Como a eterna juventude pôs a meia idade em crise

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[Fotografia: Shutterstock]

Os 40 anos são os novos 30, os 30 são os novos 20 e há mesmo quem diga que os 40 anos são os novos 20. No mesmo sentido e a acompanhar este mesmo raciocínio, o Cartão Jovem não para de aumentar a sua abrangência e já dá descontos até à véspera do utente completar 30 anos.

Não é de hoje a certeza de que nunca ninguém quis e quer envelhecer, mas o que está a legitimar esta eternização da juventude? Estamos todos mais jovens e vigorosos, estamos em negação com o envelhecimento ou estamos a ser empurrados para esta ideia? Tudo como se a meia-idade, ela própria, tivesse entrado numa profunda crise.

No dia em que se assinala a Juventude, este domingo, 12 de agosto, fomos saber porque é que somos todos cada vez mais novos até mais tarde. E se isto parece espetacular à primeira vista, se calhar há perigos bem sérios que daqui decorrem.

Da desocupação à maternidade tardia

“A nossa ideia de juventude é herdeira dos anos 50 do século passado e surgiu para contextualizar os jovens que estudavam no secundário e que estavam numa lógica da desocupação profissional, de se estar longe do mercado de trabalho, longe de obrigações laborais e familiares”, contextualiza Sónia Marques. Ato contínuo, a semioticista (especialista em analisar mensagens que são colocadas e chegam do mercado de consumo) vinca que hoje esse “período foi estendido até ao fim da conclusão dos estudos superiores, pelos 24 anos, adiando-se as responsabilidades até aí”.

Nada disso, contrapõe Cristina Valente. A psicóloga especializada em neurociência crê, defende e batalha por outro argumento: “Isto acontece porque a sociedade está a ter filhos mais tarde e pelas razões erradas”. Aqui, e para contextualização, é importante vincar que, em 1990, a idade média para se ser mãe era de 24,7 anos, e atualmente é de 30,3 anos, segundo dados da Pordata, de 2017.

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Cristina vai, no entanto, mais além: “O perigo começa quando o bebé nasce, já chega como sr. Doutor. Em poucos meses, os pais querem que tenham os brinquedos que os tornam mais inteligentes. Sobre os filhos recaem as expetativas de que eles têm de ser sublimes, grandiosos, obras-primas”, refere.

A superproteção e o incesto ‘light’

A especialista prossegue: “Depois, já mais velhos, há uma superproteção porque os pais creem que eles não estão preparados para o mundo – e, de facto, não o foram – e, quanto mais tempo ficarem em casa, mais serão protegidos. São educados pelas lentes do medo dos pais, sentimentos que são impactados aos filhos ao longo da vida”.

Recorde-se que, segundo o estudo recente Igualdade de género ao longo da vida: Portugal no contexto europeu, empreendido por investigadores do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP), as raparigas portuguesas estão a sair mais cedo do ninho familiar do que eles: as primeiras com 28,2 anos e eles 29,7.

“Temos mães a gabarem-se, como piadola, que veem outros a achar que o filho pode parecer o namorado delas”, diz a psicóloga

Estas razões vão mais além do que é óbvio e temido por todos: o tabu do envelhecimento, que – lembra Sónia Marques – “é ainda mais pesado para as mulheres, elas não podem envelhecer. E cada vez menos”.

Cristina Valente aponta até uma incongruência que tem tanto de preocupante como, avançamos nós, de incesto ‘light’.

“Quando o miúdo tem 10 anos e parece muito crescido, já quase com 20 anos, e a mãe, que tem 40, parece ter 30, tal tem uma leitura bastante curiosa: sem dizer, aquela mulher quer ser vista como mais nova do que o que é”, diz a especialista.

Mas tal quer dizer muito mais. “Isto é preocupante do ponto de vista psicanalítico porque temos mães a gabarem-se, como piadola, que veem outros a acharem que o filho pode parecer o namorado delas”.

Desemprego, trabalhos mal pagos

Seguindo a pista de Sónia Marques, que tem por base a ideia do adiar das responsabilidades, a falta de trabalho após uma licenciatura ou mestrado ou mesmo as altas taxas do desemprego jovem concorrem para a permanência dos filhos no ninho familiar e para o alongar da juventude. Mas Cristina Valente volta a discordar. “É uma falsa questão”, refere, sem meias palavras.

“Mesmo com as altas taxas e com números como chegámos a ver recentemente, a verdade é que o que está por trás dessa falta de motivação em arriscar e sair de casa tem a ver com o medo que os pais impactam nos filhos e que acaba por super-protegê-los”, refere a a especialista.

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Para a psicóloga, “quando os pais estão com a lente do medo, veem que não há trabalho no mundo profissional tal como eles o conhecem e imprimem isso aos filhos”. Ora, afirma Valente, “há depois outras formas de trabalhar que passam por pensar diferente, e os miúdos, se tiverem sido educados nesse sentido, percebem que, hoje em dia, há outras soluções”.

A nova quimera: viver no passado e no futuro e infantilizar a velhice

Responsável por uma empresa que analisa mensagens publicitárias, Sónia Marques, revela que as marcas querem “rostos de 20 anos para comunicar bens e serviços para essa faixa etária”. Até aqui nada de novo. Curioso mesmo é quando a semioticista revela que “os produtos e serviços para as gerações com 30, 40 e 50 anos estão a ser representados com pessoas com 20 anos”. Logo, prossegue a especialista, “há uma ocultação”.

Contudo, esta não fica por aqui: “A representação sénior, e tenho clientes em marketing que consideram essa faixa a partir dos 55 e mais anos, é feita com alguém pouco mais velho que tem comportamentos saudáveis e até anda de bicicleta como se fosse uma criança”, refere Marques.

“os produtos e serviços para as gerações com 30, 40 e 50 anos estão a ser representados com pessoas com 20 anos”

Tudo isto denuncia, nas palavras da semioticista, a “forma como, culturalmente, o envelhecimento é mal-visto”, falando mesmo em “infantilização”. Um verdadeiro para trás e para a frente nas ideias que temos como certas e sobre as quais vale a pena pensar logo hoje.

“Este alongar tem a ver com uma cultura que privilegia a juventude, a saúde, os prazeres, a boa forma física e que, de alguma forma, vê com dificuldade a doença, a adversidade”, justifica Cristina. A psicóloga salvaguarda, porém, que “seguir a tendência de ser mais jovem até mais tarde não é mau, o problema radica nas justificações que estão por trás desta atitude”.

“Seguir a tendência de ser mais jovem até mais tarde não é mau, o problema radica nas justificações que estão por trás desta atitude”

Entre elas, há uma para a qual a especialista em neurociência alerta com particular veemência. “Não estamos confortáveis porque não vivemos cada momento, a grande dificuldade é que já não vivemos no presente”, refere Cristina, que explica melhor: “Ou estamos no passado a remoer o que está lá atrás nas nossas vidas e por isso há margem para se estar deprimida – ou no futuro, e assim vivemos em ansiedade. Ficamos presas nisto”.

Por isso, Valente acredita que “o prazo da juventude vai ter de parar de esticar em algum dia, não tanto por esperar que esse dia chegue, mas antes porque é preciso estar no presente”.

Imagem de destaque: DR

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