Elza Soares: “Eu já nasci feminista, a lutar pelos direitos das mulheres”

Dois anos depois de percorrer Portugal com os temas do seu 33.º álbum A Mulher do Fim do Mundo – considerado o Melhor do Ano pelo New York Times -, Elza Soares está de volta com mais canções sobre o empoderamento feminino, mas também com outros temas que nem todos se atrevem a cantar – racismo, intolerância, violência e sexo.

Deus é Mulher é o nome do mais recente disco, lançado no ano passado, e que será agora interpretado ao vivo no Capitólio. O concerto está marcado apenas para dia 17 de julho, em Lisboa, no entanto Elza Soares falou antecipadamente com o Delas.pt por telefone.

Em entrevista, a artista brasileira com mais de 80 anos mostra-se sem papas na língua, direta e ousada, fiel à sua própria personalidade. Nada menos se esperava da mulher carioca que, aos 13 anos, respondeu ao compositor Ary Barroso que vinha do Planeta Fome.

Teve sete filhos, perdeu quatro, e o seu percurso musical não esconde as provações por que passou. Ao Delas.pt, Elsa fala sobre o novo álbum, a sua inspiração e uma nova biografia, que será apresentada em Portugal no dia 16. Não fala da idade – estima-se que tenha entre 82 a 87 anos – porque “não tem idade”. Mas tem energia de sobra para pisar os palcos.

Vem a Portugal apresentar o seu mais recente álbum, Deus é Mulher. O que a levou a escolher esse título?
Eu digo que Deus é tudo, é força, é mãe. Deus é mulher, pela paciência de aguentar este povo, este mundo. Por isso é que eu digo que Deus é mulher.

Já no seu álbum de 2015, Mulher do Fim do Mundo, o sexo feminino surgia como inspiração. Este Deus é Mulher é uma continuação do trabalho anterior?
Eu gostei muito desse trabalho, mas este é diferente. Deus é Mulher é um álbum em que posso falar mais sobre os problemas da mulher, que ainda sofre muito nas mãos dos homens. Eu luto muito pela mulher.

Vai querer lançar um terceiro álbum e fazer uma trilogia sobre esta temática?
Não. Estou a preparar um trabalho muito forte para o futuro, mas mais focado na falta de consciencialização do povo. Nós temos que acordar, temos de reagir, está toda a gente a dormir. Claro que também irei falar das mulheres, mas vou focar-me noutro tipo de temas. Eu espero, sobretudo, que a minha voz tenha eco.

Qual é a sua mensagem enquanto artista?
É a das mulheres. Falo sobre a cobardia e sobre a agressão que existe para com as mulheres. A mulher ainda sofre muito com violência doméstica. Não só no Brasil, mas no mundo. Eu falo sobre a minha perspetiva, sobre a minha terra, mas este é um problema universal. E acho que esta mudança também depende da mulher. Eu gosto de mulheres que se respeitam, que vão à luta.

Desde o início do ano que, em Portugal, já morreram mais de 15 mulheres por violência doméstica. O que diria às vítimas que sofrem com estes abusos?
A violência doméstica é um cancro, eu fico chocada. Digo para denunciarem. É horrível, mas não podemos ficar caladas. Eu tenho uma música no meu penúltimo álbum A Mulher do Fim do Mundo, que é a Maria Matilde da Vila, em que canto ‘Cadê meu celular? Vou entregar teu Nome’. É preciso denunciar. Já tive situações em concertos, em que mulheres vieram agradecer-me pelas mensagens de empoderamento feminino. Uma vez tive um concerto numa cidade e cruzei-me com uma mulher que tinha sido abusada pelo marido, uma situação muito grave. Quando voltei, ela já estava separada, era outra mulher. Tudo porque ouviu a mensagem.

Considera-se feminista?
Eu já nasci feminista, a lutar pelos direitos das mulheres. Sou feminista pela minha mãe, por mim. Para mim ser feminista é brigar, é lutar. Faço isso através da minha música e da minha fala e, embora ache que as novas gerações já estão muito mais conscientes, há muito trabalho a fazer.

