Eline Snel: “Gostaria que o mindfulness fosse uma disciplina como a Matemática ou Geografia”

Eline Snel tem 65 anos, pratica e ensina o mindfullness a crianças, adolescentes e adultos e acaba de editar em Portugal um livro sobre esta técnica para miúdos a partir dos cinco anos [Senta-te Quietinho como uma Rã] e sempre com as famílias por perto.

Esta especialista holandesa revela que a descoberta que fez aos 10 anos foi a que a ajudou, décadas depois, a superar dois melanomas e a ajudar o marido aquando de um transplante de rim e uma filha que teve uma recém-nascida com um tumor cerebral.

Hoje, a trabalhar em escolas, mas também a dar formação, Eline Snel alerta para os perigos da competitividade, do stress e da solidão online. Fatores, explica ao Delas.pt, que estão a atirar crianças para o burnout e adolescentes para a depressão. Uma conversa na qual pede para que o treino da mente passe a ser uma disciplina nas escola: tão importante como a matemática ou a geografia.

Um relato que não terminou sem antes Eline Snel deixar um exercício para que todos – miúdos e graúdos – pudessem fazer em qualquer momento, em qualquer lado, como pode ver no vídeo abaixo.

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Lança este livro Senta-te Quietinho como Uma Rã, pensado para crianças a partir dos cinco anos. Qual a idade mínima para fazer mindfulness numa criança?
Quando queremos ensinar aos miúdos algo sobre consciência, é preciso que tenham autoconsciência e, por isso, começar nos quatro ou cinco anos. Quando eles começam a falar do que sentem, aí começamos a trabalhar a partir dos quatro anos. Antes desse momento, não é tão fácil treinar estas capacidades. Perante isto, o trabalho é feito mais com os pais e de como podem viver de forma mais mindfulness com os seus filhos, aplicando a técnicas que passam, por exemplo, por não estar tanto tempo ou fazer tarefas com eles quando estão aos telemóveis.

Quais os maiores erros e os mais comum que os pais mais cometem, para lá do que acabou de referiu?
A maioria das vezes tem a ver com as reações automáticas que os pais têm para com as crianças, quando elas não prestam atenção, fazem birras, e aí os progenitores reagem automaticamente. A questão da voz, a forma como se fala, os gritos – e os miúdos gritam de volta -, é preciso evitar uma escalada e uma crise. Assim, ensinamos pais e crianças a sentirem, em primeiro lugar, a lidarem com a frustração, a tomarem consciência sobre o que são os seus pensamentos antes de reagirem. É importante parar por um momento.

Faz isto desde os anos 80, que diferenças nota nos pais e nos filhos ao longo destes anos de trabalho?

Há uma enorme diferença nos últimos 20 anos. A velocidade da vida é muito mais alta, o que todos têm e devem alcançar é muito maior. Antes, tudo era mais descontraído e não existiam, constantemente, as solicitações constantes do mundo online. Tudo isso consome muito tempo e deixa todos muito cansados.

Os pais estão preparados para fazer este abrandamento?
Como tudo está online, hoje em dia os pais têm muito mais dúvidas sobre o que é a parentalidade, muito mais do que há 20 anos, quando havia apenas um livro de referência (risos).

Os pais procuram-na antes das crises, ou procuram quando já está instalada?
A maioria dos pais vem porque querem ser diferentes, logo desde o início. Querem também dar aos seus filhos uma educação sábia, em que eles crescem num bem-estar familiar, procuram ser uma família que consegue viver com os altos e baixos.

“[Os pais] Querem também dar aos seus filhos uma educação sábia, em que eles crescem num bem-estar familiar”

Mas eles procuram-na sobretudo porque querem maior bem-estar ou porque desesperam por uns momentos de calmaria?
Ambos (risos). Talvez a última em primeiro lugar (mais risos), Muitos pais deixam os seus filhos nas aulas de mindfulness e dizem: tome conta do meu filho para que se comporte, aprenda, para que se concentre melhor. ‘E numa hora regresso’, dizem.

