Carminho lança novo álbum. “A minha inspiração são os outros artistas”

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Fadista Carminho vai lançar álbum intitulado 'Portuguesa' [Fotografia: Divulgação]

Carminho prepara-se para lançar novas canções esta sexta-feira, 3 de março. Portuguesa é o sexto disco da fadista e é composto por 14 temas, entre os quais, fados tradicionais nos quais assina as letras.

O álbum, gravado em dez dias e fruto de uma pesquisa de três anos, conta com colaborações de grandes poetas portugueses e jovens talentos musicais como Rita Vian, que compôs Simplesmente ser, Luísa Sobral, em Sentas-te ao meu lado, Joana Espadinha, em Ficar, Marcelo Camelo, músico brasileiro que escreveu Levo o meu barco no mar, As fontes (Fado Shophia) de Sophia de Mello Breyner Andresen e O Quarto (Fado Pagem) de Alfredo Marceneiro.

[Fotografia: Divulgação]
Ao Delas.pt, a fadista antecipa detalhes do que se pode esperar dos novos temas e colaborações, as referências musicais que sempre teve e que a inspiraram para este álbum, o impacto que a maternidade teve na sua forma de compor e cantar, as quatro recusas no início da carreira e a volta ao mundo que a fez descobrir o fado como profissão.

Leia a entrevista à fadista abaixo.

Como nasceu Portuguesa?

É um disco à volta da língua e poesia portuguesas. Algumas das canções já estavam a ser trabalhadas há muitos anos, mas o processo para este trabalho tem três anos de pesquisa. É na prática do fado que se vai descobrindo alguma brecha para uma experiência, não só sonora como também de escrita e de composição. Nesse sentido, dediquei-me a pensar no reportório e nos fados tradicionais. Pensei muito nesta ideia de construção de alguns artistas do fado que foram muito importantes como a Amália ou o Alfredo Merceneiro, que homenageio, porque o fado pagem é uma reverência e é com ele que abro o disco. Essas pessoas tiveram um papel muito determinante por terem tido a preocupação e a vontade de construir o seu reportório: ou compunham ou pediam a outros para o fazer. Não acho que seja importante ou decisivo que a pessoa componha e escreva as suas próprias canções, mas tem que ter um espírito critico sobre esse reportório.

Referiu que Amália foi uma das referências para este disco. Porquê?

É uma figura indiscutível. Não é possível passar pela cultura portuguesa sem se refletir na presença dela e no papel decisivo que teve na transformação de muitas coisas em Portugal. É uma influência por ser determinada e pela coragem que teve em arriscar colaborações com outros artistas e géneros musicais sem nunca deixar a paixão pelo fado e a seriedade com que se entregava à escolha da poesia e do seu reportório.

E em que é que a inspira?

[Amália] Era uma mulher com muito sentido de estilo, muito inteligente no que dizia, na forma como cantava e como se vestia e, ao mesmo tempo, era dotada de uma espontaneidade e naturalidade muito fortes e desconcertantes, que faziam com que as pessoas se rendessem à sua presença.

Quer reinventar o fado com este projeto, uma vez que já referiu publicamente, em entrevista em maio de 2022, que o quer fazer?

Não. O meu objetivo é continuar a praticar o fado. Não tenho pretensões nenhumas em mudá-lo. É um género vivo tal como a língua portuguesa. É nessa prática constante que se encontram algumas brechas e oportunidades para fazer experiências que também estão na minha vontade pela história que tenho, pelo percurso musical que fiz e por aquilo que gosto de ouvir. Toda a geração e tempo em que vivo contamina a pessoa que sou e o fado que pratico, portanto ao não ter nascido nos anos 20 ou mesmo 50, serei sempre diferente a praticar o fado. A ideia é não ficar retida num exercício de memória do passado e construir o teu próprio reportório.

Nesse sentido, em que medida se pretende distinguir das demais fadistas?

Não tenho pretensão em distinguir-me de outras fadistas. Só em ser o que sou. Vou distinguir-me naturalmente porque somos todos diferentes. Distinguir-me de outra pessoa quer dizer que estou mais preocupada em ser diferente dela do que em ser aquilo que sou, e não acredito num artista que está preocupado em ser diferente de outro. Para mim, não é um exercício artístico.

Carminho e Rosalía?
“Nenhuma colaboração é posta de parte”

Em 2011, colaborou com o artista espanhol Pablo Alborán em Perdoname e tornou-se a primeira artista portuguesa a atingir o número 1 do top espanhol. Qual foi a sensação de atingir esse patamar e como foi trabalhar com um dos mais referenciados cantores da música espanhola?

