Como o ódio de género digital se pode tornar uma ameaça real para as mulheres

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Fotografia: Shutterstock

A violência de género e misoginia na Internet podem passar para as ruas e tornar-se numa ameaça real para as mulheres? Debbie Ging, professora da Escola de Comunicação da Universidade de Dublin e especialista em media e questões de género e sexualidade, considera que sim. E dá exemplos recentes, como o massacre que ocorreu em abril deste ano em Toronto, Canadá, quando um homem atropelou propositadamente e mortalmente 10 pessoas, na sua maioria mulheres.

Antes do ataque, o homicida, Alek Minassian, declarou na sua página do Facebook o seu apoio à comunidade Incel, uma comunidade online de homens que dizem ser celibatários involuntariamente e culpam as mulheres por isso. “De facto, grupos desse género parecem estar a estimular-se uns aos outros para cometerem mais atos e atrocidades deste tipo. Com que frequência ocorrerão, não sabemos, e durante quanto tempo vão continuar a ser acontecimentos isolados”, afirmou em entrevista ao Delas.pt.

Debbie Ging é professora e investigadora nas áreas de media, género e sexualidade [Fotografia: DR]
Debbie Ging esteve em Portugal recentemente, para falar sobre ódio de género digital e os novos antifeminismos, numa conferência promovida pelo Centro de Estudos Sociais da Universidade da Coimbra e a Associação Portuguesa de Estudos sobre as Mulheres.

Segundo explica a académica de 49 anos, “o ódio de género na Internet pode ocorrer nos sites mais inócuos e mainstream, como aconteceu com a [ativista feminista] Caroline Criado Perez”, que liderou uma campanha para colocar a imagem da escritora Jane Austen nas notas de 10 libras, em vez de Winston Churchill. A decisão levou a uma campanha de ódio nas redes sociais contra a ativista, incluindo ameaças de violação e morte. “Foram na sua maioria através do Twitter, que é obviamente um espaço tóxico para feministas, pessoas de cor, para ativistas no geral. Mas depois há espaços virtuais muito mais concentrados, onde grupos de homens que são antifeministas se juntam, comunicam entre si e desenvolvem a sua visão política em torno desse antifeminismo”, explica a académica. Além de seus sites próprios e blogs, esses grupos também se juntam em espaços como o Reddit, ou canais como o 4Chan, exemplifica.

“Há muitos espaços onde se concentram, mas a questão é que se uma pessoa tem uma voz ativa ou opiniões diferentes, estes grupos vão reparar nessa pessoa e vão atrás dela.”

E esse “atrás dela” pode não se confinar aos limites da realidade virtual, como mostrou o acontecimento de Toronto, num caso mais extremo, mas também como acontece no dia a dia a um nível mais pessoal, em situações que funcionam como uma extensão de relacionamentos onde há violência. “Os abusos por parte do parceiro tendem a ocorrer tanto offline como online e podem manifestar-se em cyberstalking, revenge porn, mensagens ameaçadoras, chamadas intimidadoras. Quem abusa usa as tecnologias para estender as suas táticas de intimidação, por exemplo”.

Ainda assim, Debbie Ging refere que também tem havido um número considerável de “casos com motivações mais políticas, de pessoas que são perseguidas no ciberespaço, com a revelação pública de dados pessoais na internet”.

“Mesmo que ninguém apareça à sua porta, as pessoas vivem num medo constante. Muitas que foram perseguidas dessa maneira decidiram mudar de casa, Portanto, não se confina ao online, tem efeitos muito reais na vida das pessoas e no seu sentimento de segurança e de espaço e várias investigações mostram que muitas das mulheres que foram objeto de abusos online realmente sentem que a sua segurança no mundo real está ameaçada.”

Mais direitos, mais visibilidade feminina, mais ameaças

À medida que as mulheres vão conquistando espaço na sociedade e lutam, também com o apoio de muitos homens, pela igualdade de direitos, a misoginia online aumenta quase na mesma proporção, como uma reação a essas conquistas. “Na Irlanda assistimos a uma reação violenta depois do resultado do referendo para a despenalização do aborto [depois da vitória do ‘sim’]. Cada resultado para as mulheres será acompanhado de uma certa retaliação. É claro que isto não vai desmobilizar o ativismo e a continuidade das lutas, mas temos de perceber como poderemos lidar com isso. Não tenho dúvidas de que muita desta misoginia se prende com a retórica de alguns de que as ‘mulheres estão a ganhar demasiados direitos’ ou o ‘feminismo está a ir longe demais’, que é uma perspetiva completamente desequilibrada, mas que vai ganhando terreno e tem de ser combatida.”

