Catarina Furtado e mais de 160 mulheres escrevem carta aberta a Marcelo e Costa

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A apresentadora Catarina Furtado, ativista Elisabete Brasil, da UMAR, a modelo Sara Sampaio, as atrizes Sara Prata e Daniela Ruah, várias deputadas e ex-ministras, entre outras figuras destacadas, integram um grupo de mais de 160 mulheres com diferentes responsabilidades e notoriedade na sociedade portuguesa numa carta aberta, com a data de 7 de março, Dia de Luto Nacional, pelas vítimas de violência doméstica, dirigida ao Presidente da Republica, Marcelo Rebelo de Sousa, e ao primeiro-ministro, António Costa, na defesa e proteção das mulheres que são vítimas de violência.

Este ano, em apenas dois meses, foram assassinadas 11 mulheres e uma criança em contexto de violência doméstica. No seguimento destes acontecimentos cerca de 160 mulheres que pertencem as mais diversas áreas da sociedade representando a academia, as artes, a política, as organizações não-governamentais, a ciência, o mundo empresarial unem-se com o mesmo propósito”, refere o texto de introdução à carta, que pode ler, na íntegra, em baixo:

CARTA ABERTA

“Senhor Presidente da República
Senhor Presidente da Assembleia da República
Senhor Primeiro Ministro
Senhor Presidente do Conselho Superior de Magistratura
Senhora Procuradora Geral da República

A Violência Doméstica e de Género é um dos maiores flagelos nacionais.
Este ano, em apenas dois meses, foram assassinadas 10 mulheres e uma criança, em contexto de violência doméstica.

Em 2017:
– foram registadas 26.713 ocorrências pelas forças de segurança;
– foram identificadas 2.000 crianças em risco por violência doméstica nas CPCJ;
– foram acolhidas 3.116 mulheres e crianças em casas abrigo e respostas de emergência.

Apesar das participações serem em média, por ano, mais de 26.000, a verdade é que em 7 anos, as condenações com cumprimento de pena efetiva não ultrapassam as 723!
Sabemos que assim é pelos estudos e relatórios, pelo trabalho no terreno das organizações não governamentais, pelos quotidianos das mulheres, pelas notícias frequentes na comunicação social.

A consciência desta realidade, a sua ampla extensão e incidência, determinou que Portugal tenha iniciado há mais de 20 anos, ação tendente a fazê-la diminuir. Um percurso fortemente marcado pela adoção no ano 2000 do crime público nesta matéria.

Hoje, temos legislação, planos de ação, manuais de formação de públicos estratégicos, avaliação de risco, cursos para técnicas/os de apoio à vítima, redes nacionais, regionais e locais, mais serviços de apoio, campanhas, relatórios, estudos.

Hoje, fruto deste trabalho imenso, temos uma sociedade menos tolerante à violência que é exercida contra as mulheres e à mortandade que as atinge.
Mas sabemos que ainda existem problemas graves, nomeadamente discursos e práticas que legitimam a violência e que, teimosamente, impedem a diminuição das discriminações e com estas, a violência contra as mulheres.
O sistema continua a revelar fragilidades inadmissíveis que evidenciam uma cultura de discriminação que questiona, quase sempre, a palavra das mulheres, resultando, recorrentemente, numa maior desproteção.

Com base nos dados disponíveis, incluindo do Relatório GREVIO (grupo de peritas/os responsáveis pela monitorização da implementação da Convenção de Istambul), da Equipa de Análise Retrospetiva de Homicídio em Violência Doméstica e do Observatório de Mulheres Assassinadas, são, de facto, identificadas falhas no sistema de apoio e proteção às vítimas e na penalização de agressores:
– Défice de comunicação entre os serviços,
– Bloqueios associados, como por exemplo, o sigilo profissional,
– Escassez de equipas especializadas e permanentes,
– Insuficiente capacidade de avaliação e gestão do risco,
– Omissão de ação da justiça em tempo útil,
– Falta de articulação entre os tribunais criminais e de família e menores,
– Escassez da implementação de medidas efetivas de proteção da vítima.

Em suma, uma intervenção que, pelas suas falhas persistentes, não consegue travar os autores do crime de violência doméstica e falha na proteção e segurança das vítimas; torna-se incapaz, em tempo útil, de proteger, agir, prevenir, fazer justiça, evitando a revitimização e o feminicídio.
Há, por isso, muito caminho a percorrer.

Precisamos de uma efetiva estratégia e plano de ação articulado, assente na responsabilização de serviços e profissionais, envolvendo setores como a saúde, a administração interna, a justiça, a segurança social, a educação e, em forte articulação com a Rede Nacional de Apoio à Vítima.

Precisamos de práticas diárias, procedimentos e atitudes centrados nos direitos das mulheres, nomeadamente através de um plano de proteção desenhado à medida da situação e das necessidades de cada uma delas para que a sua segurança seja efetiva.
Precisamos de uma justiça célere, eficaz que proteja as vítimas e responsabilize criminalmente os agressores.

Precisamos de monitorização e avaliação, em contínuo, readequando diariamente as ineficácias geradas pelo próprio sistema e seus profissionais. Assim, no âmbito do Dia Internacional das Mulheres, para que nenhuma mulher fique para trás, as signatárias desta carta, solidárias com todas as que foram vítimas, comprometidas com uma cultura de não-violência e não discriminação, afirmam a necessidade de passar da narrativa à ação, lembrando que todas as políticas públicas precisam de ser articuladas e coerentes, que a justiça tem de ser mais eficaz na proteção e que as vítimas precisam de estar no centro das decisões.

Lisboa, 7 de Março de 2019”