Testemunho: “Todos os planos acabaram por ter de ser reformulados”

Pregnant woman holding her tummy
[Fotografia: Istock]

Ana Ramos, 33 anos, é enfermeira em contexto de urgência há 12. Esta profissional de saúde está grávida de 37 semanas e espera-a, num horizonte próximo, um caminho feito muito possivelmente a sós com o bebé. O marido é médico, especialista em cardiologia, exercendo funções num dos maiores hospitais do país.

Ana e o marido vão ser pais pela primeira vez numa altura em que todos, especialmente e sobretudo os profissionais de saúde, se confrontam e lidam com uma uma nova realidade: uma pandemia, a do Coronavírus.

Ao Delas.pt, esta enfermeira, mas também esta futura mãe, revela por escrito como lida com as angústias do que está para vir, afirmando estar a viver em “modo de catástrofe”, estabelecendo “prioridades com base em prevenção e contenção para nós e para os outros, conhecidos ou desconhecidos”.

Quanto ela, está preparada para o facto de o pai do bebé não poder assistir ao parto ou visitar o recém-nascido, tal como deve possivelmente ocorrer em todas as maternidades, e admite a possibilidade de ficar a sós com o filho caso as medidas de segurança possam ser corrompidas. Uma vida tão nova quando desconhecida.

Como se vivem estes tempos como mulher e futura mãe?

Começo por dizer que não adianta “pôr panos quentes” na crise pandémica que estamos a viver. Trata-se de um vírus ainda pouco conhecido, mas com elevada taxa de transmissão. Sabemos também que as medidas de contenção que estão a ser tomadas têm sido “remendos” e não medidas profiláticas, para além de tardias, o que vai levar a proporções extremas. É de salientar que ainda só agora começou a fase de crescimento exponencial de contágio e que já demonstramos não estar preparados para a “enfrentar”. Posto isto, como futura mãe, como mulher e como profissional de saúde tudo isto leva a incertezas, dúvidas e receio do que ainda está para vir. Por isso, estou neste momento a viver em “modo catástrofe”, gerindo-me por prioridades com base em prevenção e contenção para nós e para os outros, conhecidos ou desconhecidos.

Apesar de um pequeno estudo de Wuhan, na China, e o caso da bebé do Porto que nasceu sem coronavírus apesar de a mãe estar infetada, parecerem indicar que não há contágio, como se lida com isto? Há angústia na mesma?

Existem poucos estudos ainda para grávidas, a amostra não é considerável. No entanto, ainda não houve evidência de transmissão materno-fetal, após se ter analisado líquido amniótico, placenta e inclusive posteriormente o próprio leite materno. Também até ao momento não há evidência significativa de que o vírus tenha consequências graves para crianças e bebés entre zero e os dez anos. Contudo, a amostra é pequena. Além disso, os bebés são veículos de transmissão para outros, que podem ser grupo de risco, inclusive os avós. E essa cadeia de transmissão também passa também pelos cuidados ao bebé, que implicam um contacto muito próximo.

Como por exemplo?

Amamentação e aleitamento, pegar ao colo, brincar, dar banho. Portanto, lida-se com isto da melhor forma que se consegue, com muitas dúvidas, seja por falta de evidência, seja pelo tardar da tomada de medidas necessárias, com a justificação de ser “a bem da democracia”; seja pela falta de cooperação de todos os cidadãos para evitar falhas na prevenção da cadeia de transmissão, “porque vou ter sorte e o bicho não me pega, isso é tudo alarmismo”.

Como foi decidir com o pai a vida em separado assim que o bebé nasça?

Estou grávida de 37 semanas e uns dias, e vai ser o primeiro bebé, por isso há sempre algum anseio, afinal nunca passámos por isto. Já por si só é tudo novo, ainda com mais esta agravante da pandemia. Um momento que seria de ternura, acaba por se tornar menos harmonioso que o esperado. Todos os nossos planos acabaram por ter de ser reformulados e não para melhor. Estamos a ponderar efetivamente ficar em casas separadas. Caso um de nós não consiga garantir o cumprimento das medidas profiláticas tanto na rua, como no trabalho, e independentemente de apresentarmos ou não sintomatologia, a partir do momento em que isso ocorra (que haja quebra das medidas de transmissão) já não voltamos para a mesma casa até passar o período dos 14 dias desde o último momento de possível quebra de segurança nas medidas de prevenção de contacto.

Como antecipa os tempos a sós com o bebé?

É uma decisão difícil, queremos estar juntos e queríamos poder partilhar todos os momentos que conseguíssemos. Mas nesta fase temos de saber priorizar e saber o que realmente é importante! E parafraseando um grande enfermeiro meu colega “esperar o melhor, mas estarmos preparados para o pior”. Dramatizar ou protelar medidas que têm de ser tomadas é perder tempo precioso nesta corrida contra o tempo. Neste momento, também as maternidades e hospitais estão a tomar medidas e penso que o mais provável, e assim o espero, pelo meu filho, por mim, pelos outros e pelos profissionais de saúde, o pai não irá poder assistir ao nascimento ou visitar o bebé. Isso claro que também cria ansiedade. Mas este é um momento de crise e “valores mais altos se levantam”, ficar em pânico não ajuda, há que ser racional e agir com base nas evidências de que dispomos. Isto não é brincadeira nenhuma e os nossos decisores já pecaram por agir tarde, estamos agora a tomar medidas que deviam ter sido tomadas há um mês ou mais.

