DocLisboa: Duas mulheres a falar sobre o campo e a austeridade

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A artista visual Catarina Botelho criou o filme “Notas de Campo”, que se estreia hoje mundialmente, no festival DocLisboa, para tentar compreender, através do diálogo com duas portuguesas, a forma como os anos de austeridade foram vividos e sentidos.

Em “Notas de Campo”, as imagens sucedem-se como numa viagem, feita de carro ou comboio, com paisagens que começam em Portugal, no Alentejo, e terminam no deserto do Saara. Quando decidiu tratar “a questão dos anos da austeridade, não objetivamente o que tinha acontecido”, mas antes “a forma como eles [esses anos] tinham passado pelas pessoas, como tinham sido vividos, e sentidos”, Catarina Botelho pensou logo na imagem.

“Decidi que era necessário uma viagem, sair de onde nós estávamos, uma espécie de necessidade de afastamento para depois tratar em ‘voz off’ as ideias sobre esses anos”, explicou, em declarações à agência Lusa.

A “necessidade de afastamento” surgiu porque Catarina sentia que, na altura em que as imagens foram captadas (em 2014), “era impossível pensar sobre o que quer que fosse”. “Era um momento em que éramos bombardeados com números de desemprego, cortes de salários. As coisas eram tão confusas, os sentimentos eram tão confusos”, recordou.

A viagem, com a paisagem “em transformação”, tornando-se “mais seca, cada vez menos complexa”, é feita “em direção ao Sul, na direção oposta aos centros de poder que estavam a impor grande parte das políticas de austeridade”. “Era uma direção oposta a esses centros, aos políticos que faziam comentários racistas sobre os povos do Sul, à ideia de um poder que, de alguma maneira, não nos representa”, disse.

As imagens são acompanhadas com os testemunhos de duas pessoas, “bastante próximas” de Catarina Botelho. “Entrevistei outras pessoas no processo, mas acabaram por ficar a Joana [Pinho] e a Luísa [Gago]”, referiu.

A “espécie de ritmo do pensamento” de que as imagens precisavam “é dado por elas, pelas coisas que vão pensando e que vão dizendo”.

As entrevistas foram feitas no ano passado, “quando tinham passado, não as políticas de austeridade, porque continuam em grande parte, mas aquele discurso de culpabilização das pessoas, de que não havia alternativa”, que “foi bastante opressor”.

“Notas de Campo” foi feito com “um pequeno apoio da Fundação Calouste Gulbenkian, que foi o que permitiu fazer o filme, sem qualquer dúvida, mas que cobriu apenas parcialmente os gastos”.

O resto, material e mais dinheiro, foi investimento de Catarina Botelho e do resto da equipa envolvida no filme, bem como da ajuda de amigos. “Sem isso era impossível”, referiu.

Apesar de este ser o seu primeiro filme, Catarina Botelho trabalha “com projetos de arte há muito tempo”, podendo por isso testemunhar que trabalhar nesta área “é uma batalha constante, infelizmente”.

“Claro que [a falta de apoios] condiciona o tipo de projetos que fazemos. Honorários, ninguém recebe, eu não recebo. Mas a verdade é que já estou a pensar noutro filme, a experimentar, a escrever, não tenho qualquer apoio, vamos ver o que vai surgir”, disse.

“Notas de Campo” é exibido hoje, às 18:45, na sala Manoel de Oliveira do cinema São Jorge, e na quarta-feira, às 21:45 na sala 3 do mesmo cinema, em Lisboa.

O filme de Catarina Botelho está na Competição Portuguesa, da qual fazem parte filmes de produção e/ou realização portuguesa, sem limites de formatos ou durações.

O Festival Internacional de Cinema DocLisboa começou na quinta-feira e termina no dia 29 de outubro.