradutor de peças para atores da época como Palmira Bastos e Alves da Cunha.
A estreia de Carmen Dolores na rádio, aos 14 anos, pela mão do irmão, o ator António Sarmento, faz a ponte com o segundo capítulo, “Estreias”, no qual se percebe como tudo esteve para não acontecer: a recusa de um primeiro convite do realizador António Lopes Ribeiro para protagonizar o filme “Amor de Perdição”, quando a atriz se preparava para entrar no ensino superior, e a aceitação que se seguiu, perante a insistência do cineasta e o entusiasmo dos irmãos, “cinéfilos convictos”.
No ambiente “muito conservador” desse ano de 1943, foi o escândalo. A discreta aluna do antigo 6.º ano do Liceu Filipa de Lencastre “era atriz de cinema”, nota Rui Veres. De imediato se seguiram outras produções: “Um Homem às Direitas” (1945), de Jorge Brum do Canto, com que venceu o prémio de melhor atriz de cinema, em 1944, “A Vizinha do Lado” (1945), de Lopes Ribeiro, e “Camões” (1946), de Leitão de Barros.
António Lopes Ribeiro foi também fundamental para a estreia de Carmen Dolores no teatro, em “Electra, a Mensageira dos Deuses”, de Jean Giraudoux, em 1945: convidara-a para Os Comediantes de Lisboa, que fundara com o irmão Francisco Ribeiro (Ribeirinho), diretor da companhia.
A “fotobiografia do centenário” prossegue assim, página a página, pelas imagens e memórias: o trabalho de Carmen Dolores no teatro radiofónico da antiga Emissora Nacional e do antigo Rádio Clube Português, a passagem pela Rádio Renascença, as peças que interpretou n’Os Comediantes de Lisboa, como “O fim do caminho”, de Jean Giono, encenação em que disse ter sentido, “pela primeira vez, o fascínio de estar em palco e ser ‘outra'”.
Os “Fundamentos” estabelecem-se pouco depois: o casamento de uma vida, em abril de 1947, a entrada na companhia do Teatro D. Maria II, a convite de Robles Monteiro e Amélia Rey Colaço, a subida ao palco do Nacional, em “O vestido de Noiva”, de João Gaspar Simões.
“No Nacional, tive momentos bons, momentos de perplexidade, crises de consciência… Mas ali aprendi quase tudo da profissão”, escreveu a atriz, escreve o filho, lembrando que a mãe lamentara nunca mais ter tido “uma Palmira Bastos” que lhe ensinasse “como se pegava numa sombrinha durante a Belle Époque” ou uma Amélia Rey Colaço para lhe dar “discretamente uma indicação dos bastidores”.
As imagens lembram a atriz em palco nessa carreira ascendente, no D. Maria. “Sonho de uma Noite de Verão”, de Shakespeare, “Castelos no Ar”, de Jean Anouilh, “Casaco de Fogo”, de Romeu Correia, “Breve Sumário da História de Deus” e “Auto de Mofina Mendes”, de Gil Vicente, “Frei Luís de Sousa”, de Garrett.
A nova etapa surge com a criação do Teatro de Sempre, pelo empresário Giuseppe Bastos, no desaparecido Teatro Avenida, da Avenida da Liberdade, de que também fez parte Rogério Paulo. Trata-se de “Afirmação”, o quarto ato da fotobiografia que integra, igualmente, o trabalho no Teatro Nacional Popular, de Ribeirinho, que deu a Carmen Dolores “amizades para toda a vida”, como Armando Cortez, outro dos cofundadores do Teatro Moderno de Lisboa, como a atriz.
Esta companhia, que marcou a emergência do teatro independente no início da década de 1960, e teve “uma luta constante contra dificuldades financeiras e a censura acérrima do regime”, como lembra Rui Veres, terminaria na temporada de 1964-65, depois da montagem de “O Render dos Heróis”, de José Cardoso Pires, encenada por Fernando Gusmão.
Para Carmen Dolores, seguir-se-ia um afastamento dos palcos de quase cinco anos, e uma presença mais regular na televisão. Em 1969, porém, o encenador Jorge Listopad e o teatro de August Strindberg fazem-na regressar a cena, na Casa da Comédia. Esse gesto dá origem a novo ato na fotobiografia: “Apogeu”.
Os anos de 1969 a 1973 representam, segundo Veres, o momento em que Carmen Dolores atinge o auge da carreira. São os anos das peças “A Dança da Morte”, de Strindberg, e “Alice nos Jardins do Luxemburgo”, de Romain Weingarten, na Casa da Comédia, de “A Forja”, de Alves Redol, no Teatro Laura Alves, e de “As Espingardas da Mãe Carrar”, de Bertolt Brecht, também na Casa da Comédia, sob a direção de João Lourenço.
Em 1976, fixou-se em Paris, onde o marido já se estabelecera profissionalmente e onde permanecerá por seis anos. É um período de “profunda reflexão”, também presente na fotobiografia.
No regresso a Portugal, no final de 1982, retoma o teatro com João Lourenço e o Novo Grupo no Teatro Aberto. “Confissões numa Esplanada de Verão”, quatro monólogos de Tchekhov, Strindberg, Pirandello e Beckett, sob direção de Mário Viegas, e “O Jardim das Cerejas”, por João Lourenço, ligam-na à sala da Praça de Espanha.
Na “Fotobiografia do Centenário”, as imagens e as memórias retêm igualmente esses anos finais da década de 1980, com o primeiro livro escrito por Carmen Dolores, “Retrato Inacabado”, a sua personificação de Virginia Woolf, em “Virginia”, no Teatro D. Maria II, com encenação de Carlos Avilez, e o regresso ao cinema com “A Balada da Praia dos Cães”, de José Cardoso Pires, a convite do realizador José Fonseca e Costa.
Os muitos ‘apogeus’ da longa carreira da atriz prosseguem pelos anos 1990, com produções como “Jardim Zoológico de Cristal”, de Tennessee Williams, encenada por Diogo Infante, e pelos anos 2000, com obras como “Copenhaga”, de Michael Frayn, de novo com João Lourenço.
Com esta peça Carmen Dolores assinalou os 60 anos de carreira, em 2003, e com ela despediu-se dos palcos dois anos mais tarde. No final da derradeira representação, foi condecorada pelo então Presidente da República Jorge Sampaio com o grau de Grande Oficial da Ordem do Infante D. Henrique.
Carmen Dolores “cultivou a palavra, dita e escrita, com respeito e paixão”, escreveu Rui Veres. “Observadora atenta do mundo e de si própria, criou no teatro, no cinema, na rádio e na televisão, inúmeras e diversas personagens, fascinada pela complexidade do ser humano, enigma que procurou decifrar, com espanto e ternura”.
“Carmen Dolores Fotobiografia do Centenário” tem patrocínio da Fundação Calouste Gulbenkian, e é apresentada na próxima terça-feira, dia 29, no Teatro Aberto, em Lisboa, pela atriz Natália Luiza e pelo crítico e historiador de cinema Jorge Leitão Ramos.