Centenas de pessoas no adeus a Agustina, a escritora que “pairava sobre as realidades”

Agustina Bessa-Luís morreu na segunda-feira, 3 de junho, aos 96 anos. As cerimónias fúnebres realizaram-se esta terça-feira, no Porto, com a presença de centenas de pessoas, entre as quais várias figuras de estado como o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, e a ministra da Cultura, Graça Fonseca.

Foram cerca de duas centenas de pessoas, entre familiares, amigos e governantes, a marcar presença na missa de corpo presente, que teve início cerca das 16h e demorou aproximadamente uma hora, tendo sido presidida pelo bispo do Porto, Manuel Linda.

O governo decretou dia de luto nacional pela morte da escritora, considerada um dos nomes maiores da literatura portuguesa contemporânea, no mesmo patamar que autores como José Saramago ou António Lobo Antunes, reconhece Maria Alzira Seixo. Para a antiga professora catedrática da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, ensaísta e especialista em literatura portuguesa comparada, “a grande importância” e contribuição de Agustina Bessa-Luís para a produção literária em língua portuguesa foi a criação de “um estilo muito pessoal”. “A partir do seu quarto, quinto romance percebeu-se que havia uma frase literária, na sua composição dos textos, que era muito longa e ao mesmo tempo muito prosódica e que era completamente inabitual na literatura portuguesa”, diz ao Delas.pt Maria, acrescentando que aquilo que, na altura, muitos achavam estranho, “acabou por criar uma personalidade literária muito própria e por conquistar a admiração das pessoas”.

Além desta inovação, Maria Alzira Seixo destaca outra, no discurso literário da autora de ‘A Sibila’: “a Agustina foi a temáticas muito interessantes, porque mesclava muitos tipos da vida humana, vidas de jovens, vidas de idosos…vidas completamente afastadas da nossa realidade comum mas, por vezes, também completamente inseridas na nossa realidade comum. Ela foi inesperada porque as suas personagens não eram completamente ficcionais, mas ao mesmo tempo eram e o ser e o não ser, no caso da Agustina, tornou-se muito atrativo”.

Na obra de Agustina Bessa Luís, as relações familiares são uma das grandes temáticas tratadas, mas, refere a especialista em literatura portuguesa, “sem ser propriamente da família tradicional”, mas antes “a maneira como ela transmitia as relações familiares, que por vezes até chocam um bocadinho o leitor”. “Depois de escrever sobre ela houve muitos mais livros, mas penso que quando escrevi havia já linhas de força muito interessantes na sua obra. A primeira era a tal frase, uma frase que parecia que nunca mais acabava. Ela desafiou o princípio da frase curta e desafiou-o com muita personalidade e muito êxito”, reforça.

Apesar de Agustina Bessa-Luís ser frequentemente associada ao romance ‘A Sibila’, a sua obra tem muitos outros títulos de semelhante importância. A ensaísta elege ‘A Muralha’ (1957) como um dos seus livros favoritos, por retratar alguns dos aspetos que distinguem a escrita de Agustina. “Eu gosto muito de alguns dos primeiros livros, em especial de ‘A Muralha’, em que as relações familiares, amorosas se baseiam no que acontece na vida corrente, mas que no livro ganham uma outra dimensão.”

Outra das características que aponta é o facto de Agustina Bessa-Luís estar sempre “a derivar”, nas histórias que escreve, daí que em tempos Maria Alzira Seixo tenha chamado ao estilo da escritora “um estilo de derivação”. “Na minha tese, que é em parte sobre ela, sublinho essa parte do seu discurso literário”, refere. A forma como Agustina ia derivando, e ao mesmo tempo guiando o leitor através dessas deambulações nas suas obras, estendia-se aos seus relacionamentos pessoais, como recorda a ensaísta. “Eu estive com ela pessoalmente duas ou três vezes, mas falávamos pelo menos uma vez por semana por telefone, em conversas muito longas. Achava muita graça, porque ela punha-se a projetar situações e às vezes era-me difícil acompanhar, perceber o que ela queria dizer. Ela a falar era um pouco como nos livros. Partíamos de um assunto e entretanto ela já estava noutro, e depois num terceiro e num quarto e se me perguntassem o que é que ela tinha falado eu não sabia resumir”, recorda.

