“Durante muito tempo, as mães preferiram os rapazes”

patrícia Delahaie

As mães tem uma grande parte de culpa na construção de uma boa ou má relação com as filhas em particular. Mas não toda. Estes relacionamentos também são influenciados pelo “contexto social”.

Quem o diz é a psicóloga, socióloga e coach francesa, Patricia Delahaie, que investigou as relações entre mãe e filha e procurou encontrar caminhos para apaziguar este difícil e nem sempre compreendido amor.

Em entrevista ao Delas.pt, a autora explica porque é que as mães já gostaram mais de ter rapazes do que hoje e antecipa alguns caminhos que possam ajudar as progenitoras e as suas meninas a encontrarem um caminho em conjunto, sem guerras. Certo mesmo – diz Delahaie – é que entre uma mãe e uma filha os dias estão longe de serem sempre iguais. E é aí que o diálogo, a confiança e a compreensão podem vir a fazer a sua parte.

Mas atenção, há mães que sobrevivem à hostilidade das filhas e meninas que conseguem escapar quase sem mácula a mães muito pouco amigáveis. Porque, afinal, conta Delahaie, falamos de problemas que têm solução.

Quais são verdadeiramente as três ideias-chave para o apaziguamento entre mãe e filha e porquê?

É difícil resumir em três frases o que expliquei num livro, mas uma das soluções passa por entender o que está em jogo na relação mãe-filha, o lugar e o papel de cada uma.

Porquê esta perspetiva?

Porque sou especialista em relacionamentos humanos, tenho escrito muito sobre o amor. Mas a relação mãe-filha é uma relação de amor, uma paixão que dura, um amor feliz ou impossível ou, ainda por vezes, dececionado, mas sempre uma relação de amor. Inquestionavelmente.

Porque é que algumas mães e filhas vivem em guerra? Por que tal acontece?

Quando o mal-estar na relação sempre existiu, quando é estrutural, vem da mãe, que não soube amar, não soube acompanhar a filha. É a mãe que dá e define “a” relação mãe-filha, ela é que cria um clima de confiança. E isso não se instala quando a mãe não sabe ser “mamã” e educadora.


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Quando a guerra é acidental, tal pode suceder devido ao facto de a filha rejeitar a progenitora – temporariamente – para se poder construir a si própria, provar-se, para se sentir uma mulher. Mas, então, esta “guerra” é apenas um momento no relacionamento.

A compreensão para estes fenómenos é maior agora ou no passado? Qual a importância da sociedade na formação destas mães? E o que pode ser feito para evitar?

Durante muito tempo, as mães preferiram os seus filhos rapazes porque o lugar que era dado às mulheres lhes parecia pouco ou nada invejável, nem gratificante. Neste ponto, as mães fizeram progressos significativos: elas gostam de ter meninas. Por vezes, até de mais. Porque uma menina não se destina a substituir os amigos, as irmãs, o companheiro que a mãe não tem. Por isso, os confrontos hoje.

Qual é a contribuição da vida moderna – o trabalho fora de casa e em casa, a quantidade de tarefas, a falta de tempo – para a criação ou no impedimento das relações entre mães e filhas?

Quando o relacionamento é bom, as mães encontram sempre tempo para ter ótimas relações com as suas filhas, uma relação autêntica, de pessoa para pessoa, em que a progenitora transmite à sua filha o que sabe da vida.

As meninas esperam que as suas mães sejam um guia pleno de conhecimento, empatia e afeto.

Quais são as maiores adversidades dos dias de hoje nas relações entre mãe e filha?

As maiores adversidades são um problema psicológico da mãe (e mais tarde da filha) ou os acidentes da vida felizes ou infelizes que comprometem a relação. Quando uma mãe está loucamente apaixonada, por exemplo, ela é invadida por esse amor. Então, pode tornar-se cega e surda à sua filha. Isto também é verdade quando ela está mal, quando tem grandes preocupações profissionais e financeiras… Mas esta indisponibilidade é resolúvel. Sugiro pensar na relação mãe-filha ao longo do tempo porque está em constante evolução, atravessa altos e baixos e silêncios, suspiros como na música. O essencial é que a relação seja “suficientemente boa”, para citar o pediatra inglês Winnicott.

Porque escolheu estudar a relação das mães com as filhas e não com os filhos? São diferentes? Em quê?

A mãe cuida do seu filho, ela eleva-o como eleva a filha, mas não existe a mesma identificação. Na relação mãe-filha tudo é mais intrincado.

A minha filha é um pouco de mim, mas a minha mãe é o meu espelho.