Foi no começo das nossas carreiras e foi incrível. Ele conheceu-me, convidou-me para cantar e fiquei fascinada com o talento dele. Apesar de estar num registo mais pop, também tem uma raíz e uma forma muito vinda do flamenco, o que me tocou profundamente porque me identifiquei. A canção atingiu aquelas proporções, e ser a primeira pessoa portuguesa a alcançar o top foi fantástico. Foram momentos muito felizes da minha carreira e continuam a ser porque continuamos a ser muito amigos e a partilhar muitas coisas bonitas juntos.

Também a cantora espanhola Rosalía já demonstrou admiração por si tendo, inclusive, chegado a interpretar uma canção sua Escrevi o teu nome no vento num concerto que deu em Braga, a 25 de novembro do ano passado. Inclusive, a própria Carminho encontrou-se com ela nos bastidores do concerto que a cantora deu em Lisboa, dois dias depois. Como foi esse encontro? Já pensou em fazer uma colaboração com ela?

Ela foi muito querida. Falou-me da altura em que cantava fados em bares e disse que “Escrevi o teu nome no vento” tinha sido um fado importante. Fiquei muito feliz e muito orgulhosa de ouvi-la cantar a canção com aquela força e ela [Rosalía] é muito boa artista. Nenhuma colaboração é posta de parte.

Como é sentir o carinho de artistas internacionais?

É fantástico pensar que os artistas inspiram-se noutros artistas. Para mim, o mais importante é sentir que, de alguma maneira, o que nos liga são as nossas tradições. Ambos [Pablo Alborán e Rosalía], ainda que cantem pop, vêm de uma raiz e identificam essa identidade que cada um tem. No meu caso é o fado e, no deles, o flamenco. É a forma de onde vimos que nos une.

“Fi-lo durante um ano de mochila às costas sozinha. Fui sem telefone, à procura de mim e quando voltei tinha a certeza de que a música, nomeadamente o fado, estiveram sempre lá e não quis ver”

Licenciou-se em Marketing e Publicidade, mas enveredou pelo ramo da música. Como é que percebeu que era este o seu caminho? A sua mãe, a fadista Teresa Siqueira, teve influência na sua decisão?

Não enveredei pela música depois, porque, na verdade, já a sentia com a minha mãe, com os meus irmãos, com a casa de fados que os meus pais tiveram, portanto era um caminho transversal a toda a minha vida. Entretanto, resolvi fazer Marketing porque sentia que era muito fácil para mim cantar e que aquilo não era uma profissão, mas sim um hobby. Não posso dizer que não tenha sido uma mais-valia [licenciatura em Marketing], mas, ao mesmo tempo, não me fazia feliz. Quando acabei o curso, já cantava em casas de fado e surgiram quatro editoras que me fizeram propostas para gravar um disco. Tive aí, mais uma vez, oportunidade de começar uma carreira, mas achei que não fazia sentido por não estar preparada. Sentia que não sabia nada e que não tinha uma consistência de pensamento crítico suficiente sobre um reportório para fazer um disco e, por isso, acabei por rejeitar as quatro propostas. Disseram-me que foi burrice e que não ia voltar a ter oportunidades. Deu-me uma certa força para ir dar uma volta ao mundo. Fi-lo durante um ano de mochila às costas sozinha. Fui sem telefone, à procura de mim e quando voltei tinha a certeza de que a música, nomeadamente o fado, estiveram sempre lá e não quis ver. Tive a sorte de, na altura, a EMI continuar com vontade de me receber e pude fazer o meu primeiro disco.

Já expressou publicamente o desejo de ter mais um filho. Ainda o mantém?

Neste momento, não consigo estar com esse pensamento porque estou muito concentrada no meu disco e no meu primeiro filho. No entanto, não escondo que ainda não senti que já não quero ter mais filhos.

Em que é que ser mãe a influencia e inspira na música?

Transformamo-nos completamente. Uma mulher quando é mãe vê o mundo de uma perspetiva nova, deixa de ser o centro para ter um olhar mais repartido. As minhas angústias, ansiedades estão agora viradas para um outro ser que precisa de mim e de quem cuido. Esta descentralização do olhar inspirou-me a compor outras coisas, a identificar-me e a relacionar com os sentimentos de outras mulheres, que também são mães e que viveram outras coisas. É muito rico do ponto de vista emocional porque são as emoções que nos inspiram a compor.

“Foi uma constatação bonita
perceber que o disco
era maioritariamente feminino”

Sobre o novo trabalho, há pouco referiu que o disco continha poesia portuguesa e, de facto, conta com a colaboração de poetas, entre os quais está Sophia de Mello Breyner e também com jovens talentos musicais como Joana Espadinha, Luísa Sobral ou até Rita Vian. Por que decidiu colaborar com estas mulheres e de que forma a inspiraram neste álbum?

