Crianças autistas: como é viver num mundo à parte?

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São crianças, mas vivem alheadas do mundo que as rodeia, e dificilmente comunicam ou criam empatia. Sofrem de diferentes espectros de autismo, mas com a ajuda da medicina cada vez mais conseguem estabelecer laços com aqueles que os amam.
Cecília Dias, todos os dias durante a gravidez recebia às 18h00 pontapés do filho, João Francisco, a avisar: são horas de deixar o trabalho e ir para casa. “Deve ter sido o primeiro sinal de que ele é Asperger”, recorda a desenhadora. Ou seja, que sofre de uma forma de autismo, distúrbio neurológico que dificulta a interação social, comunicação verbal e não-verbal, e que depende de rotinas diárias para a manutenção do equilíbrio mental e emocional.

Os episódios durante a gestação podem ter sido apenas coincidência – até porque a condição do João Francisco só foi diagnosticada aos 6 anos de idade, quando frequentava o primeiro ano escolar – “mas nunca reagiu bem às mudanças, que ainda lhe provocam crises de ansiedade e, em pequeno, grandes birras”. Também passava muito tempo sozinho a andar em redor das árvores fechado no seu mundo e chorava imenso por não conseguir resolver os problemas emocionais. Mas, como no caso da maioria dos Aspergers, João Francisco, prestes a completar 13 anos, não apresenta qualquer atraso cognitivo, pelo que foi sempre considerado pelos pais e avós como uma criança difícil.

“Por parecerem ausentes, gostarem de manter rituais e por vezes reagirem mal a estímulos sensoriais, como por exemplo ao ruído, estas crianças são muitas vezes vistas com mal-educadas e os pais estigmatizados.”O alerta é de Maria José Fonseca, médica neuropsiquiatra do Hospital Garcia de Orta. “Daí a importância do diagnóstico” e avança:

“A patologia não tem cura, é para a vida, mas as crianças e pais podem ser ajudados, eventualmente através de medicação, terapia e apoio escolar adequado. Só não vale baixar os braços”.

Cecília admite que o diagnóstico apesar de ter sido um choque e até mesmo mal aceite pela família a ajudou a compreender, a lidar melhor com o filho e a ajudá-lo a integrar-se socialmente. Neste momento, por exemplo, ele já não dispensa o toque da mãe quando está mais ansioso e lhe custa adormecer – “dão os pés” por alguns momentos e ele finalmente descansa.
João Francisco visita regularmente o pedopsiquiatra no Hospital São Francisco de Xavier, e é medicado para o défice de atenção e ansiedade. Academicamente, tudo vai bem:

“Ele agora até já tira boas notas, sobretudo a Ciências e História, e só tem dificuldades ao nível do pensamento abstrato, pelo que recebe apoio especial a Matemática”, diz a mãe.

Na escola consegue interagir com alguns dos colegas, mas não é propriamente o mais popular da turma e raramente é convidado para festas de aniversário. Até porque dispensa grandes alvoroços, partidas de futebol – o grande interesse dos coleguinhas –, e a sua baixa tolerância à frustração e alguns tiques (neste momento rói as unhas), não o ajudam a passar despercebido. Apesar das melhorias comportamentais do João, para esta mãe (que entretanto se separou do companheiro), a vida tem girado à volta do filho: “Acabamos sempre muito sozinhos, pois os outros não compreendem a doença e acabam por se ir afastando”.

Perdeu praticamente todos os velhos amigos, mas as redes sociais ajudaram-na a criar um novo grupo de apoio, para quem a frontalidade e idiossincrasias de João Francisco não são motivo de embaraço, mas um desafio. “Apesar de muito infantil em alguns aspetos, por vezes ele revela uma maturidade acima da média e surpreende-nos a todos com as suas reflexões”. Não esconde o otimismo perante o futuro e está crente de que o adolescente será um adulto independente: “Aquilo que ele escolher estudar e fazer fá-lo-á muito bem!”
Cada caso é um caso
“Hoje em dia já não falamos em autismo, mas num espectro de autismos, em que podemos incluir o Asperger. Pode haver, ou não, deficiências cognitivas, mas mesmo havendo, não significa que não existam ilhas de conhecimento acima da média”, explica a médica Maria José Fonseca. “Em comum todos têm dificuldade em se relacionar com os outros, comunicar, aversão à mudança e tendência para um comportamento obsessivo-compulsivo”.
Cada criança autista é um mundo. E o mundo de Helena Sabino, mãe do pequeno João, de 9 anos, sofreu um grande abalo quando descobriu que aos 18 meses o filho, além de autista, sofria de um grave atraso cognitivo e dificilmente falaria. Hoje recorda:

“Até aos 15 meses, ele foi um bebé normal que até chegou a aprender algumas palavras. Mas de um momento para o outro ficou muito parado, deixou de falar e ficava obcecado com o rodar da máquina de lavar roupa. Eu soube logo que algo não estava bem, apesar da família tentar tranquilizar-me”.

