A roupa condiciona mesmo quem somos?

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Cristina L. Duarte é socióloga e ex-jornalista. Escreveu a biografia de Ana Salazar, um livro sobre José António Tenente e publicou 15 Histórias de Hábitos – Criadores de Moda em Portugal. Escreveu também várias vezes sobre a moda portuguesa, sobre o traje regional e lançou recentemente o livro Moda e Feminismos em Portugal, o género como espartilho. Este livro nasce como uma tese de doutoramento em Sociologia e nele se cruzam áreas como estudos femininos, a história da moda e da vida privada. Cristina faz também parte do grupo Faces de Eva, do Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais da Universidade Nova de Lisboa

Que livro é este?
Este livro é uma tese de Doutoramento, só que tem assim um melhor aspeto.
Tem uma capa bonita.
Uma capa mais bonita do que a capa da tese. É noventa e nove por cento da tese este livro. Não tem os anexos, tem uma outra revisão, mas vai dar ao mesmo sítio que é a tese de doutoramento, defendida como tese de doutoramento há um há pouco mais de um ano.

Que perguntas fez para lançar esta investigação?
Em que circunstâncias sociais o género funciona como espartilho é a pergunta de fundo, é a pergunta de partida. Claro que depois, há muitas questões que surgem ligadas a essa, há muitas questões que depois são respondidas, há outras que não. Uma tese não é uma obra fechada. Quando penso na tese, na investigação, estou sempre a elaborar mais à frente destas conclusões. Na realidade, as conclusões continuam a ser quase quotidianamente elaboradas, ou pelo menos o trabalho na investigação permite alimentarmo-nos – cientificamente e espiritualmente – nos anos seguintes, porque há muito trabalho ainda para fazer a partir daqui.

Qual é o papel que a moda tem nesse espartilho que é o género?
É todo.

Este título, Moda e Feminismos em Portugal, o género como espartilho, remete imediatamente para a questão da moda como um contribuinte, provavelmente o maior para a definição do género. É isso que consegue observar com esta investigação?
É. Há conclusões a que cheguei sem ter de rever toda a tese para fazer o elenco das conclusões. Há algumas que me ficaram na memória ao longo das entrevistas. Elaborei um guião de entrevista semiestruturado, que permite continuar a entrevista para além do que está escrito no guião com as pessoas que eu entrevistei, com as 41 mulheres que entrevistei, e quando eu perguntava quem é que a vestia na sua infância, só há uma jovem destas 41 mulheres, uma jovem francesa, que eu entrevistei que era vestida pelo pai ou pela mãe, consoante quem fosse o último a sair de casa. Todas as outras eram vestidas pela mãe. Essa foi logo uma das conclusões.


“As mulheres são muito fáceis como alvo de crítica. Parece que existe uma forma de estar que é ser mulher. Pode-se ser mulher de muitas maneiras.”


Que as mulheres na infância são vestidas pela mãe.
Sim, era a mãe que as vestia. A moda-vestuário, neste conceito maravilhoso de Roland Barthes, é uma coisa que atravessa todo o processo de socialização das crianças e depois adolescentes e a mãe é uma presença constante nesse processo de socialização. É uma presença tão constante, que alimenta um gosto ou vários gostos e pode contrapor e ser oponente à evolução de um gosto particular e também de uma forma de afirmação.

Essas mulheres hoje, crianças quando eram vestidas pelas mães, contaram-lhe essas histórias de quererem vestir-se de determinada maneira e não poderem, por não ser aceitável para a menina, por exemplo.
Por exemplo. Ou, então, porque querem vestir determinada coisa – as adolescentes – sentem que quando vão com as mães acabam por ter a decisão final da mãe, naquilo que a jovem vai vestir. Mas há uma jovem que diz que quando tiver dezoito anos já não tem que aceitar as opiniões da mãe, ou aceitar o que ela quer e vai poder vestir-se como quiser.

E isso acontece depois nas que são mais velhas, ou essa dominância da mãe e a importância que a opinião da mãe tem, permanece e prevalece para além da maioridade.
Não. Aquela coisa de ter dezoito anos e de vestir como eu quiser, é para valer, é vinculativo. Na realidade, nem todas as mães estavam preparadas, ou estão preparadas para o que as filhas querem vestir, porque uma mãe não é um ser isolado, tem de pensar em toda a sociedade e como é que a sua filha vai ser observada. Também verifico por observações várias que as mães cada vez presenciam uma escolha feita pelas crianças que é feita cada vez mais cedo.
As miúdas estão a vestir-se cada vez mais cedo como querem?
Exato.
O que é que esse fenómeno vai fazer ao condicionamento de géneros?
Não sei. É o que a publicidade conseguir fazer com elas, e também aquilo que elas conseguirem fazer consigo próprias. O querer e o vestir o que se quer é muito importante, mas não quer dizer que elas sejam inteiramente livres de o fazer e que essa escolha seja independente da sociedade em que se inserem, ou da comunidade em que se inserem
O que é a moda afinal? Porque a páginas tantas, no livro refere que é impossível vestirmo-nos de uma forma que não seja significante.

