Consentimento e violação no casal: “Vive-se na Idade Média”, diz Kaufmann

Quarrelling Young Couple in the Bed, Young People Lying Turned Away From Each other and Lay on Their Sides Holding Grudges and Being Offended
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Sociólogo francês, Jean-Claude Kaufmann, traz à luz as zonas cinzentas e difíceis da intimidade no casal heterossexual no novo livro Pas Envie Ce Soir (Esta noite, não em tradução literal). O especialista em temas de género e da intimidade explorou a temática do consentimento sexual no seio da relação conjugal e não poupa nas palavras.

Em múltiplas entrevistas à imprensa francesa, Kaufmann é duro nas palavras que escolhe e diz mesmo que, em casal “ainda se vive na Idade Média” e diz que, citando o centro de estudos de opinião pública francês (IFOP), “há 31% de casos de violação” no seio daquelas relações. Um “número que está subavaliado”, refere ao site Le Point.

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No novo inquérito que elaborou junto de uma centena de homens e mulheres (sob anonimato), publicado pela editora francesa Les Liens Qui Libèrent, o diretor do Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS), nos estudos de Sociologia, da Universidade de Sorbonne procurou responder à questão do consentimento sexual, amplamente levantada pelo movimento #MeToo, mas agora no seio do casal.

“Assim que a investigação foi iniciada, encontrei a imensidão do sofrimento sexual, precisamente em torno dessa questão do consentimento, muito longe das fábulas, das narrativas querem vindo a ser contadas”, afirma Jean-Claude Kaufmann ao site France-Inter.

O investigador mostra-se surpreendido e diz que não esperava “encontrar tanto desconforto e repressão nas palavras dos casais que se mantêm juntos. Porque eles duram, com ou sem sexo, com ou sem prazer”. O delas.pt aguarda a resposta a um pedido de esclarecimentos ao autor, que ainda não chegou até ao momento de publicação desta peça.

A questão do consentimento emerge, segundo o investigador e diretor do CNRS, com mais força nas relações de longo prazo, em que a divergência face ao desejo começa a diferir entre os parceiros. As mulheres relatam maior dificuldade em dizer “não quero esta noite”, passando a necessidade de agradar a ser mais premente do que a recusa. É neste compasso que é cunhado o conceito de “zona cinzenta”, passando a “linha vermelha” quando a recusa é violada. A vergonha ganha, então, terreno e silencia quaisquer possíveis denúncias.

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No âmbito da sua pesquisa – e em declarações ao mesmo site – Kaufmann nota que “quando as mulheres pensam que expressaram uma recusa e não são entendidas, é necessário que homens e mulheres trabalhem em conjunto”. “Um longo caminho”, antecipa o sociólogo, que fala não tanto dos casos limite em que elas são mesmo forçadas e violadas, mas de toda uma vasta área de não compreensão entre os parceiros e que inclui questões como a do declínio do desejo feminino, encaminhando para relações sexuais não violentas, mas também não desejadas.

Kaufmann vinca que a ideia de violação pelo marido é algo que as mulheres não aceitam à partida. “Diziam-me, nem todos os homens são assim, mas tive que lhes explicar e repetir que o que estavam a viver era uma violação. Elas respondiam-me: ‘não, é difícil, é violento, ele assedia-me, eu choro, mas violação mesmo, acha?”, conta o sociólogo em entrevista à edição francesa da revista Marie Claire.

“Para elas, a violação é um crime cometido por um estranho num parque de estacionamento. Muitas vezes, nos casos que menciono, no início do relacionamento, as mulheres estão apaixonadas, trancadas numa lógica de silêncio. Começa com ‘a culpa é minha, corro o risco de acabar com a relação, por isso não digo nada, sacrifico-me’. A cada passo, mesmo quando a gravidade aumenta, o cônjuge violento cruza a linha vermelha, e é esse silêncio que impede a denúncia”, explica o investigador.

Kaufmann lembra ainda que “a trajetória de uma queixa por violação conjugal é muito pior do que aquela que ocorre com um estranho, num parque, é extremamente raro que um crime sexual cometido no seio da vida conjugal seja punido pela justiça”.

E a quarentena?

A ideia de bebés da quarentena terá lugar, mas não será única. O sociólogo não descarta o aumento do número de divórcios findo o período de permanência em casa, tal como aconteceu na China, em fevereiro.

O sociólogo verifica que os casais passaram por situações de confinamento “extremamente diferentes dependendo do número de metros quadrados” e “o que estava a acontecer entre eles antes deste período também desempenha um papel enorme” na forma como a relação vai prosseguir depois deste período extraordinário.

Como salvar o casamento numa quarentena?