Que cuidados vão começar a ter, sobretudo sendo ambos profissionais?

Esta pergunta é realmente importante. E a resposta não provém do pânico, mas sim de uma avaliação ponderada com base no que se conhece até ao momento. E é uma decisão conjunta com o meu marido, felizmente temos os dois a mesma linha de pensamento. O importante neste panorama é: antecipar, prevenir, conter, agir e reformular. É estar passos à frente das medidas implementadas. Por isso, os cuidados são imensos e intensivos, basta pensar que é um virus que permanece no ar por 3 horas sem hospedeiro e nas superfícies 72 horas (apesar de já existirem indicações de que dependendo do material da superfície podem ser mais horas/dias). Além disto, também temos pessoas assintomáticas e nem todas ou muito poucas são cumpridoras das indicações orientadoras de contenção já existentes. Ou seja, neste momento “tudo e todos são culpados, até que se prove o contrário”, na dúvida assume-se que o vírus está “ali”.

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Posto isto, tentamos seguir as seguintes linhas e apelamos aos outros que façam o mesmo: Em casa: da rua vamos diretos lavar as mãos sem tocar em mais lado nenhum. Temos uma zona definida como “zona contaminada” e “zona limpa”. Não mantemos contacto físico com os nossos pais, ou pessoas que sejam consideradas como grupo de risco (idade superior a 65 anos, com doença crónica, com compromisso de imunidade…grávidas inclusive). Se por exemplo quisermos ajudar e levar-lhes as compras: deixamos as mesmas na garagem por 72 horas e só depois é que as vão buscar.

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Na rua ou em deslocações: lavagem/desinfeção correta das mãos e em todas as fases: Por exemplo já vi pessoas na rua com luvas… As luvas são para situações muito específicas! Não interessa tê-las e andar a tocar em todo o lado, a “arrastar” o vírus por todas as superfícies. Fica-se com uma falsa sensação de segurança e estamos a pôr os outros em risco. Por último, dado que o meu marido também é profissional de saúde, estamos seriamente a ponderar ficar em casas separadas. Se não conseguirmos garantir o cumprimento na íntegra das medidas necessárias, apesar do nascimento do bébé estar para breve, ficaremos um período de quarentena de 14 dias afastados um do outro.

Que recomendações deixa? Que pedidos faz a mulheres em iguais circunstâncias?

Aquilo que faço em prol dos meus, é o que faço pelos outros também. Por isso, desses outros não espero menos! Nomeadamente e em traços gerais, é muito importante: lavagem e desinfeção correta das mãos nas várias fases de possível contacto com o vírus; distância de segurança na rua; evitar deslocações desnecessárias. Preferencialmente façam compras online principalmente dos bens não essenciais. Nesta altura, há o “síndrome de preparação do ninho” em que as mães, principalmente, querem ter tudo a postos para receber o bebé, por isso há a vontade de não cumprir normas essenciais e preferem sair para ir comprar e ver roupinhas. Em particular, às futuras mães “apelo” a que: se as indicações passarem por os pais não assistirem ao nascimento do filho ou não o poderem visitar, assim seja! Há mães e futuras mães que não percebem esta medida que já está ser implementada nalgumas instituições e que vão tentar ir contra a mesma. Já há quem fale em petições para não se avançar com esta medida. Dizem estar informadas, mas efetivamente não estão. Há alguns grupos de mães pelas redes sociais, onde há partilha de experiências relacionadas com a maternidade em si. Aí tenho visto que há mães que efetivamente têm noção do que estamos a viver, mas há ainda um grande grupo que pelo contrário não.

O que lhes diz? Que reações recebe?

Como enfermeira, tento elucidar para esta questão, até para não serem apanhadas de surpresa no dia D. Mas, por mais que partilhe evidências científicas, por mais que mostre as opiniões de quem está no terreno, por mais que dê exemplos de situações em que o risco de transmissão é elevado, por mais que diga que não há equipamentos de proteção individual (EPI) suficientes para os profissionais quanto mais para os pais, por mais que explique que esses equipamentos têm de ser utilizados de forma correta e não há profissionais suficientes para acompanhar 24 sobre 24 horas o casal para identificar eventuais quebras de protocolos (porque há muitas)…há sempre quem não entenda ou não queira entender! Claro que ter um bebé gera, por si só, ansiedade, nervosismo, é o desconhecido, são desafios e uma grande mudança na vida do(s) pais. Mas temos de pensar que é por um bem maior. É por todos nós. Por isso, temos de nos focar no que é importante: mãe e bebé ficarem bem. O resto é secundário. Para um filho nascer é só preciso a mãe e os profissionais de saúde. Portanto resumindo: previnam, antecipem, planeiem e contenham. Não percam tempo. Todos somos responsáveis pela transmissão e contenção. E acreditem se não o fizerem, até abril vamos ter de começar a decidir “quem vive e quem morre”.