É isso mesmo.

É mesmo impossível vestir, ou qualquer pessoa vestir-se sem que isso seja um texto?

Há sempre um subtexto para os outros, porque a questão do olhar é muito dominadora, não é. Eu posso olhar para uma pessoa de alto a baixo, o que é altamente desagradável sentir isso, ou posso simplesmente olhar-lhe para os olhos e então eu não vou fazer a leitura, mas é também com os olhos que eu consigo.
Há visão a periférica.
Mas na realidade as pessoas que têm de ter uma certa soberania naquilo que é a sua forma de vestir e aquilo que é a sua forma de se afirmarem, têm de ter a sua própria autonomia para não darem significado àquilo que é o olhar dos outros e ainda tendo em conta que vão também fazer o seu subtexto do olhar dos outros, não é. Eu posso estar nas tintas, como estou para olhar dos outros, mas não quer dizer que, em determinadas situações, isso não possa incomodar-me. Isso é sempre uma coisa a mais, eu não pedi aquilo, como eu não pedi um muito determinado, uma frase qualquer solta daquelas que todas as mulheres ouvem na rua desde que são crianças. A questão dos sentidos, dos significados e daquilo que eu visto e da forma como eu visto terá sempre leituras que nos são completamente exteriores e que não dominamos. Depois existe, toda a outra vivência do vestuário que tem a ver com o exercício do gosto e duma forma de estar perante os outros.

Como é que uma mulher se torna uma mulher através da moda?
Podíamos ir agora ler Simone Beauvoir: uma mulher não nasce mulher, torna-se mulher. É como quem escolhe uma tela e conhece as tintas e sabe a grossura dos pincéis ou sabe mesmo que lápis quer… No fundo é saber lidar com os padrões, saber lidar no sentido de os conhecer e de adaptar isso à sua figura e gostar de fazer isso.

Lidar com os códigos que estão inscritos na moda?
Sim, lidar com os códigos que estão inscritos na moda, mas também há quem goste de quebrar esses códigos, de criar outras experiências do vestir e tirar daí prazer, evidentemente. Dependendo da sociedade em que se insira pode ser alvo ou não ser alvo da crítica. Muitas das pessoas que eu entrevistei, muitas das mulheres que eu entrevistei falavam claramente, de não gostarem de ser alvo da crítica dos outros. É como se houvesse ali qualquer coisa que não faz exercer o nosso pronto, a nossa imaginação ou a nossa criatividade na forma de vestir porque isso poderá sempre ser mal visto, visto de uma maneira que eu não domino, etc.

E como é que a Cristina L. Duarte vê essa crítica do ponto de vista da investigação? Porque é que a sociedade critica as mulheres que queiram exercer a sua criatividade na forma de vestir?
Porque as mulheres são muito fáceis como alvo de crítica, parece que é uma missão no mundo qualquer, estranha, no mundo ou que existe uma forma de estar que é ser mulher, com categorias muito estáticas. No entanto, pode-se ser mulher de muitas maneiras. Não é uma coisa que esteja, um código ali fechado que tem que ser aquela numeração e não outra, mas eu acho que na realidade existem coisas muito mais profundas quando se está a falar dessa temática do que simplesmente da moda, moda-vestuário, de que falava Roland Barthes.

A moda, neste livro, é só um motivo para chegar a essas questões de desigualdade?
É, exatamente. Exato.
Estas 41 mulheres que entrevista são nascidas entre 1926 e 2000. Porque é que escolheu uma amostra com esta diversidade etária tão grande?
Para ver o que é que mulheres de diferentes idades, desde a nascida em 1926 à nascida em 2000, (com 12 anos quando eu a entrevistei) me davam como conclusão? Há aquelas que saltam logo à vista, que têm a ver com a questão do corpo e da satisfação com o seu próprio corpo. As únicas mulheres que me responderam que sim, que estavam contentes com o próprio corpo, foram a mais velha e mais nova.
As outras encontravam…
Para as outras, desde as mais magras, às mais gordas nada está bem, nunca, é um pouco cansativo. Porque há sempre modelos, porque a questão da beleza e a questão do ideal é uma coisa que atravessa a vida de uma mulher de qualquer geração, pelo menos desde que existe mass media. Antes existia pintura e a fotografia, mas a mass media é que veio alterar muita coisa. Há sempre esta noção de que há que chegar a um ideal. Ainda como jornalista observava muitas vezes os comuns mortais a fazerem esta esta espécie de comparação entre: como é que nós vamos vestir uma mulher do dia a dia como as manequins, que a propósito são comuns mortais também, como é que vamos vestir o que as manequins exibem numa passerelle? Elas têm um corpo que não é o nosso corpo. Pois, mas elas também são mulheres reais, portanto, existe é uma encenação e uma performance que é muito bem executada há muitos anos que faz com que exista esta necessidade de eu me aproximar de uma beleza ideal, duma vida ideal, de tudo o que é ideal, pronto, quando o ideal é nós sermos quem somos e é difícil contrariar isto.
Porque é que há tantas mulheres permeáveis a esta pressão dos mass media, de sermos altas, loiras, magras? Porquê que isto acontece?
Não é fácil, mas eu acho que isso pode ser um tema para o estudo seguinte que eu e a Carla podemos fazer.

