Cleo Tavares: “Ser negra não é a minha profissão”

A atriz Cleo Tavares, de 31 anos, está agora a dar-se a conhecer ao grande público nacional com a personagem Aisha Rahim, do filme português Diamantino, que está nas salas de cinema desde o início do mês. Apesar de já ter participado em três filmes nacionais – Verão Danado, Tristes Monroes e Canção de Lisboa, é teatro que mais tem feito.

Nascida em Cabo Verde, mudou-se para Portugal com apenas 10 anos. Nesta entrevista fala-nos do racismo estrutural que ainda sente em território luso, da forma como isso tem afetado a sua carreira na representação e da experiência que sido fazer cinema nacional.

Como começou a sua aventura no mundo da representação?

A minha aventura começou no teatro académico, no grupo mISCuTEm, quando estudava finanças e contabilidade no ISCTE. Depois fui fazer um curso de fim de tarde no Chapitô com o Bruno Schiappa e, por fim, candidatei-me à Escola Superior de Teatro e Cinema, onde fiz a licenciatura em “Teatro – ramo Atores”. Foi essencialmente no final do último ano que comecei a trabalhar profissionalmente.

Nasceu em Cabo Verde e veio para Portugal com apenas 10 anos. Teve dificuldade em adaptar-se à mudança?

Tive dificuldades nos primeiros tempos, pois sentia muitas saudades de Cabo Verde. Havia uma urgência em aprender português porque, embora a língua oficial em Cabo Verde seja o português, fala-se mais crioulo. Sentia urgência em aprender para me expressar corretamente. Acreditava que assim mais facilmente conseguiria estabelecer laços e estreitar as diferenças. Lidar com o frio foi uma novidade para mim. Obrigou-me um pouco a sair da minha concha de timidez e dar-me a conhecer, contudo tive a sorte de conhecer a Jurema, que foi a minha primeira amiga em Portugal, fundamental ajuda nessa transição e estadia num país novo, onde muita coisa me era desconhecida e distante.

Noutra entrevista referiu que em Portugal existe um racismo estrutural. De que forma é que, atualmente, esse tipo de problema ainda se manifesta na sociedade portuguesa?

O racismo estrutural manifesta-se ainda em Portugal quando frequentamos os lugares de prestígio, olhamos à nossa volta e verificamos quantas minorias fazem parte dele. Quando olhamos para a periferia e percebemos quem são os corpos que habitam esse espaço, quando entramos numa universidade e verificamos quem leciona e o conteúdo que é lecionado. O “racismo estrutural” sente-se quando às pessoas com outros tons de pele lhes é sempre feita a pergunta “és de onde?”, isto porque o consciente coletivo não assume outros biótipos como sendo portugueses legítimos. Se olharmos historicamente para Portugal verificamos que a sua história é feita por essas mesclas. Quando olhamos para uma sociedade e para os lugares de poder e de decisão, não está refletida essa diversidade que a constitui, temos um problema, temos um problema estrutural e é um problema de todos nós, não é somente daqueles que sofrem com isso. A não ser que não sejamos defensores ou não acreditemos na igualdade.

Sente que o racismo se estende à representação?

Quantas pessoas pertencentes as minorias vemos representados? E quando são, quais são os papéis que desempenham? Onde estão os nossos Denzel Washington, Viola Davis, Salma Hayek, Benicio del Toro, Ziyi Zhang, Sandra Oh, Dev Patel? Quando os profissionais nos colocam em caixinhas e quando somos contratados com base na nossa cor de pele ficamos limitados a certos papéis e, por conseguinte, o nosso desenvolvimento é limitado. Ser negra não é a minha profissão.

Antes deste Diamantino fez também A Canção de Lisboa. Qual é o rescaldo que faz da experiência de fazer cinema em Portugal?

A minha participação n’A Canção de Lisboa foi muito pequena. Diria que, acima de tudo, as experiências que tive no Verão Danado, do Pedro Cabeleira, no Terra Amarela, de Dinis Costa, e, por fim, no Diamantino deram-me mais a noção de como é trabalhar em cinema. O cinema português é, a meu ver, um cinema que apresenta cada vez mais diversidade, o que também me parece ser um dos motivos para ter vindo a ganhar mais reconhecimento no exterior, nos últimos anos, mas que ainda precisa de muito investimento a nível politico. É muito complicado, por exemplo, para jovens realizadores – e não só – conseguir financiamento para as suas primeiras obras e os financiamentos que existem para a maioria são muitas vezes insuficientes. Com a prova que temos dado devíamos pensar em políticas de fomentação para essa aérea e não só, devíamos alargar para todo o panorama cultural, até porque o direito à cultura está presente na nossa Constituição.

“Quando somos contratados com base na nossa cor de pele ficamos limitados a certos papéis.”

Que outras áreas da representação gostava de vir a experimentar?

Atualmente trabalho muito em teatro, mas também gostava de passar pela televisão e de ir para trás das câmaras, contar historias não só como atriz, mas também criar as histórias que conheço e sobre as pessoas que me interessam. Essa possibilidade fascina-me bastante.

