Daniela Falcão: “A imprensa brasileira é livre, mas existem ameaças”

Daniela Falcão

 

Daniela Falcão é a CEO da Edições Globo Condé Nast desde 2017, dirigiu durante uma década a Vogue Brasil, mas foi na área da política que a sua carreira começou. Aos 47 anos, Daniela é a primeira mulher ao comando da Globo Condé Nast.

Trocou o jornalismo de atualidade por artigos de comportamento, uma mudança que a levou até às revistas de lifestyle, mas foi com a missão de dar um caráter noticioso à Vogue Brasil que se tornou numa das personalidades mais influentes da moda.

Em Lisboa, o Delas.pt sentou-se para tomar um café com Daniela Falcão e o resultado foi uma longa conversa sobre o Brasil, política, moda e liderança feminina.

A Daniela começou a sua carreira no jornalismo de política, como é que foi parar à moda?

Quando estava na faculdade nunca pensei em ser jornalista de moda. Primeiro porque não existia jornalismo de moda no Brasil. Existiam revistas de moda mas não eram noticiosas, não tratavam a atualidade. Mesmo a Vogue, durante um período grande, foi mais um catálogo de imagens bonitas do que propriamente um veículo que as mulheres e os homens podiam usar para se informar. Eu gostava de comportamento, artigos grandes, mais até do que política. Retratar e escrever bem o tempo que vivemos para mim era o mais interessante. Acabei por fazer política porque era o caminho natural. O Brasil estava nas primeiras eleições depois da ditadura, estava muita coisa a acontecer na esfera política em Brasília, que foi onde me formei, por isso foi o caminho mais normal. Depois de oito ou 10 anos, comecei a ficar um pouco cansada porque o panorama não mudava. Eu acho que sou muito ansiosa e as coisas eram muito iguais.

Politicamente ou no jornalismo?

Politicamente. O ciclo de um governo, para fazer transformações que realmente interessam, é muito grande. Eu cobri dois anos do governo de Fernando Henrique [Cardoso] e foi um período de muita transformação social no Brasil. Mas depois de três anos, eu achava que estava a dar as mesmas notícias e isso deixou-me um pouco desencantada. Então resolvi dedicar-me à área do bem-estar, que estava a nascer. Em vez de eu falar de saúde pública falei do ponto de vista do bem-estar e esta foi a primeira transformação na minha carreira. A partir daí comecei a fazer muitas coisas de comportamento e fui trabalhar para revistas como a TRIP e a TPM, que são revistas mais alternativas mas que já integravam a moda. Então eu comecei a trabalhar com moda, na verdade, nessas revistas. Mas a TRIP, para homem, e a TPM, para mulher, não são revistas de moda. Elas têm moda dentro delas mas não é o alinhamento principal, por isso quando foi convidada para fazer a Vogue foi uma super surpresa. Tive que ter três almoços para perceber que estavam a fazer-me um convite, mas o que ela precisava – a Patrícia Carta, que era a editora na época – era, justamente, que a Vogue tivesse um caráter mais noticioso. Ela era editada por homens, e precisava de uma voz feminina mais forte.

Acha que faz diferença haver uma voz feminina por trás de uma revista feminina?

Acho que faz. Na condução de um título feminino, homens e mulheres levam as coisas de forma diferente. A Vogue Itália, por exemplo, tem um diretor de redação, que é um homem. Acho que é uma revista um pouco mais seca, mas que tem um caráter noticioso muito bom. Existem prós e contras, não acho que seja igual. No caso da Vogue Brasil, ela vinha de uma sucessão de diretores homens.

Mas que mesmo assim não davam esse caráter noticioso?

Não, ela tinha caráter de arte, não de serviço. Era uma revista muito elitista e não explicava a moda para as mulheres.

O que é que é preciso para uma revista de moda ter esse caráter noticioso? O que é jornalismo de moda?

