Escritora Dulce Garcia no Conversa Delas

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Dulce Garcia tem 47 anos. É jornalista, editora e romancista. Acaba de regressar da Hungria, do 18º festival ‘Primeiro Romance’, de Budapeste, com o livro Quando perdes tudo não tens pressa para ir a lado nenhum.

Dulce Garcia, que festival foi este? Que convite foi este?
Foi um convite muito inesperado. Todos os anos, o Instituto Camões, em Budapeste, seleciona um novo romancista – portanto, tem que ser o primeiro romance de alguém – e convida-o para ir a Budapeste participar neste festival, que também tem escritores consagrados, um pouco de toda a Europa.

Quem é que estava na mesa do ‘Primeiro Romance’?

Estava muita gente, sobretudo mulheres. Estava uma polaca, uma dinamarquesa que, curiosamente, achei muita graça – faz os discursos para o primeiro-ministro -, estava uma norueguesa, uma croata, uma romena, dois húngaros, alguém da Lituânia… Muito variado.

A perceção com que veio é a de que há mais mulheres a escrever, neste momento, do que homens?

Acho que há mais mulheres a serem reconhecidas, sem dúvida. Não sei se há mais mulheres a escrever, o que eu sei é que já são mais valorizadas e talvez aquilo que elas tenham para dizer, nos seus livros, faça a diferença. Sendo a literatura um terreno tão masculino, a sua forma de escrever talvez seja mais marcante ou rompa um bocadinho com os cânones mais ou menos estabelecidos.

Há diferenças entre a literatura produzida por homens e a literatura produzida por mulheres?

Isso foi uma questão discutida lá, precisamente por haver tantas mulheres sentadas na mesa. Claro que os homens dizem que sim. Eu acho que não. Acho que há homens que, supostamente, escrevem como mulheres, o que quer que isso seja. Ou seja, têm uma escrita, se calhar, mais interior e que começa mais dentro da sua casa e da sua cabeça. E depois, há homens que escrevem, supostamente, como homens, que tendem mais a descrever o ambiente que está ao seu redor e depois o impacto que isso possa ter no seu pensamento, na sua ação…

Nessas mesas de discussão refletia-se esse tipo de pensamento? Essa quase posição polarizada entre homens e mulheres? Os homens a dizer que escreviam diferente e as mulheres a dizerem que não?

Não se refletia porque a mesa onde mais se discutiu isto, propositadamente e um bocadinho provocadoramente, era uma mesa só de mulheres e dirigida por uma senhora muito interessante, que é uma professora de literatura lá, uma grande apreciadora e estudiosa da obra de Clarice Lispector. Então ela fez esta pergunta e muitas das escritoras que lá estavam disseram que, embora haja mais mulheres a escrever e a ganhar prémios, é como se de repente, também a literatura, passasse a não ser tão interessante porque talvez aquilo que as mulheres escrevam não tenha assim tanta importância.

“Acho que há mais mulheres a serem reconhecidas, sem dúvida. Não sei se há mais mulheres a escrever.”

A Dulce, seguramente, não tem essa opinião. Por que é que a Dulce, que é jornalista desde 1991, começou o ano passado, em 2017, a escrever um romance?

Na verdade, eu sempre quis escrever. Eu não sou de Lisboa, sou de uma vila pequena perto de Lisboa, que hoje é muitíssimo perto mas que antes não era porque não existia uma ponte. Havia muito pouca oferta cultural e, portanto, o que acontece é que eu cresci muito sozinha, embora tenha duas irmãs, mas não vivíamos todas no mesmo sítio. E o que acontece é que eu descubro a biblioteca. Aprendi a ler antes de ir para a escola, porque naquela altura só se entrava com 7 anos, e eu fazia anos mais tarde. Quando descobri a biblioteca a minha vida mudou completamente. E eu acho que desde então percebi que queria escrever. Só que como era assim um bocadito esperta percebi rapidamente que não ia conseguir viver a escrever. E então lembro-me de ter para aí uns dez ou onze anos e de pensar, “o que eu gostava mesmo de fazer era ser editora”. Mas, quer dizer, isto em 1980 e fora de Lisboa era assim uma coisa um bocado estranha.

Mas era a perspetiva de “ser paga para ler mais livros”?