O filme Diamantino foi muito falado depois da estreia em Cannes, há um ano. Em Portugal não está a ter um impacto tão grande. Acha que os portugueses têm preconceitos em relação aos filmes nacionais?

O Diamantino será muito um filme de “boca a boca”, mas acho que ainda existe alguma desconfiança em relação ao cinema nacional e à mentalidade de que o que se produz lá fora é que é bom. Embora cada vez mais os filmes portugueses estejam a ser premiados e a serem internacionalmente reconhecidos e diversificados. No entanto, o Diamantino só teve a sua estreia nacional na passada quinta-feira. Espero que encontre o seu público e tenha uma crescente adesão.

Nesta comédia aborda-se o culto da celebridade, centrado num jogador de futebol que nos faz lembrar muito o fenómeno Cristiano Ronaldo. De que forma é que esta comédia pode pôr o espectador a pensar?

O Diamantino fala de tanta coisa que fica complicado restringir-me a alguns factos. Este filme mostra-nos como no mundo do futebol – e fosse somente assim no futebol – é fácil passarmos de bestiais a bestas, como facilmente nos esquecemos que o outro é humano, de como estamos a viver numa sociedade na qual o importante é a eficiência e muitas vezes não aquilo que fazemos. Mas também fala do lado humano das celebridades, da solidão que pode acompanhar estas pessoas e de como a sobre-exposição das suas vidas pode afetar não só o lado mais pessoal, mas também profissional de cada um. Faz-nos questionar sobre a condição humana, o risco que corremos para sobrevivermos quando a nossa terra deixa de ser segura, faz-nos pensar no panorama politico como o Brexit, como as pessoas se podem deixar influenciar por publicidades e discursos xenófobos, o discurso do Trump, de fechar as portas aos mais necessitados, quando todos nós somos responsáveis pela situação que estes países têm vivido. No fim, cada espectador irá sair com a sua própria impressão, terá um tema que lhe chamará mais a atenção.

No filme dá vida a uma refugiada que acaba por se revelar uma agente infiltrada na vida de Diamantino. Como foi o processo de preparação para esta personagem?

Não tive a possibilidade de ter muito tempo para a preparação do filme, visto ter sido a última a chegar ao elenco. Entrei no projeto quando este já se encontrava num estado bastante avançado, por isso, fui descobrindo a Aisha fazendo, dialogando com os realizadores, a contracenar com os colegas, errando e acertando. Acredito, e quase como sempre acontece no cinema, que a minha personagem ganhou a sua forma na montagem final.

“Todo o discurso misógino e machista que era proferido assustava-me e preocupava-me.”

Na última cena, a sua personagem e a de Carlotto Cotta aparecem em nu integral. Foi difícil para si expor-se tanto?

Quando nos foi pedida a cena, a equipa teve todo o cuidado em respeitar a nossa privacidade, por isso criou-se todo o ambiente possível para não nos sentirmos desconfortáveis com isso. Houve respeito.

Em outubro do ano passado recorreu ao seu Instagram para comentar as eleições no Brasil. Na sua opinião é importante, enquanto figura pública e mulher, manifestar a sua opinião perante este tipo de acontecimento histórico?

Para mim é importante, como cidadã e pessoa individual, pensar e refletir o tempo em que vivo, pois quero ter o máximo de consciência nas decisões que tomo, embora nem sempre seja possível, porque somos humanos e consequentemente estamos sujeitos ao erro. Porém, não acredito que por as coisas acontecerem no outro lado do mundo não me podem afetar, principalmente no mundo globalizado em que vivemos. Mesmo que não me afetasse diretamente, acredito na sonoridade e na empatia com a realidade dos outros. Para mim as consequências dessa eleição eram preocupantes, o que estava em jogo colocaria a existência de muitas pessoas em risco e numa situação muito débil, principalmente a comunidade LGBTQ+. Numa época em que alguns movimentos feministas, estão a conseguir colocar em pautas certas discussões, todo o discurso misógino e machista que era proferido assustava-me e preocupava-me, senti que estávamos a regredir. Tenho as minhas crenças, independentemente do país onde esteja inserida acredito que devemos
respeitar a existência do outro, acredito que podemos todos evoluir para uma sociedade mais justa. Se leva tempo? Se temos todos de nos sentar, falar e tentar perceber? Sim! Mas apavora-me mais ver o discurso de extrema-direita ganhar terreno pelo mundo fora. Se o facto de falar, de colocar coisas relativamente às minhas crenças nas redes sociais, fizer alguém pelo menos refletir, então ganhei o meu dia. Essa é minha forma de existir, que dedico principalmente aos meus sobrinhos, não quero pensar que não fiz nada para lhes deixar um mundo mais respeitoso, não quero olhar para trás e sentir vergonha de termos caminhado numa direção, que eu considero completamente errada, e não ter feito nada. Mesmo assim, com todas as minhas tentativas de refletir, sinto que faço muito pouco, gostaria de fazer mais. Por vezes sinto que não evoluímos o suficiente, mas tenho esperança na humanidade. A passividade humana permitiu tragédias incalculáveis.

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