Enquanto um filho lhe é mais estranho, mais distante. Daí as imensas alegrias da relação mãe-filha, mas também as irritações e os mal-entendidos. Por exemplo, se fui maltratada pelo meu primeiro amor, vou colocar a minha filha de pré-aviso relativamente ao tema. Ela vai reagir mal porque quer acreditar no amor. Mas se, ao contrário, fui muito feliz nessa experiência inicial, não entendo como é que isso possa vir a ser difícil para ela. Eu não serei capaz de reagir à dor dela. Essa identificação, essa porosidade entre uma e outra é a característica da relação mãe-filha.

Capa do livro de Patrícia Delahaie, autora traduzida em Portugal [Fotografia: DR]
Há educadores que defendem que uma mãe não deve ser amiga, deve ser simplesmente mãe, com o papel familiar que lhe está associado. Como entende isso e porquê?

A relação de amizade é baseada no dar e receber. Os dois amigos estão em pé de igualdade, confiam e não têm muitas reservas.

Enquanto a relação mãe-filha é hipersensível. A menina é uma esponja. Não é uma relação simétrica como é a da amizade. A mãe escuta mais e dá à filha mais dedicação, levando a que a menina, ela própria, procure ser guiada, acompanhada para construir a sua vida e a sua personalidade.

Não podemos dizer a uma filha tudo o que dizemos a uma amiga. Uma mãe “suficientemente boa” pergunta-se sobre as consequências do que vai dizer à filha e de que tal será benéfico. Ela cuida dela e está consciente do peso que as palavras e os atos têm. Uma mãe é, portanto, muito mais e também muito menos que uma amiga. No meu inquérito, mãe e filha podem tornar-se amigas no sentido de uma verdadeira reciprocidade, mas mais tardiamente e quando a progenitora sabe que que a sua filha se transformou numa adulta forte. No entanto, ela continua a proteger a sensibilidade da filha, preservando-a dos efeitos do envelhecimento sobre ela, não lhe falando dos desafios que ela pode vir a atravessar como mulher.

Qual é o risco em que incorrem as mães menos presentes e amigáveis na formação das suas filhas? A incompreensão pode perpetuar-se pelas gerações?

Podemos dizer que determinados comportamentos maternais podem ter efeitos negativos sobre as filhas, mas apenas em retrospetiva, após os factos consumados, vendo o que o tempo trouxe. Algumas filhas conseguem acostumar-se a mães difíceis, outras nem tanto. Tudo depende das mulheres, dos pais e das próprias filhas…

Não podemos prever exatamente o que vai acontecer a essa filha de mãe hostil e muito menos o que pode acontecer às gerações futuras.

O que podemos dizer é que uma relação mãe-filha nunca é perfeita, mas há graus de dificuldade. Podemos também dizer que tendemos a não repetir o que nos faz conscientemente sofrer. Espera-se dar à filha o que não se recebeu. E é um belo ato de generosidade.

Qual o maior grupo : o de mães e filhas que se amam ou que não se entendem?

É difícil fazer estatísticas porque – como na vida conjugal – as relações mãe-filha flutuam.

Aos 12 anos, a filha vai dizer à mãe que a adora, mas aos 17 odeia-a e aos 28 é o seu modelo, etc.

De acordo com a minha investigação, haveria uma taxa de 20% de alto conflito, 20% de boas relações, e, entre ambos parâmetros, as relações são flutuantes e podem ser melhoradas.

Há uma socióloga israelita, Orna Donath, que diz que o “instinto maternal não existe”, é “uma construção da sociedade” e que o “relógio biológico” é uma “ideia política”. Como olha para estas declarações e em que medida, a serem verdade, comprometem as relações entre as mães e as filhas?

Não sei se compreendi completamente a questão.

Mas é verdade que a qualidade da relação mãe-filha é influenciada pelo contexto social.

Na China, as raparigas eram eliminadas pelas suas mães em benefício dos rapazes aquando da política do filho único. As aristocratas francesas do século XVII confiavam os seus filhos às amas e sem quaisquer complexos de culpa. Hoje em dia, a maternidade e o nascimento das raparigas são valorizados. As bebés do sexo feminino são tão bem bem acolhidas como os do sexo masculino. O que é um bom arranque para uma boa relação entre mãe-filha.

Que recomendações deixa às leitoras de forma a que promovam boas relações com as filhas?

Demonstrar abertura para com a filha, a quem ela é e o que ela vive… pode ser a recomendação que deixo às mães sem quaisquer julgamentos, arranjando tempo para as escutar. Às filhas, não acreditem que as mães estão sempre conscientes de tudo o que fazem. A maioria não tem ideia do impacto que tem sobre as filhas. Nada como explicar tudo tranquilamente.

Quando se devem começar a promover as boas relações: nos primeiros dias do bebé, na infância, na adolescência?

A confiança é o que importa entre mãe e filha. Então, encontremos e saibamos como dizer às nossas filhas que confiem em nós.

Há sempre solução para este tipo de problemas?

Oh, claro que sim. Podemos sempre retomar ou diálogo ou pensar que a distância – mesmo que seja grande – é boa, eventualmente.