Por outro lado, Maria Alzira Seixo sublinha que a escritora sempre “cultivou um certo ar misterioso”, intercalando-os com momentos mais prosaicos e quotidianos. “De repente, surpreendia-nos, como quando uma vez me disse [numa conversa ao telefone]: ‘ai agora tenho de ir embora porque tenho de ir ver o coelho à caçador que está no tacho’ [risos].É muito curioso, porque por um lado ela pairava acima das realidades, mas de um momento para outro convocava-nos para uma realidade caseira muito comum, e eu sempre achei isso muito interessante e sedutor nela”, recorda.

A escritora que pairava acima das realidades e da política

Talvez por “pairar acima das realidades”, como refere Maria Alzira Seixo, a imagem que Agustina Bessa-Luís transmitia era a de uma pessoa discreta e respeitadora, que não tecia comentários depreciativos sobre terceiros, não fazia perguntas inoportunas e não falava abertamente sobre política.

Pelo menos, é assim que a ensaísta a recorda, no seu lado mais pessoal. “Poucas vezes falámos de literatura, não lhe interessava muito, sobretudo o que os outros escreviam. E nisso ela era igual ao Vergílio Ferreira. Só que o Vergílio dizia: ‘ah, eu li, aquilo é horrível!’. E ela não. Ela estava sempre a voar ao lado das coisas que nós mencionávamos e acabava sempre por dar a volta à conversa e falar das coisas que lhe interessavam”, assinala.

Maria Alzira Seixo, que, em 1987, fundou e presidiu à Associação Portuguesa de Literatura Comparada, considera que é com o autor de ‘A Aparição’ que Agustina é mais comparável. “Embora fossem muito diferentes, quase opostos, cada um tinha sua maneira particular de viver alheado daquilo que se passava à sua volta. Ainda que o Vergílio tivesse posições políticas definidas, ao passo que a Agustina, apesar de os seus últimos livros já tomarem atitudes políticas, não. Nos primeiros dois terços da sua obra, a política praticamente não existe”.

A ensaísta lembra que Agustina Bessa-Luís era censurada por alguns setores políticos precisamente por não tomar partido. “As pessoas de esquerda normalmente não gostavam dela porque ela não tomava posição. E não tomava posição, a meu ver, não era necessariamente por não a ter ou por desfazer da política, ela estava noutra esfera”.

Apesar disso, a escritora frequentou, ocasionalmente, alguns círculos políticos, com figuras de partidos do espetro mais à direita da política nacional. O que na opinião de Maria Alzira Seixo se prenderia não tanto com afinidades ideológicas, mas sobretudo pessoais.

“Eu tenho a sensação que era mais as personalidades políticas que a motivavam do que propriamente uma escolha dela. Ao passo que o Vergílio não. O Vergílio era um profundo anticomunista e tudo o que, para ele, fosse inovação política era suspeito, apesar de não ser um homem ligado à reação.”

Já Agustina, no entender de Maria Alzira Seixo, “pairava acima da política, embora as pessoas a ligassem à direita” e dá como exemplo a “diversidade das opções” que mostrava nos seus textos literários. “Como ela pairava, muita gente dirá que ela não tinha relação com a realidade. [Mas] Tinha! Só que ela considerava várias realidades ao mesmo tempo e voava de uma para outra de uma maneira que até podemos dizer que é progressista, na medida em não optava apenas por uma maneira de viver ou por uma maneira de ser, mas por várias.”

 

Morreu Agustina Bessa-Luís, uma das maiores escritoras portuguesas