O que lhes diz?
Temos sempre um encontro com os pais, vincamos que as crianças precisam de apoio, e que isso não é apenas um fator que gira à volta da criança. O mindfulness é sobre relações a ter com os filhos. E, para ter uma, é preciso prestar atenção às coisas dos filhos, aos seus sentimentos, às suas ansiedades. Pedimos aos pais que arranjem cinco minutos diários com os filhos e que não lhes deem apenas os ficheiros audio enquanto os encaminham para os seus quartos, sozinhos.

Tem de dizer isso muitas vezes aos pais?
Frequentemente. Precisamos de o repetir cerca de três vezes ao longo de sessões de oito semanas. São muitas vezes, sim. Às vezes, parece que tenho uma espécie de varinha de condão e que farei o milagre. Mas o mindfulness não é sobre a resolução de problemas, é sobre a necessidade de prestar atenção, estar mais consciente das funções, do pensamento e dos sentimentos e de como o corpo reage a tudo isso.

É possível ter miúdos mais concertados e autoconscientes quando as crianças têm cada vez mais estímulos. E, mesmo na alimentação, ingerem substâncias tão agitadoras como o açúcar, por exemplo?
Não somos cavaleiros moralistas. Não falamos sobre isso, apenas pedimos atenção aos pais.

Mas ajudaria se as famílias pudessem gerir a ingestão desses agitadores?
Sim, mas também há a carne e tudo o resto. Não é por aqui que o mindfulness quer ensinar, a técnica procura a autoconsciência. Esta levará a todo o lado e até ao que é ingerido. Mas isso acontece pela via do mindfulness, não porque abordemos esses temas.

Como acalmar e concentrar as crianças para depois poderem fazer mindfulness?
Ensinar a autoconsciência aos pais e a forma como educam depois os seus filhos vai levar a uma maior consciência sobre o que é dado às crianças e a um melhor entendimento sobre o que deve ser feito e dado aos mais pequenos. Isto porque muitos pais confrontam-se com a dificuldade em dizer não, a estabelecer ordens. Receiam que os filhos fiquem zangados e não saibam lidar com isso.

Sabemos que a técnica procura também o contacto com o que nos rodeia, a natureza, o universo. Nesse sentido, não está em risco tendo em conta o medo crescente que os pais têm de tudo sobre o mundo fora de casa?
O mindfulness é sobre o medo dentro e o medo fora. É lidar com o medo como sentimento. Muitos pais estão inseguros acerca de si próprios ou temem que não são suficientemente bons pais, mas também têm o medo do que acontece fora de casa. Mas o medo é sempre o mesmo: é medo! Trata-se de um sentimento muito forte, talvez o maior que possamos ter, e é muito comum quando se pensa no futuro. Creio que o mindfulness é uma ferramenta que ajuda a lidar com isso.

“O medo é sempre o mesmo: é medo! Trata-se de um sentimento muito forte, talvez o maior que possamos ter”

E nas escolas, como se trabalha a técnica?
Aí, os miúdos aprendem que um mesmo tamanho tem de servir para todos. As mesmas coisas, ao mesmo ritmo, a mesma avaliação, mas o mindfullness ensina de uma outra forma: eles são completamente livres de aprenderem o que precisam, seja a ficar menos zangado, a ser mais concentrar, seja a memorizar melhor ou até a ser mais gentil.

Que tipo de reações recebe dos professores, nas escolas?
Na Holanda, o mindfulness está a chegar cada vez mais às escolas e o governo está cada vez mais alerta para esta necessidade, assim como os médicos. Os ecos que recebemos é que as crianças com mentes menos stressadas aprendem, planeiam, organizam-se melhor, memorizam, equilibram melhor as suas emoções. Sobre o que ouvimos dos professores, o stress não desaparece, mas a sua experiência em lidar com ele é muito mais pacífica. Sentem-se inclusivamente menos cansados ao fim de um dia, estão mais capazes de viver o momento e estão em maior contacto com as crianças.