Quando se é um jornalista de generalista, tem que cobrir muita coisa e às vezes não é especialista em tudo. Então, se for entrevistar um médico, vai ter de fazer todas as perguntas para aquele médico para entender aquele assunto. Uma das coisas que eu briguei muito com os repórteres da Vogue no início, é porque se percebia, claramente, que eles escreviam coisas que nem eles tinham entendido direito. Tem muita informação de moda que é importante porque se eu estou a falar de uma tendência, um tipo de roupa, se eu não tiver um histórico para contextualizar quando isso tudo aconteceu, como já foi usado, qual é a diferença, fica tudo muito vazio. O grande trunfo para fazer um bom jornalismo de moda é você ter referência cultural, de música e de cinema. Eu acho que todas as coleções têm história por trás e isso é o que faz a moda ser tão interessante. Não é só dizer que a calça está no comprimento X ou Y, mas é você, nesse contexto cultural, explicar um pouco melhor o que está acontecendo. Depois também é preciso ajudar o leitor, no mundo de tanta informação, a saber o que é bom. Temos de ser muito bons curadores, estamos sempre a escolher quais são as informações mais relevantes para os leitores. Os jornalistas de moda têm que olhar para os novos talentos, mas isso dá um trabalho enorme, porque tem uma infinidade deles.

Como é que as novas plataformas vieram mudar a moda e a forma como as revistas trabalham? Hoje em dia as revistas não são só a revista e também não dão só informação, fazem eventos e criam os seus próprios movimentos. São muito mais do que informação.

Eu acho que a grande transformação digital nas revistas de moda foi na cobertura dos desfiles, que agora é uma coisa instantânea. Hoje em dia, qualquer pessoa que esteja a assistir ao desfile pode mostrar o que está a acontecer instantaneamente. Por isso a função das revistas, que era contar o que tinha sido mostrado na passerelle, deixou de existir. Isso abre espaço para as revistas em papel serem mais analíticas. Com essa revolução toda, as revistas tiveram que ser muito boas no digital também. Temos que ser capazes de ter um olho na passarelle e o outro é para postar, porque os seus seguidores vão querer saber a opinião da revista em tempo real. E não dá para não fazer isso, se não vamos perder espaço para as blogueiras.

Como é que se gere isso? Qual é a diferença entre um jornalista de moda e um influencer? Sendo que as jornalistas e editoras da Vogue Brasil, por exemplo, dão muito a cara nas redes sociais e têm milhares de seguidores.

Acho que hoje em dia um jornalista tem que ser um influencer! E não é só área da moda. Você tem jornalistas políticos que exprimem opiniões, mostram onde estão. O conceito de você ser absolutamente imparcial não existe mais. Quando você direciona o leitor para a sua conta pessoal, as suas preferências vão estar ali mais claras do que na revista. Mas as preferências realmente existem e isso é interessante para o leitor. Aqui chegamos nos eventos, porque a marcas procuram a revista para fazer eventos, porque as editoras conseguiram mostrar quem elas são e o público quer identificar-se com elas. Por isso eu não preciso contratar influencers para fazer um evento, porque as jornalistas já fazem isso. A grande diferença entre o jornalista e a bloguer, é que a bloguer recebe dinheiro para falar dos produtos e a jornalista não. Por exemplo nós temos sempre o cuidado de não identificar marca para não confundir os seguidores. A presença nas redes sociais e o diálogo é importante, mas é feito de uma maneira mais neutra, natural e clara. As revistas têm de continuar a ser úteis aos leitores e uma maneira de fazer isso é através das redes sociais.

Um bocadinho como os bastidores?

Sim, e as pessoas adoram esses bastidores. Hoje em dia, uma revista tem que ser pensada como um livro de mesa. O jornalismo de serviço, as notícias imediatas têm que estar no digital. Para o papel ficam as imagens poéticas. O que obriga a um cuidado com a imagem muito grande. Os eventos são uma maneira da revista e da marca comunicarem com o público. As pessoas hoje têm muita sede de conhecimento, então querem e adoram assistir a conversas e poderem perguntar coisas diretamente, em vez de ler só a matéria.