Para a investigadora, a esfera online também trouxe outra mudança, juntando dois conceitos que nem sempre foram sinónimos. “O antifeminismo, antes da Internet, não era tão ostensivamente misógino. Podia ser antifeminista, mas não era necessariamente misógino”.

Debbie Ging admite que o seu argumento possa ser rebatido, contudo lembra que “quando apareceram os primeiros ativistas dos direitos dos homens, as suas principais reivindicações tinham a ver com questões de custódia dos filhos nos casos de divórcio”. “Estavam mais preocupados com assuntos específicos e entendiam que em determinados aspetos a lei tinha um preconceito de género a favor da mulher. Era uma retórica mais politizada.”

Atualmente, diz, ao antifeminismo surgem associados “ataques altamente personalizados, sexualizados e uma misoginia muito individualizada”. “De tal forma que atualmente antifeminismo e misoginia são praticamente indistintos.”

Como essa velha geração de antifeministas olha para esta diluição da misoginia personalizada no antifeminismo atual é uma questão que está por aprofundar, reconhece Debbie Ging.

Como combater a misoginia online?

Criar legislação que aponte mais às causas e não tanto aos casos individuais, incluir no discurso da liberdade de expressão limites que permitam a liberdade de todos e não apenas a de alguns, trazer para discussão outros direitos humanos com o mesmo valor, fazer lobby junto das diferentes redes sociais, para influenciar as políticas das suas plataformas, e junto dos governos, sensibilizando-os para as que estão desadequadas e que se revelam problemáticas são algumas das opções para combater a misoginia num plano mais alargado e social. A um nível mais informal, o ativismo digital coletivo, a solidariedade online, através da criação de grupos de internautas, pode ajudar a lutar contra grupos que professam o ódio de género nestas plataformas, lutando contra eles “no seu próprio terreno”.

Mas “a grande frente de batalha”, defende a investigadora, terá de ser a educação. “Temos de começar a incorporar a consciencialização destes assuntos nos currículos escolares, através de disciplinas como a educação para a cidadania ou a educação sexual, onde possamos ensinar as crianças sobre questões como consentimento, a misoginia online e como se pode lidar com isso. E também lançar a premissa de uma educação para a cidadania sexual digital, de forma a encorajar os jovens a pensar os espaços online como espaços potencialmente democráticos, onde o seu comportamento importa, e a não serem levados a entrar em espaços, particularmente os rapazes e homens jovens, onde a expressão da misoginia é tida como aceitável e normalizada”.

O facto de os millennials serem menos recetivos a divisões de género, acolhendo definições sexuais mais diversificadas, pode ser um fator positivo.

“A maioria dos jovens é muito mais aberta à fluidez dos géneros, progressista de várias maneiras, rejeitam rótulos. E parte desta misoginia online a que assistimos também é uma reação hostil e adversa a exemplos dessa fluidez.”

Emma González, sobrevivente do tiroteio na escola de Parkland, na Florida, no início deste ano, converteu-se no rosto da contestação juvenil e estudantil pelo controlo de armas, nos EUA. De origem cubana e assumindo-se como bissexual, tornou-se rapidamente num alvo dos comentários xenófobos, sexistas e misóginos, na Internet.

“Ela é precisamente o tipo de pessoa, quase uma caricatura, que concentra os motivos de raiva desses grupos”, refere Debbie Ging.

Apesar de um otimismo moderado na nova geração, a académica considera que a igualdade entre os sexos está ainda longe de ser uma prática dominante. Por isso, deixa o aviso que nada deve ser encarado como um dado adquirido.

Janne Teller: “Redes sociais e Internet estão a criar uma nova explosão de misoginia”

 

“O consentimento sexual não deve ser medido só pela verbalização do ‘Não’”