Como seduzir depois do #MeToo

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Um ano depois das primeiras denúncias de alegados casos de assédio sexual na não-tão-glamorosa-assim indústria de Hollywood, publicadas no jornal norte-americano New York Times a 5 de outubro de 2017, e que caíram que nem uma bomba no mundo inteiro, o movimento #MeToo nunca mais parou. As acusações contra o reputado produtor Harvey Weinstein abriam uma caixa de silêncio que estava, até aqui, selada.

Em apenas um dia, o pedido da atriz Alyssia Milano a todas as mulheres que tivessem sido assediadas ou agredidas tinha gerado 12 milhões de posts, comentários e reações só no Facebook. Estes são apenas alguns dos primeiros números impressionantes de um movimento que – tinha nascido em 2007 – mas que agora rapidamente se estava a tornar global e, em pouco mais de um mês, estava a provocar estilhaços em 85 países (recorde todos os números aqui).

Doze meses volvidos, uma das principais impulsionadoras do #MeToo, a atriz Asia Argento choca o planeta ao passar de agredida a agressora e enfrenta ela própria uma acusação de agressão sexual por parte de Jimmy Bennett, então menor, e o #MeToo alarga-se a todas as áreas: ao desporto, à música, entre tantas outras áreas. E encontra também objeções: quem não se lembra da carta subscrita por, entre outras, Catherine Deneuve?

Agora, Portugal está também no epicentro da polémica com Cristiano Ronaldo a ser acusado por uma norte-americana de violação, Kathryn Mayorga, de 34 anos.

As razões de Kathryn para só agora acusar Ronaldo de violação

Depois de centenas e centenas de casos terem surgido à luz do dia, depois de 5 de outubro de 2017 e um pouco por todo o Mundo – com casos portugueses a serem parcelarmente revelados – é tempo de recordar o que muda na vida e na atitude de todos e o que ainda está igual depois deste movimento, que ainda corre.

“Sempre tive muita atenção para não passar a linha que separa o ‘engate’ do abuso”, diz Nuno Faria, 25 anos, solteiro. Cátia Brites, quatro anos mais velha e na mesma condição, diz que “até pode dar conversa”, mas deixa sempre “bem claro o que não quer”. O problema, refere, é que “não se consegue controlar a expectativa que o outro cria”. Depois, “ter de dizer não tanta vez é muito incomodativo”, desabafa.

Atrizes portuguesas falam sobre o assédio

Ambos, que vivem nas fronteiras de Lisboa, concordam que o movimento #MeToo, cujo eco se fez ouvir no mundo desde outubro de 2017, pouco ou nada mudou por cá. Aliás, as denúncias feitas ao abrigo da hashtag (#) não revelaram vítimas nem despiram abusadores no exercício do poder indesejado em contexto laboral nacional.

Mas e no resto? A noite, o engate, o enamoramento, as aplicações de encontros, os beijos roubados e os primeiros passos mudaram? “Não creio”, responde Cátia. “Continua tudo igual. Sais à noite e sentes que há sempre o olhar de querer levar alguém para a cama. E há muita pressão, até por parte das próprias amigas, que querem saber o que aconteceu depois e lembram que “aquele” rapaz bem podia ser um bom partido”, graceja.

“Sais à noite e sentes que há sempre o olhar de querer levar alguém para a cama. E há muita pressão, até por parte das próprias amigas”, diz Cátia

Se Nuno conhece bem os limites, também deixa perceber que há razões que a educação e a formação explicam. “Sempre tive respeito pelas mulheres e pela forma como as abordo. Tendo sido criado com duas irmãs mais velhas”, a linha é clara. Cátia concorda: “Muitas vezes, os rapazes respeitam.” Uma reportagem sobre o amor e o romance que pode ler também na edição especial em papel do Delas.pt.

“Nas relações em que há desejo o #MeToo não interfere”

Para o sociólogo de género Bernardo Coelho, investigador do Centro Interdisciplinar de Estudos de Género (CIEG) da Universidade de Lisboa, falamos de realidades diferentes que dificilmente emprestarão experiências. “Tenho dúvida de que o #MeToo traga alguma coisa para o enamoramento porque falamos de relações que são desejadas, não há o poder de um sobre outro num contexto de, por exemplo, um fim de tarde ou numa discoteca e, talvez por isso, nem o Nuno nem a Cátia revelem grandes transformações nos comportamento”, analisa o investigador que integrou a equipa que fez o estudo Assédio Sexual e Moral no Local de Trabalho.

Cristina Mira Santos discorda. Embora a psicóloga e sexóloga considere que é cedo para perceber os efeitos deste movimento na vida quotidiana, não duvida de que esta onda “poderá motivar uma mudança de atitude”. Afinal, “nem sempre precisamos de passar pelas situações para rever os nossos comportamentos”, diz a formadora em escolas secundárias e profissionais em Odemira, Alentejo. Mira Santos crê, contudo, que se trata de um rastilho que “mais depressa chegará aos grupos urbanos do que aos rurais”.

“Nem sempre precisamos de passar pelas situações para rever os nossos comportamentos”, refere Cristina Mira Santos

Bernardo reitera: “Os jovens podem começar a ponderar o que fizeram, retrospetivamente, e alguns até poderão ter incorrido em situações de abuso e atravessado, talvez, a linha de não-desejo. Essa tomada de consciência de que nem tudo é legítimo sexual, erótica e romanticamente pelo outro não se aplica nas relações em que existe desejo.”

