Crianças birrentas ou “prodígio”, quem sofre mais com a exposição?

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As birras e o mau comportamento infantil foram arredados da SIC, após decisão do tribunal a pedir a suspensão de SuperNanny. Uma providência cautelar que chegou após polémica na sociedade e contestação do canal.

No entanto, tal medida judicial não afasta os menores do horário nobre de domingo. Fiel ao que tem sido comum em Portugal nos últimos anos, a televisão nacional também vai contar esta noite, 28 de janeiro com crianças a animar o serão. Atualmente, mostram os seus dotes culinários na TVI, em Masterchef Júnior, com Manuel Luís Goucha aos comandos deste conteúdo televisivo. E Queluz de Baixo não estará sozinho. Longe de uma frequência tão comum, também há menores na RTP1 a mostrar talentos “Extraordinários”, recebidos e apresentados por Sílvia Alberto.

E se o formato da SIC reclama ter posto a questão da parentalidade numa nova perspetiva, certo é que os poderes dos pais sobre os direitos à privacidade, intimidade e à imagem dos filhos, seja na televisão, seja para lá dela, voltaram ao centro da discussão.

É que se a providência cautelar até coloca no célebre ‘banco da espera’ a SIC, é altura de perceber quais as diferenças entre aqueles formatos que mostram crianças a chorar porque fazem birras, face aos que exibem menores lavados em lágrimas porque perderam um concurso e para o qual – muitas vezes – faltaram a aulas, trabalharam horas a fio em casa para se treinarem e saíram de madrugada dos estúdios de televisão.

Autoridades têm de dar pareceres antes das estreias. E dão?

“O que está em causa em SuperNanny é a exposição mediática extrema de situações que têm lugar em espaço privado”, justifica António José Fialho. Para o juiz do Tribunal de Família do Barreiro, a diferença entre aquele conteúdo e os programas de caça-talentos infantis está no facto de “os ambientes serem completamente diferentes”. Mesmo quando há expulsão e tristeza por não se ter conseguido ser o melhor num programa de dança, canto, gastronomia ou outros? “A exposição de que estamos a falar passa por avaliar se é de natureza positiva ou negativa. Uma criança estar num ambiente de stresse, tensão e castigo é sempre prejudicial”, considera o magistrado.

Fialho sublinha que os caça-talentos infantis têm de cumprir as regras. “Aí há um crivo que é estabelecido, porque se uma criança participar num espetáculo – e esses formatos correspondem -, a Comissão de Proteção da área tem de conceder autorização prévia para que possa fazê-lo, sem que tal se traduza num prejuízo para ela”, refere. Contactada a Comissão de Proteção de Loures – que recebeu 21 queixas e contestou o SuperNanny recusou prestar quaisquer declarações sobre o docreality da SIC ou sobre questões relacionadas com televisão em geral ao Delas.pt.

Imagem positiva vs negativa

Dulce Rocha não discorda do juiz e considera que SuperNanny apresentava “aspetos negativos as crianças que lhes poderiam mais tarde ser prejudiciais”. E distingue: “Num caça-talentos, as crianças estão num ambiente positivo, a mostrar o que há de melhor delas, mas isso está regulamentado. Em Portugal, temos legislação no sentido de, mediante essas circunstâncias, não haver prejuízo para a criança, de haver períodos de repouso.”

Mas há mesmo a certeza de que tudo isso é cumprido? “Penso que existe essa preocupação e, se ela não tiver lugar, tem de ser denunciada”, refere a procuradora e presidente executiva do Instituto de Apoio à Criança. Rocha lembra ainda que há diferenças até para com o trabalho de menores em novelas: “Ali são atores, não estou a viver a sua vida. É uma exposição que está regulamentada pela Lei”.

O Delas.pt contactou António Bagão Félix que, em 2002, enquanto ministro da Segurança Social e do Trabalho, regulamentou aquele tipo de trabalho infantil em Portugal. Contudo, não quis prestar declarações quer sobre essa matéria, quer sobre a polémica em torno de SuperNanny.

