Embora a mutilação genital feminina seja proibida na Costa do Marfim desde 1998, agência noticiosa France Presse reportou o tráfico ilegal de produtos feitos à base de clitóris excisados e que alimentam, através da mutilação feminina na infância e na adolescência, um comércio em torno de pomadas e poções que se creem trazer amor, sucesso, poder, dinheiro e até acesso a cargos políticos.
O órgão é vendido no mercado clandestino devido às alegadas propriedades místicas por até 75 mil francos CFA (pouco mais de 114 euros), o salário mínimo na Costa do Marfim.
Em muitas regiões deste país do oeste da África, “este órgão é utilizado para preparar poções do amor, ganhar dinheiro ou ter acesso a cargos políticos”, explica Labe Gneble, diretor da Organização Nacional para Infância, Mulheres e Famílias (Onef), citado pela agência France Presse.
A mutilação genital feminina na Costa do Marfim atinge, apesar de proibida, uma em cada cinco mulheres da região e tem consequências físicas e psicológicas graves que podem chegar à morte. Em sobrevida há riscos sérios de esterilidade, complicações no parto, infeções e sangramentos.
“Recebi um recipiente que continha este órgão mutilado,
seco, em forma de pó preto”
Ouvida pela AFP, a ginecologista Jacqueline Chanine, que trabalha em Abidjan, a maior cidade do país, explica que “o clitóris não traz poderes”. “É um absurdo”, disse. O antropólogo social Dieudonné Kouadio confirmou que a prática persiste em diversas regiões, num estudo na cidade de Odienné.
“Recebi um recipiente que continha este órgão mutilado, seco, em forma de pó preto”, explica o académico da Universidade de Bouaké.
O Ministério da Mulher, que não validou as conclusões deste relatório publicado em 2021, não respondeu aos contactos da agência noticiosa francesa.
Membro da Fundação Djigui, Nouho Konaté estuda a prática há 16 anos e, segundo descreve, os agricultores “misturam o pó com sementes para melhorar a produção dos seus campos” em Odienné.
No centro-oeste, as mulheres o utilizam como afrodisíacos, explica a especialista Safie Roseline N’da, coautora de um artigo sobre mutilação publicado em 2023.
Para a Fundação Djigui, o comércio é “uma das razões da sobrevivência das mutilações genitais femininas” no país.
Acréscimo de casos repostados em Portugal, em 2023
A prática da mutilação genital feminina tem vindo a ser identificada em Portugal onde, em 2023, foram detetados mais de 220 casos. O valor de identificação mais elevado desde que há registos, 2014, e são mais 33 casos referenciados do que em 2022.
Os dados foram avançados pela Direção-Geral de Saúde (DGS) no momento em que se evoca o Dia Internacional da Tolerância Zero à Mutilação Genital Feminina (MGF), a 6 de fevereiro deste ano, e indicam que este acréscimo de processos, sobretudo depois de 2020 (650), “poderá estar relacionado com o aumento do número de migrantes permanentes em Portugal, especialmente os oriundos de países onde a prevalência da MGF é elevada”, refere fonte oficial.
A mesma autoridade de saúde vinca que “a formação pós-graduada na área da MGF, cuja última edição decorreu em 2022, contribuiu para uma maior sensibilização dos profissionais de saúde para esta temática e para a necessidade de efetuar os registos, podendo também impactar o número”.
“Há já alguns anos passou a haver formação específica para o corpo médico e de enfermagem. Existe uma pós-graduação, passou a haver conhecimento para identificar as situações e é por isso que aparecem tantos mais casos”, refere a presidente da CIG.
Para Sónia Duarte Lopes, coordenadora regional da Associação para o Planeamento da Família (APF) Lisboa, haver este volume de reporte deve ser visto como um “bom sinal”. “O aumento dos números é normalmente interpretado como algo negativo, mas é sobretudo positivo”. E esclarece: “Sabíamos que estas senhoras, vítimas desta prática, existiam, mas com estes dados passámos também a saber onde estão, quais as necessidades de saúde e podemos acompanhar estas senhoras e intervir na mudança de comportamentos”, refere a responsável, lembrando que se estima que existam, em Portugal e segundo dados de 2015, 6500 mulheres que terão sido vítimas desta prática. Um valor que é ainda muito acima dos casos reportados.
CB com AFP