“Estamos todos a tentar atropelar o sono dos bebés”

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[Fotografia: Shutterstock]

Menos de metade dos pais portugueses (43%) leem histórias para adormecer aos seus filhos, um gesto que, levado a cabo, seria indutor e tranquilizador do sono de bebés e crianças. Números baixos num país onde miúdos e graúdos devem horas de mais à cama, sob, em parte, o pretexto e a cultura de “quem muito dorme, pouco aprende”.

Porém, o sono é vital para que a saúde física e mental deixe de ser um problema tão grande no futuro em termos de custos pessoais e para os serviços de saúde.

É com base neste pressuposto que a cadeia de supermercados Lidl elegeu como campanha de solidariedade de Natal a colaboração estreita com a associação Nuvem Vitória, que trabalha para melhorar o sono de crianças em contexto hospitalar e não só, mas também com outras que querem incrementar o descanso nacional. É à boleia desta iniciativa, que decorre até 30 de dezembro e mediante a entrega de 1 euro na venda de cada bolo-rei, que o Delas.pt ouviu a psicóloga clínica de bebés e sono Clementina Pires de Almeida.

Para a especialista, dorme-se pouco, depressa e mal em Portugal e desde tenra idade, como se pode ver no estudo abaixo, que auscultou 500 pais.

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O sono dos bebés e dos pais em 2018, em Portugal [Fonte: GFK/Lidl]

Para Clementina Pires de Almeida, o sono deve ser transformado “numa questão de Estado” e o mais “rapidamente” possível. Pede mais histórias para adormecer e sestas até mais tarde. Caso contrário, não vamos poder mesmo dormir em adultos, tais são as doenças acumuladas.

Psicóloga Clínica Clementina Almeida Nuvem Vitória Lidl
Psicóloga Clínica Clementina Almeida {Fotografia: Filipa Bernardo/Global Imagens]

Reitera que os bebés dormem pouco. Qual é a causa mais frequente que lhe surge em contexto clínico?

As expectativas dos pais relativamente ao sono dos bebés encontram-se desadequadas. Os recém-nascidos dormem muitas horas, muitas vezes ao longo do dia, mas não dormem durante a noite, o que constitui uma queixa frequente. Os bebés despertam ao longo da noite, o que faz parte do desenvolvimento neurológico e do padrão do sono. Temos de responder às suas necessidades, não só de dia, mas também de noite.

Como é que foi criada essa falsa expectativa? Como é que surgiu?

Por falta de informação e não só. É uma questão muito social, que surgiu nos últimos 30 a 50 anos e que decorre do facto de as mulheres passarem a assumir responsabilidades, funções e trabalho fora de casa. No fim da licença de maternidade, as mamãs têm de regressar ao mundo laboral, mas o bebé não acompanha essa mudança porque está na idade de ainda não dormir uma noite inteira. É aqui que surge a grande pressão para o bebé dormir.

Pressões que existem também a outros níveis?

Não, não assistimos a essas pressões quanto se trata de querer que os bebés comecem a andar mais depressa. Se um bebé não caminha aos 12 meses, ninguém – família e amigos – sente urgência de apressar essa fase porque dizem que ela logo chegará. Ninguém tenta atropelar este tipo de desenvolvimento. Já em relação às noites inteiras, estamos todos a tentar atropelar o sono dos bebés. As mães precisam que eles durmam, as empresas precisam que as mães vão trabalhar, elas precisam de ir ganhar dinheiro. Portanto, são questões muito movidas pelo economicismo e não tanto pela biologia.

O governo lançou, esta semana, um conjunto de medidas (3 em linha) para a conciliação trabalho-família. Elas são adequadas, chegam?

Não conheço o plano.

“As mães precisam que eles durmam, as empresas precisam que as mães vão trabalhar, elas precisam de ir ganhar dinheiro”

Mas as que têm sido faladas recentemente são suficientes, vão na direção certa?

Todas as iniciativas que permitam a mães e pais conseguirem corresponder às necessidades dos primeiros tempos de vida dos bebés e até aos três anos devem ter lugar. É sabido cientificamente que estes são os mais importantes na vida de uma pessoa e são, ao mesmo tempo, os que trazem mais retorno em termos económicos, estando estimado que um dólar gasto nesta fase são depois 17 dólares poupados no futuro.

Em concreto, como são feitas essas contas?

Estes rácios têm que ver com o que gastamos, mais tarde, em orçamentos públicos para o tratamento de doenças mentais, diabetes, enfarte do miocárdio. Contas feitas, inclusivamente, pelo norte-americano James Heckman, prémio Nobel de Economia (num estudo conhecido como a Equação de Heckman e que pode ler aqui). Portanto, ele sustenta que o investimento na primeira infância, e por cada dólar gasto, traz um retorno estimado de 9 a 17 dólares, tendo em conta o que vamos gastar em saúde pública. Nesta linha, por exemplo, uma licença de maternidade prolongada é um investimento no futuro da sociedade.

“Os três primeiros anos de vida são os mais importantes na vida de uma pessoa e são, ao mesmo tempo, os que trazem mais retorno em termos económicos”

O que fazer, então?

Embora a falta de sono seja uma questão internacional, está já a haver muito buzz à volta do sono porque já se percebeu que existiam muitos problemas que podiam ser evitados. Há um maior risco e propensão para a doença. É que o sono tem um efeito direto no sistema imunitário, é tão importante como comer ou beber. Em Portugal, estamos muito longe de dar toda a importância que o tema do descanso merece.

O que podemos fazer por cá?