Sim, exatamente. Era isso mesmo. Depois, quando chegou a altura de escolher um curso, pensei, “o que é que eu vou fazer para escrever e pagarem-me”, para poder pagar a renda, as contas, etc. Acabei por escolher jornalismo por causa disso. Lembro-me perfeitamente da primeira revista onde trabalhei, que era de economia. Eu estava no segundo ano da faculdade e a minha primeira editora, no meu primeiro texto, sobre “Recuperação económica de uma empresa de Setúbal”, chamou-me e disse-me: “Isto não é um romance”. E tinha o texto riscado com uma cruz vermelha. Portanto, eu acho que sempre quis escrever romances. Fui um bocadinho parar ao jornalismo.

Como é que se faz essa adaptação da vontade de escrever romances para depois ter que obedecer a regras específicas de construção de um texto jornalístico?

Trabalhei apenas num jornal económico, que era o ‘Diário Económico’, e lembro-me que o diretor da altura, às vezes, obviamente na brincadeira, mas não sei se era também a puxar um bocadinho nas orelhas, dizia-me: “nota-se sempre quando és tu a escrever”. Eu acho que, embora tivesse que obedecer ali a algumas regras, tentava sempre furar ali o esquema.

Em todo o caso, a Dulce Garcia chega a editora. Segundo o discurso que acaba de ter, parece que não era tão boa como jornalista e era.

Sim, numa vertente. Ou seja, as notícias, que eu respeito imenso e tenho muita admiração por esse lado do jornalismo, que é fundamental para a democracia, não eram a minha praia, digamos. Aquilo que eu sempre gostei de fazer foram reportagens e grandes entrevistas, porque isso permitia-me, de facto, da minha observação das pessoas, fazer algo mais do que uma nota informativa ou uma coisa fria. [Mas] Trabalhei sempre em meios que davam oportunidade a uma escrita mais “contemplativa”.

Que trabalhos é que se recorda de fazer que a marcaram, nessa altura, enquanto jornalista?

Lembro-me de uma reportagem que gostei muito de fazer, e deve ter sido a minha primeira reportagem que foi para a revista ‘Valor’, que já não existe. Na altura era do grupo do ‘Independente’, etc. Foi um tema sobre a Madeira e era uma coisa chamada, “Esta ilha não é um jardim”, sobre os “meninos das caixinhas” na Madeira, sobre pedofilia, sobre prostituição infantil. Nesse trabalho, claramente, eu senti-me apaixonada pelo jornalismo. Percebi que não era só uma forma de manter as pessoas informadas, era muito mais do que isso.

No entanto, neste livro que escreveu, o retrato que faz dos jornalistas não é muito simpático. No primeiro capítulo do livro, aparece uma jornalista com algumas características especiais, que incomodam a protagonista.

Sim, é um bocadinho irónico porque, entretanto, eu passei os últimos anos da minha vida – fui jornalista durante 26 anos – a perceber que toda a gente diz mal dos jornalistas. Então nos últimos 15, 16 anos parece uma raça a abater. Quis fazer uma ironia com isso. Na verdade é uma profissão muito difícil. É uma relação entre duas coisas muito complicadas de gerir, que são o poder e a opinião pública. Uma relação diplomática que, muitas vezes, é conflituosa, porque não se é muito valorizado em nenhuma das partes.

“O poder de veicular informação passou para as pessoas. Qualquer um pode ser produtor de informação.”

Qual é a razão para a nossa profissão estar tão desvalorizada aos olhos da opinião pública?

Penso que tem muito a ver com a questão da massificação da informação que não é informação jornalística. A questão é que o poder de veicular informação passou para as pessoas. Qualquer um pode ser produtor de informação. Nós sabemos que, muitas vezes, de uma forma completamente errada. Por isso é que há a construção das pseudo verdades e das proto verdades e das pós verdades. É como se a possibilidade em criar um mundo paralelo, andasse agora de mão dada com a realidade dos factos, que era algo muito valorizada no jornalismo e que, hoje em dia, está a ser completamente cilindrada, também por muita falta de investimento na comunicação social. E isto é uma pescadinha de rabo na boca porque as pessoas não leem. Quando as pessoas não leem, porque leem no Facebook coisas que muitas vezes são falsas, no compram jornais. Tanto os jornais, como as revistas e as televisões não têm investimento, logo pagam mal aos seus profissionais, logo vão buscar pessoas baratas e, portanto, isto acaba por ser um ciclo vicioso.