São diferentes, se não houver exploração

“Nestes programas [de caça-talentos], pelo menos na maioria, espero crer, as crianças sabem que só um ganhará. É um concurso”, considera Mário Cordeiro. Por isso, para o pediatra, “se não houver exploração, horas a fio de trabalho, se não colidir com nenhum dos seus direitos, designadamente estudar, brincar, ser criança, se os apresentadores/júri estimularem a aprender e a progredir, mesmo que tenham de reprovar esse desempenho, se a derrota for um momento triste, claro, mas bem gerido, com apoio dos pais, não vejo problema”.

Expor crianças pode levá-las “à depressão e até tentativa de suicídio”

 

Porém, realidade distinta regista o médico se a criança for confrontada com momentos de “humilhação, castigos dos pais ou insultos”. Uma realidade que vai para lá da televisão: “Já ouvi e vi isso em jogos de torneios escolares (sem televisão por perto).” E acrescenta: “Se, como no caso do menino das orelhas grandes [em Ídolos, também da SIC], houver humilhação, isso já fere, e de que modo, os direitos das crianças.”

Para António José Fialho, os concursos de misses com menores são o que mais “reservas lhe colocam, do ponto de vista pessoal”. “Nos Estados Unidos da América, mais do que serem raparigas pequeninas, são modelos, muito maquilhadas… Tenho algumas reservas em relação a esses programas. Cá, ainda não chegaram”, refere.

Catarina Beato não duvida que SuperNanny e os caça-talentos são “distintos”. “Se vejo uma criança num programa de talentos, posso ser contra o tempo que ela ali está, posso ser contra à pressão a que aquela criança está sujeita, mas, no fundo, conheço-a pouco”, considera a autora do blogue Dias de Uma Princesa. Por isso, prossegue, no seu “bom senso de mãe”, o SuperNanny era “excessivo porque mostrava a intimidade das crianças, Portugal ficava a conhecê-las totalmente”.

Contactada pelo Delas.pt, Júlia Pinheiro, elemento da Direção de Programas da SIC, recusou prestar declarações quer sobre o formato polémico, quer sobre os caça-talentos infantis, que coapresentou noutras ocasiões da sua carreira.

A imagem positiva é muito mais difícil de gerir do que a negativa”

João Miguel Tavares defende que os dois tipos de programa jamais podem partilhar a mesma categoria, mas o colunista e autor do blogue Pais de Quatro acredita – ao contrário dos restantes especialistas ouvidos – que os efeitos provocados por um caça-talentos podem ser muito mais nefastos do que quem exibe birras e é castigado publicamente em frente a milhões de portugueses.

“Um miúdo que exibe um talento, que é muito bom e que vence, creio que corre maior perigo de que a vida lhe corra mal. Esse risco é infinitamente maior do que o que pode viver o “furacão” Margarida [primeiro episódio de SuperNanny], após ter tido as suas birras expostas na TV”, analisa Tavares. E exemplifica: “Lidar com o sucesso é muito complicado e podemos fazer aqui já a lista de Hollywood, passando pelo ator Macaulay Culkin, pelos cantores Justin Bieber, Britney Spears ou Miley Cyrus.”

Nos caça-talentos, é possível que se esteja perante crianças que “não estão mentalmente preparadas para o sucesso, para lidar com insucesso, o esquecimento e a frustração”, diz o colunista, que deita por terra a ideia de que os arquivos digitais guardem todas estas provas, de todos, durante tantos anos.

Por isso, apesar de “não comprar o dramatismo de aquelas crianças [da SIC] verem as suas imagens daqui a uns anos na Net”, João Miguel Tavares foi absolutamente crítico do formato de Carnaxide, agora suspenso. “O SuperNanny é péssimo, não acho defensável. Não é o retrato de uma miúda birrenta, mas mostra uma família disfuncional e é sobre isso que recai o olhar mais duro da sociedade e das pessoas que conhecem aqueles adultos”. Isto porque, sublinha, Tavares, “se alguém aceitar ter uma câmara em casa, todos vamos ficar mal no retrato e é esse tipo de exposição que mais custa”.

Imagem de destaque: Montagem Shutterstock

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