“A grande conquista da minha geração foi perceber que não temos de chefiar como um homem, não temos de nos masculinizar”

Como é que se trabalha o luxo e a moda de luxo num país como Brasil, onde há tantas diferenças socioeconómicas? Como é que se trabalha nesse mundo mantendo os pés no chão da realidade da sociedade brasileira?

No Brasil, especificamente, temos um papel com duas facetas. Uma é você apoiar os movimentos que, de alguma maneira, procuram combater essas desigualdades. Aqui podemos usar todo o glamour da moda para fazer bailes, galas, em que se fazem leilões para arrecadar fundos, para apoiar pequenas ONG. No Brasil, com a corrupção que existe como um cancro, o governo não vai conseguir resolver nada neste momento em termos sociais, porque está tudo a ser revisto. Estamos a viver uma crise política muito grande e ainda bem que o Brasil é um país estável, capaz de passar por todas estas denúncias e confusões de uma maneira muito pacífica. Há manifestações e as pessoas estão na rua, mas dificilmente se vai ouvir que houve incêndios de carros, como às vezes acontece noutros países. A gente está a viver este momento turbulento na política. Então as ações sociais para acabar com estas desigualdades vão ter que ser dadas à população, às ONG, às empresas. A importância da responsabilidade social é muito clara. Estamos a passar algo que o governo tem que resolver, mas a política brasileira tem que se reencontrar, livre de corrupção e, enquanto isso, não podemos esperar de braços cruzados. A outra maneira de ajudar o Brasil é valorizar o que é nacional e artesanal. O Brasil é um país muito forte em trabalho manual. Você tem a cestaria dos índios, no Amazonas, as bordadeiras no nordeste. Valorizar e dar um caráter de luxo para essas técnicas também é uma função nossa. Tirar esse preconceito de que só o que vem de fora tem valor, acho que é muito importante e relevante também.

A moda é muitas vezes um espelho da política. A moda brasileira tem refletido a instabilidade política do país?

A moda brasileira sofreu muito nos últimos anos, é um setor muito desprotegido economicamente. Podemos dizer que a moda brasileira foi muito mais forte do que é hoje. Não sei se atualmente a moda brasileira tem este “eco político” que ela deveria ter, porque os estilistas estão a lutar pela sobrevivência. É muito difícil produzir no Brasil. Hoje infelizmente acho que não temos a moda brasileira a cumprir um papel político. O que nós vemos de mais interessante a acontecer é realmente a questão de repensar como se está a produzir a roupa. Nós apoiamos um projeto de novos talentos e quase todos eles têm na “etiqueta” se a roupa é biodegradável ou não, com que material é que foi feita … há umas que até são mais sofisticadas e vêm com um QR code que permite saber quem é que a fez. E é nisso que eu acho que a moda brasileira está muito empenhada, e não na politica. Eu não consigo pensar num estilista ou numa marca que tenha tomado alguma posição política. Atualmente, no Brasil nós estamos a viver um momento de extremos e nós não podemos ser tão extremos. Nem uma coisa, nem outra. Se nós não tivermos cuidado, isso não vai chegar a lugar nenhum. As pessoas têm que ter uma convergência. Nenhum dos lados está certo, é um momento muito delicado.

Acha que a imprensa brasileira pode ajudar a criar esse meio-termo ou ajudar a esclarecer?

Sim, eu acho que o grande papel da imprensa é dizer que os lados têm de convergir. Aconteça o que acontecer nas próximas eleições, nós vamos ter que continuar a viver. No Brasil é estranho ver famílias a discutir o lado de cada um dos membros. Não pode haver um momento de tanto extremismo. Os jornais, através dos seus editorais, vivem a reivindicar, cada vez mais, uma via central. O jornalismo da atualidade ou de lifestyle tem que tentar fazer essa ponte, independente da sua convicção política. Neste momento, os valores são o mais importante.

“Atualmente, no Brasil nós estamos a viver um momento de extremos e nós não podemos ser tão extremos (…) Se nós não tivermos cuidado, isso não vai chegar a lugar nenhum.”

A imprensa brasileira é livre o suficiente para fazer isso ou existem algumas pressões?