Quais são as maiores preocupações de pais de crianças de cinco, 10 ou 15 anos quando a procuram?
Muitos pais chegam com os filhos quando notam falta de concentração, distração – não estarem sentados por um segundo na mesa -, falta de sono. Há muitos miúdos que dormem muito mal. Eles estão a ruminar, pensam que não são bons, inteligentes ou desportivos o suficiente. Os objetivos que colocamos hoje em dia nas crianças são enormes. Recentemente, na Holanda, as notícias deram conta de que a mais nova criança a ter um burnout tinha apenas dez anos. No que diz respeito aos adolescentes, eles próprios procuram e reportam o medo de falhar, é quase sempre sobre a escola. Querem ser bem sucedidos, não são magros, rápidos, inteligentes o suficiente. Nessa perspetiva, é quase semelhante, mas aqui tudo isto chega com um fator de depressão.

E por género, nota diferenças?
Aí não notamos tanto.

Como falou de magreza…
Sim, mas é transversal. Talvez as raparigas cheguem mais cedo ao mindfulness e muitas vezes pelo seu próprio pé. Talvez porque leem mais revistas femininas, onde estes temas são abordados, e acabem por estar mais despertas. Os rapazes vêm mais frequentemente encaminhados pelos pais. Talvez porque as meninas leiam mais revistas femininas, onde estes temas são abordados, e acabem por estar mais despertas.

Está a procurar trabalhar com adolescentes em escolas. Que diferenças nota entre aqueles que fizeram mindfulness em pequenos e os que começaram na adolescência?
Quando começam e têm 13 a 15 anos, eles chegam já a sofrer imenso com a ansiedade e depressão. Falamos de já uma grande quantidade de adolescentes e que está a aumentar em 20%, creio, nos últimos cinco anos.

“Quando começam e têm 13 a 15 anos, eles chegam já a sofrer imenso com a ansiedade e depressão”

E isso decorre de quê, tendo em conta a sua experiência?
Vem muito do facto de se sentirem sós num mundo digital, sem contacto direto. Os adolescentes que o fazem pela primeira vez, estão mesmo a sofrer. Alguns têm pais divorciados, andam de casa em casa a cada semana, e muito dificilmente falam disso. E essa é a grande diferença entre os mais novos e os mais velhos, estes raramente falam sobre o que vivem. Os mais pequenos, quando se lhes pergunta alguma coisa, respondem sempre algo.

Quando um filho de pais separados faz mindfulness, todos devem fazer?
O mindfulness apenas pode ser feito quando se tem um comprometimento pessoal consigo próprio, é só entre um e cada qual, não tem a ver com os outros. As pessoas sobreviverão se não fizerem mindfulness, mas um dia, quando forem pais, precisarão dele de qualquer forma. Agora, é muito melhor para todos se todos praticarem até porque, depois do curso, existem os debates em casa. E meditar em conjunto é muito mais fácil do que fazê-lo sozinho.

As crianças devem ter alguma preparação antes de começar o treino?
Não. Quando estamos em grupos privados e fazemos entrevistas, procuramos saber o que querem que os filhos aprendam. A maioria diz que quer lidar melhor com a raiva, dormir melhor, ficar mais sossegado. Nas escolas, não fazemos entrevistas aos pais, cada criança tem acesso à formação e traz a suas próprias questões.

