Direito da mulher a divertir-se ainda é visto como incitamento à violência sexual

Violação

Os dados do eurobarómetro da Comissão Europeia sobre a violência de género, publicado a propósito do Dia Internacional pela Eliminação da Violência Contra as Mulheres, mostram que 29% da população portuguesa inquirida considera justificável o sexo sem consentimento em algumas situações.

Os dados revelados “são preocupantes”, mas não são totalmente surpreendentes para quem trabalha diariamente com casos violência doméstica e sexual, como acontece com Natália Cardoso, da APAV – Associação Portuguesa de Apoio à Vítima.

“Em Coimbra, entre 2011 e 2014 tivemos um projeto relacionado com a questão da violência sexual junto dos estudantes do ensino superior e fizemos várias ações com eles, em que trabalhamos alguns dos mitos da violência sexual e muito a questão do consentimento. E, de facto, algumas das expressões que aparecem no eurobarómetro eram referidas por esses jovens”, explica a advogada, representante da associação naquela cidade.

Segundo Natália Cardoso, muitos dos estudantes com quem falou, no âmbito desse projeto, achavam “justificável o sexo sem consentimento quando a vítima estava intoxicada – com álcool ou com estupefacientes”, que é uma das situações mais apontadas no eurobarómetro, colhendo 19% das respostas dos inquiridos que desculpabilizam a violação em algumas circunstâncias.

A par da experiência no terreno, Natália Cardoso cita conclusões de um estudo recente da Universidade do Minho que “revelava que quase 30% dos estudantes a frequentar o ensino superior [em Portugal] já tinham sido vítimas de um ato sexual sem consentimento, na sua vida”. Um número elevado de jovens, que, devido a esse historial, pode ser mais vulnerável à repetição da situação ou reprodução dos comportamentos, sublinha a advogada.

Lembrando o projeto com os estudantes de Coimbra, apercebe-se que “todas as frases que estão no barómetro” encaixam naquilo que lhe foi “verbalizado” na altura, e que elas não eram apenas um reflexo do padrão mental dos jovens, mas também de pessoas mais velhas e alguns profissionais, “que tinham alguma dificuldade em perceber as fronteiras relativas ao consentimento”.

Nem sempre é fácil encontrar explicações para o facto de a aceitação de uma prática que é crime atravessar diferentes gerações. Natália Cardoso considera que apesar da evolução que tem havido ao longo dos últimos anos a matriz assenta ainda em “valores muito conservadores”, nomeadamente no que diz respeito aos comportamentos da mulher.
“As mulheres continuam a ser educadas de uma forma diferente dos rapazes, continuam a não ser aceites alguns comportamentos das meninas em comparação com os meninos. E começa desde muito cedo a haver estas diferenças e depois isto vai passando de geração em geração. O que é assustador é os mais novos também terem estes pensamentos”, defende.

Além da transmissão cultural de valores, uma das razões que pode levar à falta de noção dos limites por parte dos mais novos prende-se, na opinião da advogada, com o facto de “vivermos num mundo hiper sexualizado, em que aqueles são apresentados de uma forma muito pouco clara”, e que vai desde a publicidade ao cinema, passando pela televisão e pela internet.
Apesar de também haver bons exemplos nesses meios, como ressalva, passa-se em grande parte, uma cultura de legitimação da violência e mesmo as mensagens menos agressivas, por vezes, “incitam a uma desvalorização da mulher e do seu corpo”.

A tudo isto, alerta Natália Cardoso, junta-se o facto de, como sociedade, sermos essencialmente espetadores passivos destas realidades e de não refletirmos acerca dos dados sobre os quais vamos tendo conhecimento. E pensamentos como os que estão materializados nas situações que os inquiridos consideram justificativas de um ato sexual sem consentimento acabam por estar enraizados na mente de todos, homens e mulheres, agressores e vítimas. O eurobarómetro da Comissão Europeia, foi respondido tanto por homens como por mulheres.

Na experiência que teve no projeto com estudantes universitários de Coimbra, a advogada recorda que muitas das mulheres tinham o mesmo tipo de postura, criticando a forma como muitas vezes outras mulheres se vestiam quando iam sair à noite ou se iam para casa do rapaz que tinham conhecido. “De que é que elas estavam à espera” era expressão que ouvia algumas vezes da boca de pessoas do sexo feminino. “É algo em que, culturalmente, quer homens, quer mulheres acreditam”.


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O direito da mulher a divertir-se
Uma das mensagens que o grupo de trabalho da representante da APAV em Coimbra tentou passar durante o projeto com a população académica foi, por isso, a de que “a mulher também tem o direito de se divertir e a consumir aquilo que quer e a quantidade que quer”. As razões pelas quais não devem beber – sobretudo em grandes quantidades – são as mesmas para os homens, “uma questão de saúde pública e não uma questão de comportamentos”.

Com esta distinção procurou-se alertar e fazer compreender que o facto de alguém estar alcoolizado ou sob o efeito de alguma substância “não é um convite para que as coisas aconteçam”.

Jovens, álcool e festas universitárias
Natália Cardoso afirma que os casos mais complicados eram aqueles em que tanto vítima como agressor se encontravam alcoolizados e, por isso, incapazes de tomar decisões conscientemente e “perceber os limites daquilo que estava a acontecer”. “Aí a situação é um pouco mais complexa e é o que acontece muito nestes contextos de festa, em que todos ultrapassam os limites”.

À parte esses casos, e em cidades estudantis como Coimbra onde decorrem muitas festas académicas e elevado consumo de álcool, a advogada lembra que “há quem vá para os recintos de festa à procura dessas jovens que estão alcoolizadas e que por essa razão estão mais vulneráveis, e que muitas vezes só se apercebem aquilo que lhes aconteceu mais tarde”.

Apesar de os inquiridos que consideraram aceitável o sexo sem consentimento terem também apontado, em mais de 10%, outras situações que o tornariam justificável – 15% considerou não se tratar de abuso se a vítima vai voluntariamente para casa com alguém ou se anda sozinha na rua à noite, 13% se tiver tido relações sexuais com vários parceiros e 12% se usar roupa “reveladora, provocadora ou sexy” – a advogada considera que o consumo de substâncias que alterem o estado de consciência, como o álcool, são um fator de risco acrescido.
Para combater a violência sexual e alertar para a necessidade de respeitar os limites dos outros, a APAV criou um site especificamente dedicado ao tema, com esclarecimentos, informações e contactos úteis e o que fazer em caso em caso de agressão.