Nos Estados Unidos da América, o #MeToo parece ter já começado a deixar o seu rasto junto dos mais novos. Um estudo divulgado em janeiro deste ano e elaborado pelo canal de cabo de música MTV concluiu – junto de 4600 entrevistados online com uma média de idades de 15 anos – que os rapazes estavam a alterar o comportamento nas relações depois das denúncias de assédio e abuso sexual em Hollywood.

Estudo mostra como #MeToo está a mudar os rapazes americanos

A título de exemplo, um em cada três jovens do sexo masculino declarou estar ‘preocupado’ com a possibilidade de ter feito algo que “possa ter sido percecionado como ‘assédio sexual’” e quatro em cada dez admitiram alterar a forma como iriam interagir numa relação possivelmente romântica. Por outro lado, cerca de 24 por cento dos respondentes notaram que os rapazes que conhecem tinham alterado o comportamento no pós-#MeToo.

Cristina Mira Santos teme que as regras da sedução possam mudar radicalmente. “Há muitos detalhes que são importantes e que começam a ser deixados de parte como o olhar, o contacto direto, o estar cara a cara, o ir descobrindo a pessoa. Isso deve ser salvaguardado”, sublinha a psicóloga e sexóloga.

Rejeição, o rastilho que faz explodir esta pólvora

Há, contudo, uma zona cinzenta que pode virar este jogo e que se aplica a todas as relações: fortuitas e duradouras, vividas numa one night stand ou com anos de existência, no local de trabalho ou num jantar em casa de amigos, na praia ou na discoteca. Falamos, claro, de rejeição.

“Num determinado tipo de masculinidade mais tradicional, é um dos aspetos mais complicados de gerir pelos homens. Nesse tal minuto em que tudo pode correr mal, o problema radica na rejeição. Ou seja, há a iniciativa para seduzir e enamorar e é-se rejeitado”, avisa Bernardo Coelho.

Não é, então, por acaso que ter de dizer ‘não’ repetidamente é tão chato para Cátia. E não é por menor coincidência que este é um dos terrores de Nuno, ainda que diga que não tem “por hábito sair à noite com o puro objetivo de engatar”. “Um dos meus maiores medos é a rejeição. Quando abordo uma rapariga tenho de ter a certeza de que ela quer o mesmo que eu, seja através de olhares ou da própria linguagem corporal”, refere.

#MeToo não traz problemas no primeiro passo. Chega no segundo

E se a rejeição é o motor, então é neste ponto que a tomada de consciência – que chegou com o movimento de denúncia – pode ou não ter efeitos na vida que existe para lá do trabalho. “O #MeToo não está no primeiro passo, está no segundo ser ou não dado”, sintetiza Bernardo Coelho. “Os homens são educados a ter a iniciativa, mas também são formados a não aceitarem a rejeição”, avisa o sociólogo.

A questão da ‘nega’ é ainda mais relevante porque todos vivemos em grupo. “É que, na competição com outros, um “não” vai deixar o homem mal visto. E este é um problemas das masculinidades mais tradicionais, que se caraterizam pela dificuldade em assumir que as mulheres estão num ponto de igualdade nos desejos e nas não-vontades no plano sexual. Receber um ‘não’ é perder pontos”, clarifica o investigador.

“O #MeToo não está no primeiro passo, está no segundo ser ou não dado”, sintetiza Bernardo Coelho

Nuno Faria diz não só não temer, como garante aceitar a “nega”. Uma rapariga pode dizer “afinal, não” em “qualquer ponto do relacionamento”. “Nunca me aconteceu, mas supondo que estou com uma rapariga que, a meio da relação, muda de ideias e me diz que afinal já não quer continuar, claro que a minha reação vai ser sempre a de parar e respeitar, até porque não iria ter prazer em estar com alguém que não o queira. A parte melhor de estarmos com alguém é saber que ambos querem”, justifica.

Mais confusão nível sentimental, maior clareza a nível sexual

Cátia Brites diz que não deixa margem para mal-entendidos. “Sim é sim. Não é não. Nunca tive más experiências a esse nível”, refere. Admite, contudo, que as relações estão cheias de equívocos. “Hoje em dia, tudo é mais confuso a nível sentimental e mais claro a nível sexual”, refere. Cátia considera que, no primeiro caso, as resistências existem porque “as pessoas já não estão tão dispostas a assumir relações, têm um caso ou dois e só ao fim de algum tempo é que assentam. A parte da experimentação é mais confusa”.

A psicóloga e sexóloga tem entendimento semelhante, uma análise que decorre da prática clínica que exerce e do que vê acontecer em escolas, ainda que o contexto em que se inscreva seja o de um meio pequeno e em que a falta de anonimato vira as regras da sedução e do engate. “Os relacionamentos estão mais inequívocos, mas têm menos profundidade”, refere, considerando que os “homens estão a ter maior consciência do que está a acontecer”.

“Hoje em dia, tudo é mais confuso a nível sentimental e mais claro a nível sexual”, refere Cátia

Já as mulheres “estão mais claras, têm também uma maior consciência, mas aqui mais sobre o que querem e o que precisam, têm mais capacidade de manifestar verbalmente o que pretendem sem receio de represálias”.

Imagem de destaque: Getty Images

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