Tive a sorte de ter estas colaborações, mas as canções e os poemas são maiores do que qualquer outro critério. No entanto, não é apenas sorte, porque são todas muito talentosas. O reportório que ficou escolhido para o disco é muito forte e especial. As canções não puderam ficar todas. A escolha passa por uma sensibilidade e pela própria canção, mas até lá há que fazer esse encontro. A Joana Espadinha é uma escritora de canções com quem já trabalho há muito tempo. Acho que foi a primeira vez que ofereceu a um fadista a canção O Menino e a Cidade, que acabou por ser o single do meu disco passado chamado Maria. A Luísa Sobral é uma compositora nata, parece que nasceu com uma carteira de reportório muito próprio, com uma linguagem que é dela e que é identificável com muita naturalidade e, portanto, ao pedir-lhe uma canção sabia que seria bonita, impactante e que tinha uma linguagem próxima. Podia não fazer sentido no reportório, mas fez. A Sophia de Mello Breyner é um colosso, a poesia no estado mais puro, uma inspiração diária. Revisito os poemas dela ao longo da minha vida e, muitas vezes, parecem-me completamente novos, como foi o caso deste. Já tinha lido e parece que foi a primeira vez que percebi que havia qualquer coisa relacionada comigo e com que me identifiquei e, no mesmo segundo, fiz a música sem ter tido muito tempo para pensar. Chamei-lhe fado Sophia por causa disso e por vir numa estrutura de sextilhas, que permite fazer a construção da composição do fado tradicional. A Rita Vian é uma compositora recente ao público e tem o seu primeiro EP, a que ninguém ficou indiferente. É uma mulher que trata a palavra e a dicção de uma forma muito própria com que me identifico e, portanto, convidei-a para fazer um dueto comigo. É ela a cantar a própria música e tem sido um trabalho incrível. E não se deve esquecer Marcelo Camelo, que embora seja homem, é essa pluralidade que acho que é importante. Calhou serem tantas mulheres e foi uma constatação bonita perceber que o disco era maioritariamente feminino, mas acho que foram mais bonitas as canções escolhidas. Contudo, o Marcelo Camelo é um compositor, para mim, superior que compreende esta translatividade e esta forma muito pura de ser brasileiro e, ao mesmo tempo, compreender esta passagem ao ter vivido tanto tempo em Portugal e ter feito qualquer coisa para o fado. Estou muito grata a todos.

Em que é que Marcelo Camelo a inspirou concretamente a fazer neste novo disco?

No olhar para os poemas e tentar perceber como é que se faz uma construção e composição de fados tradicionais. Algumas das canções também vêm de uma natureza impulsiva e intuitiva, que o fado também alberga. Este género musical não é apenas composto por marchas e tem muitos elementos que o caracterizam como género, portanto, sinto que estou a trabalhar a minha identidade neste género musical, o que sou, como me defino e essas escolhas é que me vão definir através das escolhas daquilo que eu canto que vai falando sobre quem sou e o que faço. A minha inspiração são os outros artistas, são eles que me inspiram.

Voltou a assumir o papel de produtora neste novo disco como aconteceu no último álbum Maria. O que fez de diferente nesta segunda vez?

É uma evolução natural. Sinto que foi tudo mais rápido. Na primeira vez, precisei de mais tempo e de mais pré-produção. Tinha de experimentar muito antes de ir para estúdio e de certificar-me do que gostava, porque era a falta de alguma experiência. Produzir é decidir e gerir não só outros talentos, mas também o gosto, e – apesar dessas decisões serem muito naturais – não ficou exatamente aquilo que imaginávamos. É esse desfasamento que é mais fácil de detetar quando se tem mais experiência. Foi diferente porque foram gravados os fados todos. No outro [álbum], estávamos todos ao mesmo tempo a gravar, mas eu tinha um resguardo diferente. Desta vez, foi um trapézio sem rede. Fomos fazer quase uma pré-produção para o estúdio, chamei-lhe “residência artística” porque houve muita experimentação durante o processo e não tinha sequer a noção de que iria ser o disco final. A pretensão era que se fizesse uma boa pré-produção para ouvir os temas gravados e depois decidir o caminho de cada um. A verdade é que em dez dias foi tudo gravado e depois houve a fase da mistura, que foi mais criativa em relação ao anterior [álbum], no meu ponto de vista. Sinto que arrisquei mais nessa fase de pós-produção e que tive uma maior envolvência dos músicos no acto live. Tivemos uma partilha que foi muito importante para o resultado final.