Decore este nome: Nanette, o mais recente fenómeno Netflix

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Deem o microfone certo a uma “mulher errada”. Mas preparem-se. Sobretudo se o fizerem a meio do turbilhão #MeToo. Uma “mulher errada”, como a própria se define, tem material que chegue para fazer piadas sobre ela própria. Felizmente, Hannah Gadsby sabe que os tempos não estão para auto-depreciação, ou pelo menos nem sempre – não é com as vítimas que devemos gozar, é com os agressores. E não são as mulheres que são erradas, talvez seja a comédia que o está.

A mais jovem de cinco irmãos, que sofre de perturbação de hiperatividade/défice de atenção, nasceu há 40 anos em Smithton, pequena localidade na conservadora Tasmânia, Austrália. Lésbica assumida, confortável num smoking, inteligente nas tiradas, é a mulher à frente de Nanette, o mais recente fenómeno de popularidade na Netflix, ou “Nanetteflix”, como a comediante justamente batizou.

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“Aconteceu por acaso, como tudo na minha. Eu sou obra do acaso”, confessou a australiana quando em junho passou pelo talk show Late Night with Seth Meyers. Hannah andava a plantar árvores quando lesionou um pulso. Passou a recuperação a entreter os amigos, até que um deles decidiu que Hannah merecia uma “audiência mais vasta”. Gadsby acabou inscrita num concurso de comédia e o resto da história passa por uma década a participar em festivais e espetáculos de stand up. Até que uma audiência internacional se começou a render a este registo incubado nos antípodas.

Hannah passou de uma discreta humorista com participação na sitcom australiana Please Like Me para as bocas do mundo. E Nanette, que se estreou no Netflix a 19 de junho, depois de levar a melhor no irlandês Fringe Festival, de um périplo pela Austrália, e de uma digressão pelos EUA, tem tudo para continuar a alimentar o fenómeno, sempre a questionar os parâmetros do stand up.

Hoje, são uma e uma só, alinhadas na mensagem. É através de Nanette que a comediante passa em revista a atualidade e uma série de cabeças debaixo de fogo, para tensão e incómodo das plateias. De cano apontado à cultura que admite e perdoa o abuso, ataca nomes como Louis C.K:, Harvey Weinstein e Bill Clinton, numa “engenhosa acusação ao sexismo e sentimentalismo das nossas narrativas sobre os génios”, como sublinhou no The New York Times o crítico e colunista de comédia Jason Zinoman.

No limite, Nanette (o nome foi inspirado numa mulher comum com quem Hannah se cruzou) põe em sentido a própria comédia e os seus padrões e conteúdos vigentes. Não por acaso, a revista Slate cunhou o seu desempenho como “stand up tragedy”, enquanto a Vulture antevê que depois de Nanette este conceito de espetáculo nunca mais será como dantes. E para tal, em muito contribui o histórico da protagonista.

“Não tenho uma família ou um passado como a maior parte das pessoas. Portanto a relação entre o lado pessoal e político deu mesmo forma ao que Nanette é. Donald Trump foi eleito e a minha avó morreu – essas duas coisas foram um gatilho”, recordou Hannah em entrevista à revista Rolling Stone, resumindo o seu método de forma contundente – o propósito “não é elevar o riso, mas sim tirar o tapete” – e louvando a universidade e espírito democrático da comédia (“Podes vir de um contexto sócio-económico baixo como eu”.

À Rolling Stone, Gadsby resume o seu método de forma contundente – o propósito “não é elevar o riso, mas sim tirar o tapete” à plateia

É a brincar que se abordam temas bem sérios como a misoginia, a homofobia, ou até a violação corretiva de lésbicas como prática menos rara do que se pensa. Para não falar das sábias incursões no mundo da arte e na alusão a referências como Woody Allen, Roman Polanski ou Bill Cosby, referências entretanto maculadas pelo escândalo. Acredite, errado é não assistir ao programa.

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