Elas viajam sozinhas sem medo na bagagem

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Há cada vez mais mulheres a viajar sozinhas e esta ‘estatística’ se tivesse a palavra homem não seria notícia, é um facto, custe-nos ou não lidar com isto. Por isso vamos focar-nos no que realmente importa: a independência emocional e financeira das mulheres tem mudado ao longo dos tempos e esta conquista reflete-se na vontade de ‘correr o mundo e partir, que a vida é sempre a perder’, como cantam os Xutos e Pontapés. Viajando é sempre ganhar, dizem as aventureiras com quem falámos, mulheres que puseram a mochila às costas e seguiram caminho sem companheiros ou amigos na bagagem. Mulheres que garantem que depois da primeira viagem a solo a vontade é continuar sem companhia.

“Existe algum egoísmo. Existe a vontade de seres a única pessoa que define aquela experiência. Obviamente, vais conhecendo pessoas que vão definindo a viagem. Já fiz grandes amigos, já me apaixonei a sério. Mas estas pessoas fazem parte daquele momento. Viajar com alguém requer um nível de compromisso que muitas vezes, prefiro não ter. Devo ser a pior parceira de viagens, hoje em dia, exatamente por isso. Gosto muito da sensação de estar simplesmente com aquilo que escolho pensar, escolho sentir”, resume Patrícia Cardoso, de 29 anos.

Foi há oito a primeira viagem em que partiu sozinha, para um mês de voluntariado numa aldeia do Nepal. “Achei que estava na altura de experienciar umas férias diferentes das tradicionais idas a festivais ou com a família. O Nepal foi o país de eleição, não só por ser relativamente calmo para a altura, mas também pelo cariz religioso. A religião budista/hindu fascinava-me mas nunca poderia dizer que sigo uma determinada crença sem conhecer a sua história, a sua origem. A minha cabeça estava completamente aberta e curiosa, as perguntas impunham-se. Estando em Lumbini, local onde o Buda nasceu, não senti particular chamamento. O que realmente me marcou foram as pessoas que conheci. Pode parecer um clichê, mas é a verdade e é uma constante também”, conta. Nessa viagem aprendeu mais do que em qualquer livro e viveu experiências que ainda hoje recorda pela forma como a tocaram tão fundo.

“Há uma noite que não esqueço. Fomos jantar a casa da professora da escola onde fizemos voluntariado. Enquanto fazia o jantar, contava a história do seu casamento. O marido saiu do país para trabalhar e, pouco tempo depois, comunica-lhe que não volta, encontrou outra mulher. Ela, uma mulher com 3 filhas, numa aldeia do Nepal, fica sem marido. Ali, casam para a vida. Sabe que ficará sozinha provavelmente o resto da sua vida. Partilhamos as nossas histórias, abrindo completamente o coração. Naquele momento, não éramos estrangeiras, diferentes, não se sentia o abismo da língua. Éramos apenas mulheres, com histórias parecidas”, recorda a produtora.

Depois do Nepal, emigrou para o Brasil. No país irmão viajou sozinha para vários locais. Bahia, Ubatuba, Pernambuco, Pantanal. Entretanto, foi à Jordânia, Moçambique e Israel. O clique para partir não é sempre o mesmo, explica Patrícia. São tantos os motivos que a podem levar a partir, seja por 3 dias seja por um mês.

“Depende do tipo de experiência que estás a procura, no momento, e do tempo que terás. Para a Jordânia, fui para o deserto porque precisava afastar-me e reavaliar imensa coisa. No Brasil, queres conhecer as praias maravilhosas, mas o Pantanal é uma realidade paralela muito mais marcante. Se queres ver elefantes, procuras um país onde isso possa acontecer. Outras vezes, aqueles impulsos inexplicáveis fazem-te abrir o site de viagens e pensar ‘tenho de marcar alguma viagem agora’. Sem medos.


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“Medo não é a palavra. Ou sou maluca ou o medo reflete-se em mim como uma adrenalina que preciso experienciar. É tão bom estares numa situação nova, complicada que acabas por superar. Sentes-te capaz, sentes-te válida, sentes-te segura que te bastas a ti mesma. Essa sensação vence qualquer medo. E as descobertas constantes são o que realmente vais recordar”, acredita a produtora, que conta com o apoio da família para estas incursões a solo fora do ninho.

“Quando sentei o meu pai e lhe disse que queria ir para o Nepal, depois do susto inicial, disse-me das frases que mais me marcaram, até hoje. Disse-me: ‘filha, eu sempre quis ir ao Alasca ver os glaciares e nunca consegui. Por isso, tens o meu apoio para viajares. Vai por mim’. Com o apoio dos meus pais, eu sinto mesmo que posso ir para onde quiser. Depois disto, qualquer coisa que possam dizer sobre o que me dizem é secundário. Claro que oiço ‘onde?’, ‘sozinha?’, ‘isso é perigoso’. Mas, com o tempo, também já se habituaram às notícias inesperadas.