E há uma solução? A Dulce Garcia que trabalhou tantos anos em jornais, se mandasse, como é que se podia fazer um produto jornalístico que fosse relevante e lucrativo?

Não sei exatamente como é que isto poderá ser aplicado – e isso já não vai acontecer comigo como jornalista, seguramente, mas tenho a sensação que este é – sem ter a certeza se vamos baixar um bocado mais – o ponto zero e que a partir daqui vai fechar-se um ciclo. Ou seja, na verdade, no início do século, os jornais não eram um produto para todas as pessoas, não era um produto de massas. A ideia que eu tenho é que os jornais, as revistas, etc, os meios de informação vão ser reciclados. No sentido em que vão criar-se produtos de prestígio e bons produtos que terão de ser pagos, mas que vão informar uma certa parte da população. Não vai ser uma coisa tão democratizada assim, mas vamos voltar um bocadinho ao início do ciclo. Vamos voltar ao princípio do ciclo, ou seja, vamos criar produtos que tenham informação rigorosa, que são bem escritos e se calhar a internet servirá para difundir coisas mais populares e grátis, porque aí, também não sei muito bem como, é para onde se esta a dirigir a publicidade, embora o investimento seja cada vez menor. Mas é para aí que se está a dirigir o investimento. Portanto, com baixos ordenados, é possível manter alguma informação mais ou menos fiável. Os meios que procurarem uma investigação mais aprofundada vão ser um produto gourmet, digamos.

A Dulce Garcia escreve em 2017 este livro ‘Quando perdes tudo, não tens pressa de ir a lado nenhum’. Apesar de ser um romance, começa por ser baseado numa história real.

É verdade, aí é que eu fui apanhada. Tinha muito esta mania e agora também tenho, faço é links, guardo histórias que achava fascinantes. Embora tenha sempre querido escrever, com várias tentativas pelo meio, nomeadamente, uma história que eu escrevi quando tinha aí uns 19 anos, muitíssimo inspirada, que eu hoje penso que devia ser decalcada do Gabriel Garcia Marques, por quem eu tinha uma paixão assolapada. E esse livro desapareceu, porque eu entreguei-o a uma pessoa que entretanto teve uma aventura extra conjugal e nunca mais pôde voltar a casa e o livro ficou perdido nessa casa e também nunca mais voltei a ver essa pessoa. Fiz essa tentativa. Depois tentei publicar um livro de contos, que eu gosto muito de histórias pequenas, quando tinha aí uns 23 ou 24 anos, e que esteve quase para ser publicado, mas depois os contos não funcionavam. Então, andava há 20 anos com as pessoas a dizerem-me, “não, tu tens é de escrever um romance”. E eu achava que sim, mas acho que aquela nossa coragem/inconsciência se vai perdendo, que é “ok, eu quero escrever uma coisa, mas eu leio coisas tão boas. Porque é que eu vou escrever?”.

Há uma espécie de reverência em relação aos autores?

Há esse medo, não é? E depois a minha vida era louca também. Às vezes trabalhava 12 horas, 13 horas e depois tive filhos e é muito difícil escrever! Até que tropecei nesta história, desta mulher, que estava no aeroporto das Canárias, alemã. Era a mulher do saco. Vivia com um gato, mas na minha história não há gato. E eu pensei “é mesmo esta história que eu quero escrever”. Embora eu tenha tido a tentação de lá ir conhecê-la, mas depois decidi “não, isto não é jornalismo”, agora vou inventar uma vida à minha vontade.

Este livro tem vários truques. Num deles, já falámos, usa a ironia para retratar os jornalistas, colado à imagem que a opinião pública costuma ter. O outro é o retrato desta mulher, a protagonista, a Isabel, que começa por ser retratada como uma louca e, muitas vezes, o leitor é levado muitas vezes a acreditar que ela, para além de louca, é má. Porque é que desenha uma personagem que, afinal de contas, tem bom fundo e é a vítima das circunstâncias, como uma louca?

Bem, em primeiro lugar porque eu sou uma defensora dos desgraçados e ela é uma desgraçada por várias razões. Ela apaixona-se por um homem casado. Não importa nada que ele seja casada, não é? Ela é uma destruidora de lares, portanto, à primeira vista, ela é a vilã. Depois, porque existe aqui um tema muito presente no livro e que, eu acho que é uma coisa que eu penso muito “o que é isto da normalidade?”. Aliás, há um livro que tem um título fantástico, que se chama A Loucura da Normalidade.