Feito o diagnóstico (autismo clássico), Helena e o marido ficaram em choque. Ele entrou em negação e a relação de ambos colapsou. “Deixámos de ter tempo um para o outro, para ser um casal – a nossa vida girava à volta do João”, conta. A taxa de divórcios entre pais de autistas é altíssima. “Começamos a focar as energias nos nossos filhos e a aproveitar todas as janelas de oportunidade para garantir melhorias; ora isso não é fácil de conjugar com o casamento”.
Helena, assistente social, desde o dia em que suspeitou da doença de João começou a investigar e, ainda hoje, salienta a importância de partilhar experiências com outros pais, daí ser membro da associação Pais em Rede. “Mas foi todo um sonho de uma vida que ruiu e todo um outro sonho que teve de voltar a ser construído”. Para mais, João é não-verbal e quase não tem competências ao nível da leitura e escrita, pelo que se sente constantemente frustrado dada a sua incapacidade de transmitir emoções e necessidades. Em tempos a medicação ajudou-o a passar melhor as noites, mas hoje é a terapia ABA (que através de reforços positivos ajuda a melhorar as competências comunicacionais do autista), desenvolvida no Centro ABC Real, em Lisboa, que lhe tem dado ferramentas para mostrar ao mundo o que precisa.
Com a mãe vive em sintonia, dada a cumplicidade adquirida ao longo de quase uma década (utiliza bastante a linguagem corporal e é muito afetuoso), mas na escola inclusiva que frequenta, nem sempre a integração nas turmas ditas normais é fácil. João assiste a algumas aulas com os restantes colegas, mas acompanhado por terapeutas, também responsáveis por classes paralelas, que visam reforçar ou adaptar o programa escolar às capacidades de cada estudante.
Joana Freitas, terapeuta ocupacional do primeiro e segundo ciclo do ensino integrado, explica:

“Trabalhar com estas crianças é um desafio e o maior consiste em conseguir entrar no mundo delas. Temos que conseguir descobrir o que os motiva e assim conquistá-los; além de que são todos muito diferentes. Trabalho com crianças que querem ser os melhores da turma e outros que mal falam e muito dificilmente acompanham os programas escolares”.

Sobretudo, alerta, há que compreender que as crianças autistas não funcionam como nós. Não adianta gritar ou ameaçar, elas são muito sensíveis e, geralmente, defendem-se, anulando-se, quando percebem quais são os seus pontos fracos. “Por vezes o stresse é táctil, outras vezes prende-se com o ruído e nós temos que ir testando, recuando e avançando, consoante eles nos permitem”.

Os números do futuro
A terapeuta pensa que o ensino inclusivo é benéfico, uma vez que as crianças autistas tendem a isolar-se, mas adverte: é preciso que as escolas tenham mais pessoal para cuidar e ajudar estes meninos especiais – até porque aparentemente são fisicamente semelhantes aos restantes, mas perdem-se facilmente até dentro das instalações escolares, por exemplo. E não são tão poucos assim.

A Federação Portuguesa de Autismo conseguiu detetar, em 2014, cerca de 2.300 famílias com uma ou mais crianças ou jovens com a perturbação, confirmada através de diagnóstico clínico. E, segundo a Associação Portuguesa para as Perturbações do Desenvolvimento e Autismo (APPDA) (www.appda-lisboa.org.pt), o número de casos aumentou nos últimos 20 anos.
“Sabemos que a componente genética é uma das condicionantes”, explica a neuropsiquiatra, Maria José Fonseca, “mas em cerca de 85% dos casos desconhecem-se as causas subjacentes”. Logo não é possível prevenir. E, não havendo cura, há mesmo que tentar preparar estas crianças para o futuro. Helena Sabino sabe que o seu filho poderá um dia ter uma profissão “como ser repositor num hipermercado, pois é uma tarefa repetitiva que não implica grandes surpresas no quotidiano; mas aflige-me saber que terá sempre que ser um emprego protegido”.