“As mulheres que se predispõem a viajar sozinhas têm, em primeiro lugar, a capacidade de fazerem companhia a si mesmas com qualidade. Tendencialmente serão mulheres com confiança em si e na sua capacidade de adaptação, com um espírito prático elevado, com algumas capacidades de comunicação e com um espírito curioso marcado por uma vontade conhecer mais. A par disto, normalmente são mulheres com alguma capacidade financeira para viajar ou com um plano que torne viável estas viagens, como trabalharem nos locais de destino de forma intercalada permitindo-lhes assim explorar os locais desejados”, explica Filipa Jardim da Silva, Psicóloga Clínica da Oficina de Psicologia.

Miriam Augusto tinha 30 anos quando, tal como Patrícia, decidiu partir sem companhia. O destino? A Indonésia. A estadia? Dois meses.

“Já viajo desde os 8 anos. No entanto, aquilo que motivou esta viagem em particular, o ir sozinha, foi a passagem por um período muito difícil a nível pessoal. Chegou aquele momento em que senti que tinha de ir sozinha, veio cá de dentro. Por vezes partilhava as minhas intenções com amigos e alguns até diziam que se calhar iam comigo. No entanto, embora não lhes dissesse diretamente, não queria a companhia deles, queria mesmo era ir sozinha. Estar comigo, surpreender-me, superar-me e acima de tudo reencontrar-me”, conta.
“São diversos os motivos que podem levar alguém a querer aventurar-se sozinho mundo fora. Ainda assim encontramos denominadores comuns na base destas decisões. A sensação de se estar preso numa rotina, com a vida a passar ao lado sem a conseguirmos agarrar, tende a gerar-nos insatisfação. Outras vezes o gatilho para a tomada de decisão de viajar sem amarras pode prender-se com conflitos conjugais ou familiares ou até mesmo com insucesso académico e/ou profissional. A sensação de desilusão face a outros ou face a si mesmo, pode gerar o impulso de afastamento. O afastamento físico pode ajudar a uma mais rápida cicatrização emocional face a acontecimentos dolorosos pelo que a mudança de cenário surge como uma possibilidade de recuperar da dor”, acrescenta a psicóloga Filipa Jardim da Silva.

Miriam, tal como Patrícia, foi sem medos na bagagem. Estava super decidida e mesmo na viagem seguinte não tive quaisquer receios. É certo que sendo mulheres estamos mais expostas e vulneráveis a acontecimentos menos bons (e infelizmente há imensas histórias de estupro em viagem), mas é algo que nem me passa pela cabeça quando decido ir. Eventualmente se começamos a pensar muito naquilo que de mau nos pode acontecer, certamente que não saímos do lugar…ou mesmo de casa. Ainda assim passou por situações mais complicadas, como o dia em que foi assaltada.

“Quando voltei para o hostel por volta das 2 da manhã, quando ia tirar a chave apercebi-me de que tinha a bolsa aberta e faltava-me a carteira. Voltei ao local onde estava, na esperança de a encontrar pelo chão, mas nada. Fui à policia, mas mandaram-me para outro posto, onde acabei por ir só no dia seguinte apresentar queixa e onde me pediram 10 dólares para o fazer… Liguei para Portugal para cancelar os cartões todos, procurei ajuda junto do seguro que foi completamente inútil, tentei contactar a Embaixada Portuguesa em vão, tentei ir ao Consulado Português, que nunca existiu… Foram 2 ou 3 dias um pouco stressantes, sem grande apoio, afinal estava sozinha. Mas tudo se resolve”.
Foi uma viagem rica em experiências…Miriam que o diga. “O mais marcante de tudo foi a viagem interna que fiz, a um nível espiritual que acredito que só aquele país me poderia proporcionar. Acredito que não fui lá parar por acaso e no fim, o encontrar o amor! Algo que as viagens também nos podem proporcionar”, conta quem acabou por fazer das viagens profissão: aos 32 anos é CEO e líder de viagem de aventura na agência de viagens The Wanderlust.

Depois da Indonésia seguiram-se as Filipinas e várias as cidades europeias – tantas que nomeá-las ocuparia muitas linhas. Diz que uma viajante solitária é “curiosa, irrequieta, livre e feliz”. Mas também diz que ninguém deve ‘forçar a barra’.

“Quando as viagens solitárias são forçadas duram pouco tempo. Já conheci mulheres na estrada que ao fim de uma semana voltaram para casa. Quando for a hora de partirem sozinhas, elas vão senti-lo dentro delas. Uma espécie de chamamento e aí sim, não devem hesitar nem um pouco. Esse é o momento em que se vão sentir confiantes e preparadas para lidar com a “brutalidade” que é viajar”.