De Arno Gruen?

Exatamente. Eu acho que, durante muitos anos, tive a sensação que eu não era muito normal porque me parecia que as minhas questões existenciais, que as minhas inquietações, a ansiedade… Tudo isso era uma coisa que me distinguia dos outros, no sentido em que as pessoas pareciam todas muito felizes e organizadas na vida. E depois comecei a perceber, com o avançar dos anos que, se calhar, eu estava a ver a questão ao contrário porque na realidade eu vivia muito mais de acordo com aquilo que eu sentia e pensava. E é, justamente, esse o tema da Loucura da Normalidade. Ele defende que, quanto mais existe um divórcio entre aquilo que se é e aquilo que se projeta, maior o risco de loucura. Então, eu percebi que, na verdade, eu sou muito normal. Mas a Isabel também é muito normal. Ela tem é um medo terrível de enlouquecer porque tem este irmão que enlouquece durante uma autópsia – esta história é verídica, não exatamente, mas é verídica.

Essa história do irmão da Isabel que serve também para retratar a Isabel como mulher potencialmente louca, como se a loucura corresse na família, esta história é real em que sentido? Aconteceu também a um estudante de medicina numa autópsia?

Sim, sim. Devia ter uma patologia qualquer, não sei, um desequilíbrio emocional. Era uma pessoa brilhante, interessantíssima, com quem se podia falar tudo e, a partir daí, as coisas começaram a sair fora do eixo. E, de facto, ele deixou de estudar e deixou de trabalhar e ficou aquele tipo de pessoa que se vê sempre nas vilas. E, portanto, a Isabel tem esta coisa ao seu lado e depois eu também tenho a sensação, e a Isabel sente isso, que quando não existe uma raiz muito forte do ponto de vista emocional – ou porque se teve uma infância complicada, ou quando alguma coisa correu mal – é como se a pessoa caminhasse coxa. Quando isso acontece há um medo muito grande de dar um passo em falso e cair. A fragilidade é muito maior. Porém, eu acho que esta consciência de que se pode enlouquecer assim de um momento para o outro também faz de nós muito sãos. As pessoas mais loucas não têm noção do que andam a fazer. Basta olhar para a maneira como o mundo está a ser governado e percebemos que há um nível de inconsciência brutal, porque se houvesse esse temor de dar um passo e estar a transgredir qualquer coisa… Quer dizer, para já, os EUA nem sequer tinham este presidente.

Mas, a Isabel, tem uma dificuldade em viver num mundo de acordo com as normas que estão estabelecidas. E a mulher de Afonso, a mulher legitima de Afonso, funciona como um contrabalanço, como um modelo da mulher extremosa, não demasiadamente bonita, não demasiadamente sensual mas filha de uma família, bem composta. Era preciso evidenciar tanto estes dois caráteres tão diferentes?

Acho que, na verdade, se virmos bem, a Isabel é casada com um homem que não é assim tão normal. Não preenche todas as quotas da família bem compostinha burguesa ou da classe média. O Afonso é casado com uma mulher que preenche essas quotas todas. Isto para dizer também o quê? Que ele é mais frágil do que ela. Ela, apesar de tudo, é uma mulher que arrisca mais, mas que acho que tem uma estrutura mais forte. A certa altura da sua vida, ele escolhe um lado. Ele também tem uma vida familiar desestruturada, não cresceu com os pais, e, portanto, precisa daquele conforto e daquele amparo. Ela, apesar de ter uma relação comum, tem um marido psicólogo e é um bocadinho diferente. Portanto, eu quis escavar esse fosso, sim, também para se perceber logo de início que ele, de raiz, escolheu definitivamente o conforto da normalidade, e ela não.

E há também a oposição entre, enfim, os pobres e os riscos. A Isabel vem de uma vila pequena, suburbana, cresce afastada dos bens de consumo culturais. E a mulher de Afonso vem de uma família que é retratada como rica. Porque é que pôs estes dois sinais exteriores em evidência?

Porque eu acho que é muito assim que se vive fora de Lisboa. O país que somos não tem nada a ver com a capital. Basta avançarmos uns metros para o interior, ou nem é preciso para o interior, mas para o lado da capital para percebermos que as coisas funcionam ainda um bocadinho assim, sobretudo funcionavam muito assim em 1980 e 1990. Na verdade, a grande diferença que existia, nestes meios mais pequenos, era entre os ricos e os pobres. É a primeira grande diferença. Portanto, esse estigma é o primeiro de todos. Depois está talvez a cultura, mas este é o primeiro diferenciador.

