Cigana: a menina mulher

Casam cedo, abandonam a escola cedo, têm filhos cedo e cedo deixam de ser meninas para cuidar do marido e da família: é assim se enquadra o retrato generalizado das mulheres ciganas. Mas por detrás deste, outro começa a ser desenhado num traço consistente, porque “todas as pessoas têm direito a ser o que quiserem”. A asserção é, de resto, o mote da campanha anti-discriminação, lançada pelo Governo, para assinalar o Dia Nacional das Comunidades Ciganas, que se comemora este sábado.

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Com a Constituição de 1822 os ciganos conquistaram a cidadania portuguesa, sendo reconhecidos, desde então, como portugueses de pleno direito. Ainda assim, a situação da comunidade cigana continua muito vulnerável pelo que têm surgido, ao longo dos últimos 40 anos, iniciativas que visam reverter esse quadro. É o caso da Estratégia Nacional para a Integração das Comunidades Ciganas (ENICC), coordenada pelo Alto Comissariado para as Migrações, e que, entre 2013 e 2020 se compromete trabalhar quatro áreas fundamentais: educação, habitação, emprego e saúde (na galeria de imagens acima pode ficar a saber mais sobre a relação entre ciganos e não-ciganos).

Vídeo da campanha:

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Apesar dos esforços no sentido da integração, Portugal não contempla a variável etnia nos censos, o que acaba por comprometer a informação real e objetiva sobre a população cigana portuguesa quanto ao número de indivíduos – estimado entre os 40 e os 60 mil – à sua localização e modos de vida. Sabe-se, no entanto, que muitos ciganos portugueses se encontram em situação de grande fragilidade sem acesso, ou com acesso muito limitado, a bens e serviços fundamentais. Limitado, muitas vezes, pela dificuldade em conciliar as regras internas da comunidade cigana – a que chamam de Lei Cigana ou Lei do Apaziguamento – com a lei geral.

Moça: expressão cigana que se refere às raparigas solteiras até aos 12 anos

Um dos eixos a que essa conciliação tem mostrado maior resistência é o da educação, sobretudo no que respeita à educação das mulheres que têm, à partida, menor poder de negociação do que os homens sobre as várias dimensões da vida social e familiar.

Recentemente, o Tribunal de Matosinhos considerou que a emancipação pelo casamento dava a uma jovem de 16 anos plena capacidade de exercício de direitos, incluindo o de abandonar a escola antes de obter a escolaridade mínima obrigatória ou de completar 18 anos. O casamento é permitido em Portugal a partir dos 16 anos, sendo que até aos 18 é necessária uma autorização dos pais.

Este casamento, precoce aos olhos da comunidade maioritária, retira a adolescente da escola porque assim dita a tradição. O abandono escolar antes do 12º ano é recorrente e compromete, entre outras dimensões da integração social, a inserção da futura mulher no mercado de trabalho.

O Rendimento Social de Inserção (RSI) é, muitas vezes, a porta de acesso à escola. Os pais têm de manter os filhos a estudar para continuarem elegíveis para receber o RSI e, por outro lado, os adultos têm de procurar formação.

Maria da Conceição tem 23 anos, nasceu no Porto, vive em Évora e estudou até ao 9º ano. Diz ter “gostado muito” de frequentar a escola e apenas não continuou os estudos porque casou. Tinha 17 anos.

Entretanto, já depois de casada, concluiu uma formação em Lavandaria e Tratamento de Roupa, através do Centro de Emprego. Da formação, diz ter gostado de tudo, destacando o facto de ter feito amigas, incluindo “não ciganas”. Trabalhou na lavandaria de um lar, mas hoje encontra-se desempregada. Sobre um dia poder inscrever-se numa Universidade foi ideia que nunca lhe ocupou o pensamento.

A frequência universitária não é regra junto das adolescentes e jovens adultas ciganas; ela é exceção. Mas também é verdade que há cada vez mais exceções.

Rumo à profissionalização

Ao Delas.pt, o Alto Comissariado para as Migrações, I.P. (ACM) diz reconhecer “que a integração social das comunidades ciganas, nomeadamente das mulheres, reveste-se, nos dias de hoje, de alguns desafios” aos quais tem vindo a dar resposta através de “várias iniciativas de promoção de empoderamento e capacitação das mulheres ciganas. A titulo de exemplo, refira-se a criação do Fundo de Apoio à Estratégia Nacional para a Integração das Comunidades Ciganas (FAPE) em 2015, com edições anuais, cujos projetos apoiados se têm debruçado sobre a promoção da igualdade de género, acesso à educação e associativismo feminino cigano, e a criação, em 2017, do Programa de Apoio ao Associativismo Cigano (PAAC), que apoia seis associações ciganas, duas delas centradas na promoção do associativismo feminino, do empoderamento feminino e da participação cívica feminina.”

Entre as iniciativas que concorrem para a integração via educação está o Programa OPRE – Programa Operacional para a Promoção da Educação que atribuiu, em 2016, 25 bolsas de estudo para jovens ciganos e ciganas estudantes universitários, para o ano letivo de 2016/2017. São 14 raparigas e 11 rapazes.

Segundo a Associação para o Desenvolvimento das Mulheres Ciganas Portuguesas, “a mulher cigana nunca é forçada a casar, mesmo estando prometida a alguém; a última palavra pertence sempre à mulher”. E hoje, mais do que ontem, o sim é dado à educação, à profissionalização e à autonomia.