Esta é uma inquietação minha. Onde é que está a autodeterminação das mulheres? Porquê que elas não se autodeterminam também nesta questão?
Elas autodeterminam-se, elas autodeterminam-se, mas depois existem coisas que vão um bocado além do poder de uma mulher só… Às vezes ouve-se as pessoas mais velhas, as mulheres mais velhas, a dizerem coisas que até às vezes até arrepiam. Como se uma mulher só não fosse um ser humano completo, Quando por acaso até é…

O que é que falta?
Exato. Nada. O problema é o resto do mundo acreditar nisso. Basicamente é isso.

Quais são os espartilhos de género que ainda encontra em Portugal? Há este de as mulheres não se sentirem capazes de chegar ao tal ideal de beleza, e que mais espartilhos é que encontra?
Vários níveis, ao nível do poder: o poder nas empresas, pode ser o poder nas administrações locais, a questão do poder. O poder está muito associado e está muito na mão dos homens. Para uma mulher ter a mesma responsabilidade ou desempenhar um papel semelhante ao que habitualmente associamos um homem é como se a mulher tivesse que estar sempre a provar é capaz, mas em dose dupla. Eu acredito que as novas gerações possam também ter aí uma influência e uma forma de estar em cada uma das profissões que possam alterar um bocado essa herança do passado e que a igualdade de género seja uma coisa completamente assumida para estas novas gerações, para os jovens que hoje em dia têm vinte e tal anos ou são ainda adolescentes, mas para isso também é preciso que essa igualdade de género esteja na prática do dia-a-dia e na sua observação do dia-a-dia.

Essa leitura que faz das novas gerações também a consegue fazer a partir das entrevistas que fez tendo como motivo a moda para fazer este livro?
Não lhe posso responder com muita certeza porque as gerações que eu entrevistei aqui entre 80 e 2000. Não tenho uma amostra suficientemente grande e suficientemente significativa para eu agora lhe poder dar uma resposta com mais objetividade. Agora a forma como, por vezes, algumas jovens respondem àquele guião, nos leva a pensar que alguma coisa já mudou. O facto de Morgane, que é a jovem francesa falar do assédio, referindo um episódio que aconteceu com ela em Braga, em que ela retorquiu, ou seja, foi-lhe atirado um piropo qualquer e ela retorquiu. Ela não respondeu logo e o rapaz que lhe fez o “piropo” ainda disse qualquer coisa como ‘ah nem agradeces’? E ela responde-lhe, ‘agradecer o quê? Agradecer teres interrompido o meu dia?’ Ou seja, quando há uma resposta a uma situação que envolve uma discriminação, que envolve assédio, que envolve qualquer coisa que nos leva à desigualdade de género, no fundo, se há uma resposta, isso quer dizer que as coisas vão mudar, ou seja, que não há uma má aceitação daquela realidade. Há esperança que as coisas mudem não é? Porque responder, já é meio caminho andado para mudar alguma coisa.


“As únicas mulheres que me responderam que estavam contentes com o próprio corpo, foram a mais velha e mais nova.”



Estas situações de assédio retratadas neste livro revelam também que há uma sexualização da roupa. O código de vestuário das mulheres, desde há muito tempo, que anda aqui num entre o grande decote e o aspeto mais recatado da roupa, entre a saia muito curta ou a saia que volta a descer e, neste momento, estamos a atravessar uma fase no Ocidente em que também a roupa volta a ser uma espécie de desculpa para essas situações de assédio. Falávamos há pouco de que a roupa é a forma como nós nos vestimos, é um texto.

Sim, sim.

