Esta série de televisão explora tensões raciais numa família matriarcal

O criador de Sete Palmos de Terra escreveu uma série que confunde o espetador e o obriga a refletir sobre raça, género e identidade, e a questionar o que significa 11:11. Falámos com os protagonistas e o autor em Los Angeles

Audrey Bayer olha-se ao espelho, pronta para a grande festa de aniversário do marido, e respira fundo para suster as lágrimas nos olhos. A matriarca da família sente que está a perder o controlo, não importa quanto se esforce. Lá fora, o caos destapa os buracos desta família multiracial que foi produto dos sonhos de um casal hippie e idealista. Passamos a maior parte do tempo sem perceber se gostamos de Audrey ou se reviramos os olhos com as suas escolhas, e o mesmo acontece com as outras personagens da nova série da HBO. Here and Now, que estreou na passada madrugada, é um drama familiar que aborda as tensões raciais e as divisões políticas que se vivem por estes dias, com um toque confuso de sobrenatural. O primeiro aliciante é que foi escrita por Alan Ball, o criador de Sangue Fresco e Sete Palmos de Terra. O segundo é que tem interpretações sólidas de Holly Hunter (Audrey Bayer) e Tim Robbins (Greg Boatwright), contando ainda com Sosie Bacon (filha de Kevin Bacon), Jerrika Hinton, Raymond Lee, Daniel Zovatto e Peter Macdissi. O fio condutor que se consegue discernir desde o início é a sensação de que estas pessoas não pertencem a lado nenhum. Não têm uma comunidade, e como tal não conseguem definir a sua identidade.

Esta família vive em Portland, Oregon, uma cidade progressista cuja população é essencialmente branca. Nos anos 80 e 90, Audrey e Greg adotaram três crianças de países onde os Estados Unidos tiveram intervenções desastrosas: Ashley veio da Libéria, Duc do Vietname e Ramón da Colômbia. Kristen é a única filha biológica e, tal como os pais, branca como a cal.

“Não sei como a raça da Ashley é retratada na série, nem tenho a certeza se a raça é algo que se pode retratar”, diz Jerrika Hinton, que interpreta Ashley, numa conversa em Los Angeles. “A raça é basicamente uma experiência para ela.” À primeira vista, a série parece ser feita para cativar a audiência que se identifica com a esquerda liberal e progressista. Mas depressa se veem os podres também desse lado da barricada: “Ninguém sai disto limpo”, resume Jerrika.” O irmão adotivo do Vietname, Duc, mantém uma imagem de perfeição que é sublimada por um falso celibato. “O celibato é para proteger a imagem, a reputação, a ocupação do Duc. Ele é conhecido como arquiteto de vida e é difícil corresponder às expectativas para alguém com um passado tão sórdido”, explica Raymond Lee, que interpreta este estranho personagem. “A busca pela identidade é infindável.”

Raras vezes se vê em televisão um retrato tão cru e confuso do que é a busca de identidade de pessoas que pertencem às ditas “minorias” – afro-americanos, asiáticos, muçulmanos, gays, transgénero. Here and Now tem isso tudo. E manifestações anti-aborto à porta de uma clínica Planned Parenthood, discriminação racial por parte da polícia, sexo com menores, supremacistas brancos, uma relação homossexual intensa e discussões sobre a misoginia do regime patriarcal. Tudo isto embrulhado numa aura de sobrenatural que aparece e desaparece sem se perceber o que está a acontecer. Ramón (Daniel Zovatto) começa a ver o número 1111 por todo o lado e a audiência é levada a questionar: ele está a conectar-se com um lado místico, aquilo que não conseguimos ver com os olhos, ou deu em maluco?

A influência de Trump

Quando a série começou a ser escrita, toda a gente assumia que Hillary Clinton seria eleita presidente dos Estados Unidos. A vitória de Trump apanhou os escritores de surpresa e obrigou a mudanças. “Originalmente, no segundo episódio quando a Kristen está a falar da patriarquia e misoginia, um dos colegas diz que isso não existe porque agora temos uma mulher presidente. Tivemos de tirar isso”, conta Alan Ball. O discurso de Greg no primeiro episódio também passou de uma crise existencial pessoal a desilusão social; “Nós perdemos”, desabafa o filósofo.

Outra alteração foi a criação de uma família muçulmana, em que o filho é possivelmente transgénero e o pai, o psicólogo Olivier Shokrani, é contra o Islão.

O ator que o interpreta é Peter Macdissi, que também produz a série. “Onde é que eu existo na América neste momento?” é a pergunta que Macdissi faz. “A série não é política, sobre esquerda e direita. É sobre pessoas, sobre seres humanos, sobre estas personagens, porque elas existem.”

A diversidade racial é o grande apelo desta série, principalmente porque foge do complexo do salvador branco. Os personagens brancos não são os bons – nem os maus. É tudo visto à luz da humanidade de cada um.

Kristen, interpretada por Sosie Bacon, é uma adolescente que se afirma feminista, progressista e consciente, mas sente-se desinteressante porque os irmãos adotivos são exóticos. “Isto baseia-se no seu privilégio. Quando se nasce branco, não se tem ideia de que isso lhe dá vantagens”, afirma Sosie. “Ela sente-se completamente perturbada por não ser de outra raça, sem grande compreensão do que significa pertencer a outra raça.”

O debate sobre empatia

Não há muitas séries que discutam a importância da empatia e a sua utilidade, algo que soa a apropriado neste momento dadas as divisões sociais e políticas que explodiram por todo o lado. Audrey e Greg viveram a sua juventude a defender que o que o mundo precisa é de empatia, adotaram crianças em países pobres, e chegam a 2018 com marchas de supremacistas brancos nas ruas e Donald Trump na Casa Branca. É um debate interessante, e os atores não se escusam a participar nele. “A empatia é algo muito importante para a nossa sobrevivência. Mas não a empatia masoquista”, sublinha Tim Robbins, que dá vida a Greg. “Não vou dizer que todos os apoiantes de Trump são racistas, mas digo que o desencanto que os levou a votar no Trump é o que temos de endereçar”, completa, dizendo que ter empatia por eles não exclui a mesmo abordagem às vítimas das políticas do presidente.

Sosie Bacon tem uma posição semelhante. “A empatia é uma dádiva e uma maldição, de certa forma.” Daniel Zovatto, que vimos em It Follows e From Dusk to Dawn, apresenta uma ideia diferente: acredita que somos cobaias da tecnologia e que a forma como a usamos vai contra a natureza humana. “Aproximou-nos, mas nós claramente não estamos prontos para estarmos todos juntos.” O ator costa-riquenho diz que a série pretende iniciar essas conversas que as pessoas não querem ter. “Temos de aprender que não nos identificamos apenas com as nossas etnias; identificamo-nos com humanos, porque é isso que somos.”

Here and Now passa no TVSéries às segundas-feiras às 22h45.

Por: Ana Rita Guerra

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