“Os nossos pais tinham um emprego para a vida, um casamento para a vida e hoje nada é para a vida.”

E é uma marca da nossa sociedade que se verifica?

Acho que vamos recuperá-la, infelizmente. Porque, na realidade, eu faço parte da primeira geração que era suposto viver muito melhor que os meus avós e melhor que os meus pais. Faço parte da geração que começa a entrar na faculdade com a certeza de que toda gente deve ter um curso superior e que vai haver emprego para toda a gente e eu acho que os meus filhos já não têm esse pensamento. Vai haver, outra vez, um fosso maior. Parece-me evidente.

Mas não estamos em plena recuperação económica?

Estamos, mas estamos muito apoiados num setor, que eu acho que estava muito inexplorado, obviamente, que é o turismo. Assusta-me um bocadinho isso, porque esta coisa de ter um emprego… Quer dizer, nada hoje em dia é dado como certo. Os nossos pais tinham um emprego para a vida, um casamento para a vida e hoje nada é para a vida.

Tinham uma vida muito mais descansada do que a nossa?

Muito mais, é muito assustador viver assim.

Este livro, para além de ser uma grande história de amor é também o retrato da história recente do país. Porque é que quis fazer esse retrato tão vívido daquilo que nós, de 40 anos, passamos desde os anos 80, este progresso enorme que vimos a acontecer no país. E estes sentimentos que são também provocados pelo estado da economia e da política, dessa espécie de falta de futuro que sentimos também?

Porque eu acho que nós temos uma evolução um bocadinho esquizofrénica. Uma evolução própria. Ou seja, nós crescemos com a ideia de que o país está a desenvolver-se. Temos a possibilidade, todos, de ter ascensão social mais igualitária, através da educação e rapidamente isso desmorona. É uma geração que assiste a praticamente tudo. Somos filhos dos pais que fizeram o 25 de Abril e que tinham esperança num país muito mais livre, democrático e, claro, não tem nada a ver com isso. Há progressos extraordinários, mas depois a ruína também começa a desenhar-se muito cedo. Nós entrámos para a faculdade com 18 ou 19 anos e aos 40 anos já tínhamos percebido que isto estava por fios. Talvez porque essa ideia de “progresso” tenha ficado assente, sobretudo, numa questão económica. Na verdade, o que aconteceu foi que nós tivemos muito dinheiro à disposição mas não fizemos uma evolução a vários níveis. Não houve uma revolução de mentalidades ao nível da valorização de muitas outras coisas importantes: da cultura, da educação. Houve uma democratização do canudo. Não da educação.

Este livro Quando perdes tudo não tens tempo para ir a lado nenhum é um retrato de Portugal contemporâneo, mas não é por isso que deixou de ser traduzido para várias línguas. Quantas versões estrangeiras é que este livro já tem?

Bem, na verdade, ele foi parcialmente traduzido. Teve uns quantos capítulos traduzidos em húngaro. Vou bater-me mesmo para ele ser completamente traduzido. Tradução garantida total ainda não tem. Mas acho que é uma história que pode ser transversal. Acho que ele também tem uma coisa que é importante, apesar de ser o retrato de Portugal num certo momento histórico, ele tem uma coisa de que eu gosto muito – também sou suspeita -, é muito pop, no sentido em que tem muita coisa que se passa na nossa vida, durante o nosso dia. Tem uma parte da letra de uma música, tem uma entrada do Google… Isto são as pessoas a viverem. Não é uma história, nem é um grande romance. Não tenho aspirações a ser uma romancista de alta literatura, como se costuma dizer. Quero escrever bons livros, muito bem escritos, isso é ponto assente, mas quero chegar ao maior número de pessoas.

Ainda existe essa hierarquização tão demarcada. E agora pergunto-lhe enquanto editora: ainda existe esta categorização da literatura? Uma coisa não pode ser duas e a outra?