E de que não depende só de nós, mas depende da leitura dos outros também. Afinal a roupa pode condicionar a forma como os outros olham para nós? Pode, de alguma forma, justificar esse tipo de agressões de que fala no livro?
Não, não pode justificar coisíssima nenhuma. No que diz respeito a esse tipo de situação, não justifica, não promove, nada, nada disso é aceitável. A forma como nós nos vestimos, é uma forma de pormos em prática um discurso, um discurso não dito, pode ter mais alguma brincadeira pelo meio, pode ter algum prazer em vestir determinadas formas ou determinadas cores, mas não justifica em parte nenhuma, não está escrito em parte nenhuma: quero ser agredida. Não está escrito.

Afinal quem é que pode ler a forma como cada um se veste?
Quem é que pode ler? É uma boa pergunta. Quem é que pode ler? Bom, para ler é preciso, saber ler. Saber ler, quer dizer ter conhecimento, ou seja, quando nós queremos de alguma forma conhecer o que se veste e, conhecer a história daquilo que se está a vestir, já é meio caminho andando para se poder ler. Mas se, de facto, esse conhecimento sobre as formas ou as cores, ou a história da moda ou aquilo que é nosso já alargado dicionário de designers de moda portugueses, se puder assim chamar… é preciso conhecer os outros e conhecer os outros é sempre, passa sempre pelo respeito pelo outro, não é? Desde as questões dos direitos humanos, a outras. Para ler o outro é preciso também, não digo conhecer o outro, mas, pelo menos conhecer o humano e aquilo a que o humano chegou hoje e as suas várias formas de comunicação e sendo que a moda é uma delas.

Por contraponto, neste momento, estamos também a assistir a uma dessexualização da moda ou a uma transformação da moda que deixa a dicotomia feminino e masculino e passa ao sem género, o no gender. A utilização de motivos normalmente femininos no século 20, por exemplo, é uma das coisas que está a penetrar na indumentária masculina. Como é que se vê o futuro da moda neste departamento do género, a moda vai ser sem género e, depois, a sociedade vai ser sem género?
Também há várias coisas interessantes aí nessa, dentro dessa questão que tem muitas lá dentro. Eu, na realidade, o que eu agora gostaria era continuar esta investigação, aplicando esse mesmo guião de entrevista que apliquei a 41 mulheres, aplicar a um grupo de homens. De homens, de pessoas transgénero, gostava mesmo, gostava mesmo de ver, para poder fazer uma sociologia comparada de género…

E perceber se há as mesmas condicionantes?
Eu já fiz uma entrevista a um homem, uma coisa exploratória e, à partida, e à partida não houve, quer dizer, naquela 1ª entrevista não houve nada de tão dissonante, relativamente às respostas das mulheres. De facto, continuava a dizer que quem o vestia em criança era a mãe. Existem momentos na história da moda em que existe aquele fenómeno do unissexo. Por exemplo, nos anos 70, havia muita roupa que era unissexo. Existem assim estas pequenas formas de portas de saída ou haver estes escapes. Existem circunstâncias sociais que levam a, neste caso, a androginia. Há ali uma ambiguidade que penso que é isso que é, também a Androginia. Existe algumas, uma em especial, estou a pensar numa em especial, que fala da androginia como algo que ela gosta enquanto, que manifestação de moda mesmo. E, agora existem, pronto, outras realidades relacionadas mesmo com, com as pessoas trans que, no fundo também têm um lado de performance de género, que depois vai usar códigos anteriores, por exemplo, formas de estar que são mais conotadas com as mulheres, mas depois como o seu próprio género também, não é o que é, o que é digamos, o que é mais proeminente, não é, não é o feminino, por assim dizer, então existe ali uma, não é tanta ambiguidade que é possível ver na androginia, mas é outra coisa, é outra realidade e, acho que, acho que, acho que os binarismos de género já tiveram o seu tempo, efetivamente

O que é que nasceu primeiro, a moda como condicionante de género ou o género como condicionante de moda?
Alimentam-se bem os 2, um ao outro. Quando eu era jornalista havia uma resposta depois dos desfiles de moda que já me cansava um bocadinho: “a minha moda é muito feminina”. Esse tipo de categoria é bastante cansativa, nesse sentido em que há muitos feminismos, não é? Há um feminismo que é mais essencialista, o meu feminismo não é bem essencialista, embora eu também não tenha certezas quanto a esse facto. Nesse sentido sou um bocadinho como Simone de Beauvoir que pensa, ‘não se nasce mulher, torna-se mulher’. Mas, depois vem um sujeito qualquer dizer o contrário, que não se nasce homem, torna-se homem. Então há aqui um problema. A questão do feminino é uma questão de categoria também, não é? O sermos nós, sermos humanos é que é, é que está à partida inscrito na nossa cultura, no nosso modo civilizacional de ser. E, por isso, eu acho que é muito difícil dizer o que é que nasce primeiro, não é, porque nascem ao mesmo tempo. São gémeos.