M’Barka, uma mulher que luta pela valorização do trabalho feminino

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(Fotografia Constantino Leite)
(Fotografia Constantino Leite)

M’Barka tem perto dos 50 anos. Pertence ao crescente grupo de mulheres que luta pela valorização do seu próprio trabalho, no meio rural marroquino. Fá-lo presidindo uma cooperativa feminina, numa pequena povoação perto de Foum Zguid, província de Tata.

A generalidade das mulheres que vive nas áreas rurais de Marrocos não só enfrenta os desafios colocados por uma sociedade dominada por homens, como tem de ultrapassar, nas zonas mais remotas, as dificuldades impostas pela inexistência de infraestruturas básicas e pela austeridade das condições meteorológicas.

Sem remuneração, elas desempenham tarefas agrícolas e pecuárias, são responsáveis por todos os afazeres domésticos e cuidam dos filhos. Foi esta a realidade que tantas vezes testemunhámos durante uma viagem de quase oito mil quilómetros, percorridos de autocaravana, no início deste ano, por Marrocos.

Mas esta já não é a realidade de M’Barka. É mulher, é presidente de uma cooperativa feminina criada numa aldeia perto de Foum Zguid, a cerca de 170 quilómetros a sul de Ouarzazate. O único idioma que conhece é o seu, marroquino, mas isso não a impede de representar e defender o artesanato de Marrocos, especialmente o daquela região, junto de todas as nacionalidades que vai conhecendo.

A casa de M’Barka ergue-se junto ao edifício da cooperativa onde estão expostos alguns tapetes produzidos pelas mulheres da aldeia. A grande maioria tem um tear em casa, rústico, simples, de madeira, que serve a sua função: produzir tapetes, mantas, capas de almofadas…

São também elas que sobem os montes para colher a henna que, depois de seca, é reduzida a pó. Misturada com água, vira uma pasta com a qual pintam desenhos nas mãos e nos pés em dias de festa. O espaço ocupado pela cooperativa não é grande, mas suficiente para acolher as dezenas de peças que ali são comercializadas.

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(Fotografia Constantino Leite)

Sobre os tapetes no chão, e com os pés descalços, sentámo-nos a conversar com as mãos e com a ajuda do filho mais novo que fala um pouco de francês. Ali, ela explicou o processo de fabrico do que vende, mostrando algumas das matérias-primas que são utilizadas pela comunidade. Três horas depois, porque conversar com as mãos é um exercício não só de criatividade mas, sobretudo, de paciência – convidou-nos para jantar em sua casa, ali mesmo ao lado. A família vive numa divisão, grande e desprovida de mobiliário: no chão, os tapetes sobrepostos fazem a vez de sofá e de cama, de mesa de jantar e de cadeiras. M’Barka vive com o marido, com o filho mais novo, de 15 anos, com uma das filhas, de 23 anos, e uma neta. Mas esta casa tem já os dias contados.

Junto à cooperativa, uma outra com várias divisões está a ser construída pelo marido. Haverá quartos para todos, uma cozinha e uma casa de banho, duas salas, uma para as senhoras e outra para os senhores quando toda a família ali se puder reunir.

M’Barka mostrou-nos a futura habitação com o orgulho de quem levanta um troféu. Pode dizer-se que este ‘troféu’ está ainda a ser conquistado com a ajuda da cooperativa gerida por esta mulher empreendedora que aproveitou todas as oportunidades, durante a nossa conversa, para perceber como poderia mostrar em Portugal as artes tecidas pelas mulheres daquela aldeia.

Ao serviço das mulheres analfabetas e com poucos recursos
Sobretudo no meio rural, e apesar de a escolarização ter aumentado cerca de 30% desde 2004 (junto da população entre os 7 e os 12 anos), o analfabetismo continua a ser um dos problemas da população feminina adulta que luta para ver o seu trabalho valorizado, por remuneração, inclusão e poder de decisão.

Até 2014, as cooperativas femininas em Marrocos geraram mais de 32 mil postos de trabalho, número que perde alguma significância quando comparado com o total de mulheres (mais de 350 mil) em idade ativa sem trabalho remunerado. No entanto, o número de cooperativas femininas tem vindo a aumentar, sendo que muitas vezes o desafio destas mulheres é ter acesso ao dinheiro das vendas dos produtos que, em alguns casos, é gerido pelos homens da família. Seja como for, é certo que elas estão a conseguir conquistar, passo a passo, a liderança na melhoria das condições de vida no meio rural.

Por todo o país prolifera, sobretudo desde os anos 90, este modelo de organização e de negócio cujo objetivo inicial não passava tanto pela capacitação e promoção da independência financeira das mulheres. À data, como, aliás, ainda hoje, havia a necessidade de sensibilizar os atores que trabalhavam o argão, chamado ‘ouro marroquino’, para a sustentabilidade da produção. Ou melhor, as ‘atrizes’! Porque eram, e são, as mulheres a colher e transformar o fruto em óleo, enquanto aos homens cabe a tarefa das vendas. As medidas protecionistas adotadas passaram então por alertar para a riqueza deste património, para a sua preservação e valorização. A árvore do argão tem galhos espinhosos e um sistema radicular que a ajuda a resistir a longos períodos de seca; as folhas e frutos são consumidos por cabras e camelos; a madeira é utilizada como combustível e o óleo, produzido a partir dos frutos, é usado na culinária marroquina e ainda para fins cosméticos.

De volta à casa de M’Barka, é hora de jantar. Com ela, cozinhámos tagine de frango com legumes e pão marroquino; comemos com as mãos usando o pão como talher; sentados no chão, aprendemos sobre a arte da partilha e da resiliência. O marido não participou, porque é ela a protagonista da história. Da sua própria história.