Cátia Curica: “Se prevenirmos com a cosmética, não precisaremos tanto da estética”

Formada em Farmácia e, mais tarde, em Medicina Chinesa, Cátia Curica sempre gravitou em torno de um estilo de vida saudável, desde o tempo dos escuteiros e da alimentação vegetariana que quis adotar com apenas 14 anos. Fez cursos de comida macrobiótica, mas a cosmética acabou por falar mais alto e, em 2009, abriu com a sua irmã Rita a primeira loja bio especializada nessa área em Portugal, a Organii.

Dez anos depois, contam já com sete lojas, seis em Lisboa e uma no Porto, clientes fiéis que as acompanham há anos e ainda uma marca própria de cosmética, a Unii, feita com ingredientes naturais portugueses. Em entrevista, Cátia Curica fala sobre o seu percurso, a importância de saber o que colocamos na pele e dos benefícios de usar produtos naturais e cruelty-free [livres de testes em animais].

Como surgiu o seu interesse por um estilo de vida mais natural?
Sinto que quase nasci assim. Andei nos escuteiros desde pequenina e cedo aprendíamos a cuidar da natureza. Íamos acampar e ensinavam-nos a não ter impacto no meio ambiente, a acender fogueiras e todas estas regras. Desde os 14 anos que quis ser vegetariana e que comecei a fazer experiências de comida.

Como era o panorama vegetariano em Lisboa há 20 anos?
Era muito diferente. Havia um único supermercado biológico, que era a Biocoop, em Figo Maduro, e que ainda hoje existe. É uma cooperativa, éramos todos voluntários e tínhamos que fazer trabalho comunitário para permitir que fosse sobrevivendo.

Era fácil cozinhar vegetariano?
Não. Eu gostava de uma série de coisas e não sabia fazer, não sabia fazer um bolo. Tive muita dificuldade até descobrir o Instituto Macrobiótico de Lisboa. Eles dão aulas de cozinha e foi assim que consegui perceber os motivos e os porquês desta alimentação, mas também aprender a cozinhar. Abriu-se um novo mundo porque aprendi a fazer coisas que sabiam bem. Até aí era um esforço, quase apenas para comer.

Em que altura decidiu ir estudar Medicina Chinesa?
Ainda antes de conhecer o Macrobiótico e da Medicina Chinesa, fui para Coimbra tirar Farmácia. Eu e a minha irmã Rita (e sócia) sempre vivemos na linha de Sintra. Mas estudámos as duas em Coimbra, eu Farmácia e ela Arquitetura. Quando vinha visitar a família ia fazendo os cursos do Instituto e isso foi-se enraizando. Quando voltámos para Lisboa comecei, então, a estudar Medicina Chinesa e depois a dar consultas nessa área e sobre alimentação macrobiótica. Mas, quando voltámos de Coimbra, já comíamos tudo bio, macrobiótico, sem açúcar, produtos refinados e já nos preocupávamos com a pegada ambiental.

Qual foi o impacto na sua saúde na altura?
Foi grande. O que senti é que tinha muitas perturbações digestivas, sem conseguir entender o motivo. Só quando mudei de alimentação é que percebi que vinham todas dos lácteos. Quando parei de os consumir, nunca mais tive. Notei também muitas diferenças no meu sono e na minha energia. Acho que, independentemente da altura de vida que se faz a transição, qualquer pessoa vai notar um bem-estar digestivo muito maior, vai dormir melhor e ter mais energia.

Passou a ter melhor qualidade de vida.
Sabe que hoje ainda há quem me pergunte se acho que vou viver até aos 100 anos a comer desta forma. Eu não tenciono viver mais do que ninguém. O meu objetivo é, enquanto vivo, sentir que estou bem. Que tenho saúde, que tenho energia, que o meu corpo não é uma limitação à minha vida, mas sim uma ferramenta que está disponível. Vejo muita gente em estados de subsaúde, sempre muito cansados, com dores, e isso tem tudo a ver com maus hábitos alimentares. Não fomos alimentando bem as nossas cartilagens, não fomos fazendo o exercício correto.

Como surgiram as primeiras ideias sobre a Organii?
Eu e a minha irmã sempre fizemos alergias a produtos de higiene, mesmo de farmácia, e na altura não havia muita cosmética natural cá, nem várias gamas para diferentes tipos de pele. Começámos então a experimentar produtos bio lá fora e a pensar na possibilidade de os trazer para Portugal. Era só para ser um part-time e abrimos uma loja na Rua Anchieta, em Lisboa, no Dia Mundial do Ambiente, a 5 de junho de 2009, onde continuamos até hoje. Algumas das marcas que selecionámos na altura ainda continuam connosco, como a Voya e a ILA.