Se pudesse mudar a sociedade em matéria de mindfulness por onde começaria: crianças, pais, escolas?
Gostaria que o mindfulness fosse uma disciplina como a matemática ou geografia, que integrasse os currículos nas escolas. É uma aprendizagem, uma ferramenta mental. Tal como treinamos o nosso corpo, nunca pensamos em como treinar a mente ou o nosso coração. Esta sociedade autocentrada já não está a funcionar mais, está a pior porque não se trata apenas de mim. Mindfulness é ter uma relação connosco, mas também com o vizinho, com o mundo, com a natureza, o universo. Não é apenas sobre mim. Toda a gente está a o sofrer o mesmo da mesma maneira: a solidão, a dor.

Como descobriu o mindfulness, qual foi o caminho da Eline?
É uma longa história (risos). Quando tinha dez anos, estava esquiar com a minha família e parti a perna nos primeiros cinco minutos das férias. Tive de ir para o hospital, ser operada, mas a minha família estava a três horas de viagem do hospital e não podia ir ver-me todos os dias. Senti-me muito só. Oposta à minha cama estava uma pintura do rato Mickey, que estava com uma cara muito feliz. Descobri que os meus sentimentos mudavam quando olhava para aquela imagem. Esta foi a primeira vez que senti que eu não era os meus sentimentos.

“A Eline não era o seus sentimentos”, como assim?
Podia trabalhá-los. Foi o início da minha descoberta, que comecei por fazer sozinha, sem professores, gurus, nada. Decidi começar a ler e, dos 16 aos 25 anos, comecei a meditar e a descobrir por mim própria o que era aquilo. Foi um período mito interessante. Entretanto, tornei-me enfermeira, trabalhei no hospital e percebi que este tipo de instituições são as que gerem mais stress, sobretudo para os doentes. Quando era dito a alguém que tinha cancro e que ia morrer, não havia ninguém que os ajudasse a gerir esses medos. Foi aqui que comecei a usar a meditação e mindfulness a pessoas que sofriam de stress. Tinha 25 anos. Hoje tenho 65 anos e continuo a fazê-lo (risos). Eu própria tive, por duas vezes, cancro – melanoma -, a minha neta teve um tumor cerebral quando nasceu, o meu marido fez recentemente um transplante de rins. E tudo em três anos.

Como geriu?
Tive, eu própria, muitas experiências. Portanto, consigo perceber o que outras pessoas podem sentir. Mas a maior coisa que se pode aprender é que quando focamos o aqui e o agora e não prestamos atenção a todas as coisas que poderão acontecer – e que provavelmente nunca irão acontecer – essa é a lição número um. Geri tudo isto momento a momento, sentir o que tenho e não aquilo que gostava.

E nunca teve o medo?
Tive os meus medos, claro. Até porque isso faz parte da condição humana. Mas procurei centrar-me no momento, e teria sido muito mais complicado se não tivesse treinado a minha mente. A duração de tudo acaba por ser muito mais curta. É claro que hoje em dia tenho de controlar a questão do cancro, faço-o há anos, mas não tenho medo dos exames de rotina porque percebo que não sei o que se vai passar. A única conclusão a que chego é que não sei que resultados vou ter, portanto é escusado estar angustiada. Simplesmente, não sei! Então, lembro-me que uma das vezes, durante esse compasso de espera, comprei-me um belo par de óculos de sol (risos). Tudo isto leva o seu tempo. O mindfulness não é um truque, é um caminho, é uma forma de vida e só temos acesso a ele quando o praticamos. Não precisamos de treinar durante um dia inteiro, mas deve ser prosseguido diariamente.

“Tive os meus medos, claro. Até porque isso faz parte da condição humana. Mas procurei centrar-me no momento”

Durante as fases mais complicadas, o que disse ao seu marido? Ou à sua filha? Como os levou?
Não os posso levar, só me posso levar a mim. Se eu estiver bem, eles sentem-se mais confortáveis com eles próprios, mais relaxados. É isso que acontece nas formações que dou e nas famílias que praticam o mindfulness. É como se fosse uma luz que existe por se estar ali. Quando se vive a momento a momento, isso é muito energético.

Imagem de destaque: Gerardo Santos/ Global Imagens

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