Acho que existe, completamente. Há muito pouca obra de ficção de qualidade, que existe, por exemplo, no mundo anglo-saxónico. Nós, em Portugal, somos muito bipolares. Temos alta literatura, muitas vezes inacessível para o leitor, porque basta nós vermos os inquéritos que fazemos às portas das universidades, aos estudantes. Há um nível de iliteracia muito elevado. Portanto, é muito disparatado estarmos a querer que uma grande parte da população vá ler histórias de alta literatura. Agora, ficção de qualidade, claro que podem ler. Eu como editora mas, sobretudo como escritora, tenho o dever de chamar as pessoas para os livros e esse caminho tem que ser feito de uma forma simples. Não podemos querer que, de repente, as pessoas comecem a ler o Guerra e Paz. Não dá.

Em todo o caso, Portugal tem produzido literatura que fala às pessoas, justamente, por estas questões de contexto cultural. Tivemos aqui no estúdio da TSF a Ana Saragoça e a Isabela Figueiredo, que são escritoras, mulheres, que escrevem sobre o presente e sobre a sua forma de ver o presente. Continua a ser difícil vender estes livros, de mulheres que falam para todos e que fazem o retrato do país?

Muito difícil. Não é um best seller por diversas razões. E também não está naquela categoria de obras inacessíveis e, por isso mesmo, extraordinários.

“As mulheres estão habituadas a ver o mundo, um bocadinho de casa”

E porque é que estes livros não são best sellers, uma vez que nos tocam a nós, portugueses, que vieram dos subúrbios e que viram as cidades a crescer onde antes havia campo?

Penso que tem muito a ver com um complexo nosso que continua a existir, que é “o que é nacional não é bom” ou “não tão bom como o que vem lá de fora”. Depois existe um problema muito grande, que é o facto de haver cada vez menos espaço para a literatura em todos os meios. Não há programas sobre livros. O espaço dado pelos media, jornais e revistas é cada vez menor. Há um enorme volume de literatura todos os dias a sair. Muitos autores estrangeiros traduzidos. E portanto, aqui, evidencia-se quem tem mais dinheiro para comunicar. Depois, eu também não sei se as pessoas, quando leem, às vezes, não querem é evadir-se e esquecer que elas próprias também tiveram uma vida complicada e, se calhar, preferem sonhar com os castelos e os jatos das 50 Sombras de Grey. Não sei.

Dulce Garcia, dizia-me há pouco que neste 18º festival de Primeiro Romance, de Budapeste, uma coisa que verificou é que além da incidência das mulheres, os temas tratados pelas mulheres são específicos. Que temas são esses?

Por exemplo, havia uma dinamarquesa que estava lá, e a quem achei imensa graça, que faz discursos para o primeiro-ministro e toda a gente brincou muito com isso – “o que é que ela escreve para o primeiro-ministro?”. Esta mulher escreveu a história da sua avó, que é uma mulher que nasce na Roménia e lhe matam o pai aos seis anos e vai para a Dinamarca sozinha e acaba por ser adotada por uma família dinamarquesa. Depois ela casa com um espanhol e vive a guerra civil espanhola, portanto é uma mulher incrível, com uma história fantástica. Eu acho que esta mulher quis contar a história à sua volta e a história do mundo através da sua avó. Depois estava uma miúda polaca que ganhou um prémio, este ano, na Polónia, que é a história dela e da família numa aldeia pequena, longe dos grandes centros. E ela dizia que quando estava a apresentar o livro olhava para as tias, um bocado a medo, porque não sabia quando é que uma delas lhe ia deixar de falar. Há muito a tentativa de compreensão de um contexto mais restrito que é a casa e a família porque é aí que temos estado um bocadinho trancadas.

Há maior à vontade para falar dos países a partir destes micro cosmos familiares?

Acho que sim. Para as mulheres é mais natural partir de um ponto específico para o mundo. É assim há muitos séculos. As mulheres estão habituadas a ver o mundo, um bocadinho de casa. Foi assim que as coisas aconteceram. Elas não têm grande intervenção política. Historicamente, há umas corajosas, mas é muito pouco significativo, parece que estamos sempre na segunda plateia a assistir às coisas.

Quando é que escreve outro romance?

Eu já estou a escrever. Acho que estou para aí a um terço ou metade e continuo como desde os 10 anos, a perceber que nunca vou viver de escrever livros. Mas agora encontrei esta profissão fantástica que é editar livros. Portanto, passo o dia no meio deles, o que é uma maravilha.

Imagem de destaque: Facebook Dulce Garcia

Designer Alexandra Moura na Conversa Delas