A mais recente loja da Organii, em Alvalade

Quando é que o projeto começou a ter dimensão?
Várias marcas começaram a pedir-nos para fazermos a distribuição, já que estávamos a tratar dos processos com a Infarmed. Depois uma amiga da minha irmã quis levar a Organii também para o Porto. Em Lisboa, abrimos um segundo espaço no LX Factory, que começou como um showroom e hoje são duas lojas e spa. Quando fiquei grávida, abrimos a Organii Bebé também no Príncipe Real, na Embaixada, porque sentimos necessidade de ter vários produtos de maternidade no mesmo espaço.

Quais as características dos produtos que escolheram ter na Organii?
O que quisemos com a Organii foi fazer uma curadoria pelo cliente, dar-lhe a confiança de que estivemos a estudar estes produtos e que são verdadeiramente naturais. Até porque, para terem estas certificações, estes cosméticos não podem usar derivados do petróleo, produtos sintéticos, mas sim extratos naturais e de agricultura biológica ou colheita selvagem. Nos seus processos de extração não usam solventes, não usam nada que seja poluente e químico. Como conservantes usam o vácuo, óleos essenciais, aloe vera. Claro que não vamos ter durabilidades tão grandes, mas ninguém precisa que um creme dure três anos. Também não usamos produtos testados em animais, além de temos cuidados com as embalagens e tintas e percebermos se as fábricas usam energias renováveis.

Vai muito além do próprio produto?
Sim. Também é por isso que não temos nenhum produto que custe cêntimos. Isso não paga absolutamente nada, nem o produto, a embalagem, até a etiqueta. Temos produtos que custam 2 e 3 euros, mas cêntimos não. Quando vemos produtos muito abaixo de preços razoáveis no mercado percebemos que são fabricados na China, em fábricas sem condições de vida, onde os ordenados não são razoáveis, a que nunca nos sujeitaríamos na Europa, nem aos nossos filhos. Muitas dessas marcas até fazem produtos para serem certificados como bio, porque é tendência, mas não fazem o melhor que conseguem. Se uma grande marca quiser mudar e ser bio, ótimo, agora ser isso e produzir em massa e a esses preços, tal não é compatível.

É mesmo mais caro comprar bio, como tantas vezes se fala?
Existe cosmética bio a um preço em conta. Mas há níveis abaixo dos quais não é possível produzir sem perder a ética, na cosmética e na alimentação. Eu não gostaria de ver um filho meu a ser pago abaixo do limiar aceitável e não vou provocar em ninguém aquilo que não gostaria que me fizessem a mim. Cosmética bio não tem de ter uma embalagem XPTO. Nós vendemos sabão à barra, de azeite, português e que nem embalagem tem. Acho que o preço não é impeditivo para fazer a transição para o bio.

A Organii faz este ano uma década. Que mudanças têm notado no consumidor?
Mais do que tudo, o despertar. Antes tínhamos de explicar tudo, agora as pessoas já sabem, vêm com perguntas que já são específicas. Querem mudar de desodorizante e perguntam logo se tem alumínio. Já estão muito mais informadas. Muitas dessas grandes marcas até acabam por despertar o cliente para o bio, mas depois o verdadeiro biológico é um caminho que alguns vão fazer.

Que mudanças se sentem ao adotar uma cosmética natural?
Logo no início, a pessoa não vai reconhecer a pele e o cabelo que tem. Como estiveram mascarados durante algum tempo vão começar a desintoxicar. Vai ser difícil acertar logo com os produtos bio porque a pele vai começar verdadeiramente a demonstrar as faltas e necessidades que tem. Durante algum tempo pode haver borbulhas, secura a pele mais áspera, o organismo demora mais ou menos mês e meio a entrar no equilíbrio.

De que forma é que alguns cremes mascaram a nossa pele?
Muitos têm moléculas estranhas ao nosso corpo que ele não consegue captar na totalidade, por isso é que alguns cremes nem são absorvidos ao final do dia. Quando se começa a usar bio, a pele começa a absorver. A grande diferença é o efeito, muito mais duradouro e mais profundo. Nós andamos um bocadinho desconectados de nós mesmos. Por exemplo, quando se deixa de usar desodorizantes normais, que têm um bocadinho de anti-transpirante, as pessoas estranham transpirarem tanto.

É a reação do corpo?
Sim. Porque o estivemos a inibir de transpirar e houve toxinas que não foram libertadas. Mas depois estabiliza, embora não seja fácil. Especialmente porque a pessoa usou muitos anos, vai ter de experimentar vários desodorizantes naturais, e o melhor até é usar argila para ajudar a desintoxicar as axilas.