Por exemplo, no sistema público de ensino, a partir dos quatro anos, as crianças já não podem dormir a sesta. Ora, esta prática é uma das mais anticientíficas que pode existir. A sesta é importante para reter memórias, e privar uma criança de dormir, algo que é vital, é contra natura. Já para não falar nas que, no seu primeiro ano de escolaridade, têm uma agenda tão carregada que dormem apenas nove horas quando deviam dormir 10 ou 11. Os pais, então, nem se fala. O estudo agora publicado refere que eles dormem seis a sete horas diárias. É muito pouco.

Portanto, falamos de famílias inteiras a caminhar para a doença.

Sim. Completamente. A nível físico e mental e tudo o que isso impacta depois.

“A sesta é importante para reter memórias, e privar uma criança de dormir, algo que é vital, é contra natura”

Como por exemplo?

Acidentes de viação que seriam evitáveis, crianças mais propensas ao risco por via de uma coordenação motora diminuída, muitos défices de atenção e hiperatividade que são, na verdade, défices de sono. Devíamos olhar para o sono como uma questão de Estado.

Como o fazer?

Temos de sensibilizar as pessoas. Ninguém dá valor ao sono. O facto de os pequeninos não poderem dormir tem de ser revisto, e rapidamente. Vivemos aquela questão de descansar ser uma perda de tempo, e que o importante é fazer exercício físico, correr. O desporto é bem visto, o sono não. É preciso que as pessoas olhem para o descanso como um aspeto muito valioso, que devíamos preservar pela nossa saúde.

Grande franja da população está mais empobrecida, tem horários de trabalho gigantes, biscates para fazer face às despesas no lar. Como podem descansar e promover o descanso?

E ainda há os que trabalham por turnos, e por aí fora. Aí, vai ser necessário que as pessoas que estão em cargos de poder e decisão valorizarem estas matérias e as protejam. É preciso que todos se ajustem, é uma questão para toda a sociedade e que atravessa várias áreas.

E em casa, o que cada um pode fazer?

É preciso criar um ambiente indutor do sono. As histórias para ir dormir fazem com que as crianças comecem a relaxar, promovem momentos de miminho e interligação entre filhos e pais, ajuda as crianças a falarem do seu dia – sobretudo para aquelas que são mais ansiosas e que sofrem de bullying na escola. É neste momento de cumplicidade que as barreiras entre pais e filhos podem cair. As histórias permitem, ao mesmo tempo, diminuir a probabilidade de as miúdos terem pesadelos, estimulando o cérebro do ponto de vista académico. A história, a não-existência de tablets, de smartphones, de televisão… tudo ajuda a que o cérebro da criança relaxe e que faça uma integração da informação recolhida ao longo do dia. Quero ainda vincar que, para além do momento indutor de sono, as histórias para adormecer e a leitura partilhada entre pais e filhos fazem com que os filhos durmam melhor e mais tempo.

E há histórias mais ou menos indicadas? É que temos assistido a uma corrente que pede para que se cortem nas tradicionais, que opõem o bem e o mal, como se se tratasse de uma guerra

É verdade que temos contos tradicionais um bocado assustadores e nas quais as personagens acabam queimadas ou os porquinhos veem-se obrigados a fugir, o que não é muito bom para o sono de uma criança que, aos três anos, está na fase dos medos. Os pais têm de adaptar as histórias.

“Escusamos de dizer que a Branca de Neve morreu. […] Mas, fazer guerra às histórias é que não”

É preciso fazer uma guerra às histórias tradicionais?

Escusamos de dizer que a Branca de Neve morreu. No fundo, devemos adaptar ao nível de desenvolvimento da criança que temos connosco. Mas, fazer guerra às histórias é que não. Eu sou autora de uma narraativa na qual falo de uma ovelha que queria dormir. É uma história para crianças – mas também adultos – em que elas adormecem com facilidade. É uma história construída da parte cientifica para, depois, prosseguir para a história em si. Ela vai sendo contada com o propósito de ir acalmando, ir induzindo o sono, através de estímulos naturais.

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Capa do livro ‘Olívia, a ovelha que não queria dormir’, da autoria de Clementina Almeida [Fotografia: DR]
E como é que isso acontece apenas com uma história?

O livro cheira a alfazema, que é considerado um aroma que promove o sono, as imagens do livro vão escurecendo ao longo da história, vai sendo pedido um progressivo relaxamento muscular e caminha-se para a parte da imaginação, o que faz com que a criança vá ficando mais tranquila. O livro tem dicas para os pais sobre o que seria uma boa rotina do sono. A obra foi recentemente editada nos Estados Unidos da América, e dizem-me que as vendas estão a correr bem. Recentemente, gravámos uma audioversão com a [ex-apresentadora] Fernanda Freitas, que deverá ser publicado em janeiro [pela Porto Editora]. Posso dizer-lhe que as gravações em estúdio foram feitas às 11 da manhã e, ao fim de algum tempo, todos estávamos com sono (risos).

Qual é o seu envolvimento nesta campanha solidária?

É uma honra estar associada a esta campanha, sou voluntária na associação Nuvem Vitória, que trabalha, em particular, com o sono de crianças em ambiente hospitalar. Há estudos que dizem que há um impacto visível neste tipo de iniciativas, é vista como uma intervenção terapêutica não invasiva porque os mais pequenos melhoram a sua imunidade e a resistência à doença, relaxam, têm menos despertares durante a noite, entram em níveis de sono mais profundo. Faz todo o sentido ser embaixadora desta campanha e integrar os projetos em que o Lidl vai participar em parceria com as plataformas do sono, a Quero Dormir. Aqui, as pessoas podem ir buscar informação científica e fidedigna, mas também dicas para pôr em prática no seu dia-a-dia. São recomendações de lifestyle, se quisermos, mas são acima de tudo terapêuticas.

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