A imprensa brasileira é livre, mas existem ameaças. O Lula, por exemplo, adora nos discursos dizer que vai controlar a imprensa, porque alega que a imprensa é capitalista e ele quer defender os trabalhadores. Estas ameaças existem. A imprensa pertence de facto a grandes grupos económicos, mas é assim que é o país. Mas também existe imprensa alternativa, a quem nós no Brasil chamamos “media ninja”, que é respeitada e forte. Podemos escolher o que ler, a imprensa não é completamente imparcial mas o leitor pode decidir que jornal quer ler. Os jornais podem ser neutros na maneira de contar uma história mas eles têm uma voz. Não existe perseguição política no Brasil, nem nenhum entrave ao trabalho jornalístico, mas ainda existe uma névoa na linha editorial que eu acho que tem de ser mais clara. Deixar clara a sua opção e linha partidária até vai permitir ao leitor perceber mais facilmente e julgar se a sua parcialidade é demasiado grande ou não.

O jornalismo não devia ser mesmo imparcial, acha que é impossível?

Acho, porque quem faz o jornal são pessoas. E as pessoas têm convicções. Eu posso ler uma coluna de alguém com uma convicção politica diferente da minha, compreender a lógica dela, achar interessante, apesar de não concordar e isso fazer-me refletir. Claro que o jornalista tem de ser neutro a reportar os factos, mas isso é uma questão de principio jornalístico. Se eu estou a reportar uma ação policial violenta, eu não posso omitir que a polícia foi violenta porque sou a favor da polícia.

A Daniela é CEO da Globo Condé Nast, desde 2017, qual é a grande diferença deste cargo do de Diretora da Vogue?

Tenho de apresentar resultados financeiros. Quando se tomam decisões editoriais sem olhar para panorama financeiro da empresa, a verdade é que se pode estar a colocar um grupo inteiro em risco. Por isso não adiantava nada conseguir fazer revistas relevantes se não conseguisse dar resultados financeiros. O grande desafio para mim foi juntar as duas coisas e fazer marcas relevantes mas que sejam lucrativas. É preciso saber navegar entre o editorial e o comercial, é um desafio interessante. Além disso, achei melhor ser eu a fazê-lo do que outra pessoa, e nunca tinha havido uma CEO mulher na Globo Condé Nast, o que também foi um desafio.

As mulheres chefiam de maneira diferente?

Chefiam. A grande conquista da minha geração foi perceber que não temos de chefiar como um homem, não temos de nos masculinizar. As mulheres são mais emotivas, são mais multitasking, existem estudos que mostram isso e é algo que se revela no dia-a-dia. Eu às vezes brinco e digo que quando o chefe é uma mulher “tem um abracinho”, porque os homens têm mais dificuldade em ligar-se emocionalmente com os funcionários. As pessoas choram muito na minha sala, as pessoas sentem-se muito mais à vontade para desabafar com uma chefe mulher. Na área de recursos humanos, hoje em dia, fala-se muito da necessidade de os gestores serem mais carinhosos e afetivos e esta conclusão, na minha opinião, é uma consequência direta da liderança cada vez mais feminina.

Tem saudades de ir para a rua à procura de histórias?

Tenho, tenho saudades de contar uma história do meu ponto de vista e ver como o público reage. Não tenho saudades de cobrir desfiles, apesar de gostar. Quando me tornei diretora editorial criei uma coluna na Vogue mas ela só durou três meses, porque eu não tenho tempo, então acabou. Também sinto falta de entrevistar pessoas que queria ter entrevistado e não consegui. Mas também é bom ficar a faltar alguém porque é um bom barómetro para saber se a sua vida está boa. Por exemplo, a Silvia Rogar (atual diretora da Vogue Brasil) vai entrevistar a Miuccia Prada, que é uma das pessoas que me ficou a faltar, e eu estou com alguma inveja, mas é uma inveja boa porque eu estou feliz na mesma. Tenho saudades mas acho que as coisas acontecem num momento certo.

Tecnologia e sustentabilidade são os pilares do novo luxo