Qual o primeiro produto que se deve comprar numa transição para o natural?
Há pessoas que são muito radicais e mudam tudo ao mesmo tempo. Outros fazem a transição mais suave, exatamente como a alimentação. Acaba o creme, compram um novo já bio e vão fazendo assim. Agora, os que mais vendemos e que levam muita gente a fazer a transição são os cremes, cremes de rosto, champôs e protetores solares.

Assim como se pode fazer alimentação preventiva, também se pode fazer cosmética preventiva?
Sem dúvida. Se prevenirmos com a cosmética, não precisaremos tanto da estética. Quanto mais cedo formos prevenindo, mais fácil é manter. São investimentos feitos na saúde a pensar também em poupar, porque as doenças saem todas muito caras. E digo saúde geral, saúde para o planeta e para os animais também. Porque é que hei de fazer escolhas piores para a minha saúde e a estragar mais o planeta e a vida dos animais? A maioria das pessoas só faz isso por desconhecimento.

Começaram por trabalhar com várias marcas internacionais, mas neste momento já têm a vossa, a Unii. Como foi esse processo?
Muitos clientes iam pedindo e queriam uma marca portuguesa biológica com ingredientes nacionais. Noutra fase, queremos mostrar lá fora o que o nosso país tem para oferecer. Falo do azeite, do alecrim, do medronho ou da bolota. Queremos tornar estes produtos mais conhecidos e que haja uma propagação da nossa cultura.

Que tipo de produtos tem já a Unii?
Quisemos oferecer, sobretudo, produtos muito simples. Usamos ingredientes como óleo de argão, rosa mosqueta, e apresentamos de forma que as pessoas consigam comprar a bom preço e a granel. Estamos a tentar fazer produtos com pouca água, para que esta também seja poupada pois é um recurso cada vez mais escasso. Daí o champô sólido, pastas de dentes sólidas. Toda a nossa gama assenta em ter o mínimo de agua possível.

Ainda existe muita resistência aos produtos sólidos?
Não fazem parte da nossa tradição e também é preciso saber usá-los. As nossas pastas de dentes não fazem espuma, mas também não é necessário, pois a espuma é só uma opção estética, tal como o sabor a menta recorrente, que foi só uma escolha publicitária, não uma medida de saúde. Já o nosso champô sólido faz muita espuma, mas a pessoa tem de molhar a cabeça e passar duas a três vezes no máximo.

É diferente fazer e vender cosmética?
A Organii e a Unii são como duas empresas separadas. É claro que a Organii nos ajuda, porque percebemos o que os clientes querem e o que sentem falta. Mas produzir implica muito mais, como perceber as diferenças do tipo de pele português. Temos peles tradicionalmente com mais oleosidade porque não temos o frio a secar tanto como no norte da Europa ou mesmo França. Somos um país mais voltado para o mar, com mais humidade, e podemos ter a pele com mais tendência de oleosidade, além de que os óleos não são tão bem absorvidos. Fazer cosmética para uma pele portuguesa não é igual do que fazer para uma norueguesa.

O vosso cliente é maioritariamente feminino?
Temos muitas mulheres, claro, mas também muitos homens, alguns preocupados com os filhos e outros a comprar para eles próprios. Não sinto que esta seja uma preocupação exclusivamente feminina. Até diria que os homens são mais convictos quando tomam a decisão de comprar natural.

Sendo mãe, como vê a sensibilização das novas gerações para estes temas?
Acho que já estamos alguns passos mais frente porque, nas escolas, tem havido uma grande sensibilização ambiental. Os miúdos estão muito mais despertos, mais alerta. No meu caso, foi super-fácil educá-los assim porque já comíamos assim, os meus pais também e já todos tínhamos feito a transição para uma alimentação natural. Claro que na escola eles percebem a diferença relativamente às outras crianças, mas explicamos-lhe que a comida deles é de super-heróis e que outros meninos não comem assim porque os pais ainda não sabem certas coisas. E depois é importante dar-lhes boas alternativas, incluindo os doces, os chocolates e os bolos. Não estamos a espera que eles vivam numa bolha.

É utópico pensar que vamos todos consumir produtos biológicos no futuro?
Acho que esse vai ser o padrão, já há estudos que indicam que o padrão do futuro vai ser bio. Um dia que a alimentação mude e passe a ser maioritariamente biológica, nós naturalmente vamos estar todos usar o mesmo tipo de ingredientes na cosmética. Acho que as pessoas vão perceber que o planeta não vai conseguir aguentar com as gerações vindouras se continuarmos com esta destruição massiva.

Imagem de destaque: Divulgação

A marca de cosmética orgânica e unissexo que se adapta a cada necessidade da pele