Quem foi o seu Deus-Mulher?
Foi a minha mãe. Ela foi uma mulher que teve seis filhos, lavou muita roupa, passou muitas necessidades, ela foi tudo. Foi, sem dúvida, o meu Deus-Mulher. Foi muito guerreira, uma mulher de luta que procurou sempre melhorar a nossa vida. E ensinou-me a ser uma mulher digna.

Ainda se lembra da primeira vez que cantou em público?
Eu cantava desde muito pequena com o meu pai, ele tocava violão e eu cantava. Tive o meu primeiro filho com apenas 13 anos. Não tinha dinheiro e trabalhava numa fabrica de sabão, mas havia um programa na rádio com o Ary Barroso. Inscrevi-me e fui cantar. Fui muito humilhada porque ia mal vestida, mal calçada e mal penteada. E ele perguntou-me de que planeta vinha eu. Eu respondi-lhe: ‘Do mesmo que o seu, senhor Ary’. Quando ele me perguntou que planeta era esse, eu disse apenas ‘Do Planeta Fome’. E assim foi, eu cantei, fui super elogiada e recebi nota máxima.

Neste álbum mistura sonoridades como rap, samba, bossa e eletrónica. Como o descreveria?
Eu gosto muito de juntar sonoridades, de misturar eletrónica com rock. Gosto de sons fortes e de temas fortes. Gosto muito do Banho, em que falo sobre a sexualidade da mulher, e da letra do Meu País é Meu Lugar de Fala. Acho que álbum é muito cru.

Fala muito sobre racismo nos seus álbuns. Foi uma injustiça que viveu diretamente?
Claro que sim, lidei muito com preconceito. É por isso que eu falo tanto das mulheres, especialmente das mulheres negras. Falo muito do racismo e da homofobia, da cultura, do respeito e da tolerância. Ainda é difícil ser uma mulher negra no mundo. Assusta-me muito ver certos governos a caminharem para o racismo. Eu já vi e vivi muita coisa, por isso só posso ter esperança e acreditar em dias melhores. A minha experiência ensinou-me que só podemos ter respeito e sermos tolerantes com os outros.

Os artistas têm responsabilidade social de falar sobre estes temas difíceis?
Sim, é por isso que continuo a cantar temas tão duros. O artista tem que denunciar os problemas do povo. Continuo a lutar, a gritar e a falar para que as pessoas possam ouvir a minha mensagem.

O seu percurso teve momentos muito difíceis, dos quais fala publicamente, como a perda dos seus filhos, a violência que sofreu com o seu ex-marido [Garrincha]. A música foi a salvação?
Sem dúvida, a música foi a minha salvação. A minha biografia vai ser lançada dia 16 em Lisboa e conta muito a minha história. Mostra quem eu sou, como sou e porque sou. Foi escrita por Zeca Camargo, um grande jornalista e escritor. Já nos conhecíamos há muito tempo e avançámos com a biografia que foi publicada no Brasil, no ano passado.

A biografia acompanha toda a sua história desde a infância?
Sim, fala também da minha infância e de vários períodos difíceis, da miséria e da fome. Começa desde que eu era criança, no bairro do Padre Miguel, no Rio de Janeiro. Curiosamente, no próximo Carnaval vou ser o tema de uma grande escola de samba do Brasil chamada Padre Miguel.

Fala de sexo mais abertamente nas suas músicas do que jovens de 20 anos. É preciso falarmos mais de sexo?
É um tabu imenso ainda, mas é preciso falar mais. Sexo é um assunto sério. Vamos falar de sexo e de sexo em todas as idades. E porque não, se estamos bem? Sexo é um alimento para o corpo, o corpo necessita de sexo. Tenho orgulho de falar assim deste tabu.

Vê-se a trabalhar em música por mais uns anos?
Sim, vou cantar até ao fim. A música é parte de mim.

 

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