Estas empregadas domésticas são “um grupo de resistentes”

Todos os domingos, 200 a 300 mil empregadas domésticas ocupam a Central District de Hong Kong, a zona mais nobre da cidade, que é simultaneamente centro financeiro e do comércio e marcas de luxo. Porque domingo é dia de folga e não lhes é permitido permanecer em casa, elas – quase todas filipinas e algumas tailandesas – ocupam praças e ruas, fechadas pela polícia com o propósito de facilitar esta ocupação pacífica. O fenómeno, e os contrastes a ele associados, estão registados na exposição “Arquivo e Democracia”, do artista português José Maçãs de Carvalho. A mostra, que é uma instalação com vídeos e fotografia, está patente no edifício Central do MAAT (antigo Museu da Eletricidade), em Lisboa, até 24 de abril. O Delas.pt visitou a exposição e falou com o artista sobre estas mulheres, que vê como “um grupo de resistentes”. Na fotogaleria, em cima, pode ver imagens de “Arquivo e Democracia”.

Por que se interessou em documentar esta espécie de “ocupação”, como lhe chama?
Eu vivi em Macau cinco ano, até 1999, e tenho regressado regularmente para fazer um projeto com alunos chineses, retratar o quotidiano deles ao longo dos anos. Sempre que faço esta rota de viagem, fotografo e filmo muitas outras coisas. Esses cinco anos que vivi em Macau, vivi-os entre Macau e Hong Kong e para além de ir fotografando, fui observando, escrevendo, projetando uma série de coisas para eventualmente fazer no futuro. Algumas delas, fiz em fotografia, mas percebi que tinham potencial cinematográfico ou videográfico. Como é que eu cheguei a este projeto? Por vivência da realidade. No fundo, fui registando e depois, num determinado momento filmei. Os filmes que temos nesta exposição foram feitos entre 2009 e 2012 e são o resultado de uma vivência fotográfica, do registo fotográfico daquela zona da Ásia e das viagens que vou fazendo. Muitas são feitas de forma errante, ano após ano vou acumulando séries e que vão ficando em arquivo.

Foi o que aconteceu com estas mulheres que ia vendo aos domingos no centro de Hong Kong?
Sim. Quer dizer, tive imediatamente consciência de que havia aqui qualquer coisa de muito interessante. Não tanto como um facto social. A perspetiva sociológica não me interessa tanto neste caso, interessa-me mais como possibilidade de materializar o tempo e a sua vivência. Como é que o tempo passa e como é que isso pode ser transportado para a imagem fotográfica e videográfica. Porque também há ali qualquer coisa de familiar. Desde logo, os gestos: pentear, comer, arranjar os pés. São gestos íntimos, privados, que estão ali no espaço público e se tornam, por isso, públicos também. Mas interessa-me igualmente muito a vivência da arquitetura contemporânea. O que é muito estranho ali, e sempre senti isso, é que há qualquer coisa desmesurada na relação entre a ocupação e a própria arquitetura. O confronto do corpo no espaço, naquela arquitetura.

É por isso que põe, nas imagens, em confronto essa ocupação com as características da zona, que é uma zona financeira, onde existem lojas de marcas de luxo e alta-costura?
Exatamente. Tem sempre uma recorrência em fundo que tem sempre uma marca – a “frase-imagem”. Tem sempre uma marca, uma imagem de marca latente que está por detrás daquela vivência quase inocente da classe mais baixa. Aí podemos fazer uma aproximação política as estas obras, porque nitidamente temos a classe mais baixa a ocupar o espaço mais alto, mais rico. Há aí uma atitude das imagens. Mas diria que o que me interessou muito é que aquela arquitetura é feita para receber pessoas em movimento.

Não é sítio para as pessoas estarem…

Exatamente. E elas, de certo modo, contrariam essa espetacularidade da arquitetura. E o que sempre senti, e se sente nestes filmes, é que a arquitetura acanha-se. Fica muito mais pequenina com aquela ocupação.

Durante o período que fez estes filmes presenciou mudanças no espaço, na vivência desses domingos?Praticamente nada. A Ásia tem esta contradição: as coisas mudam muitíssimo depressa, trabalha-se 24 horas se for preciso, se a pessoa se ausentar um mês a face do lugar onde estava pode mudar completamente, mas depois nos hábitos, na cultura das pessoas, no quotidiano não muda nada. Há valores que persistem. Os meus alunos de Macau têm os gadgets que todos temos, vivem uma vida super-veloz, mas depois mantêm os costumes das famílias tradicionais chinesas, das tradições religiosas. O que normalmente não acontece na Europa, os nossos valores tradicionais diluem-se no quotidiano da contemporaneidade.

Como é que o resto de Hong Kong, nomeadamente os patrões destas mulheres, empregadas domésticas, olham para a ocupação daquele espaço, o tal espaço mais alto e mais rico da cidade?
Eu não sei dizer tudo sobre isto. Até porque recentemente há alguns movimentos, em Hong Kong, mais corporativistas que estão a tentar defender mais direitos e regalias para estas imigrantes, mas estamos a falar de uma cidade em que não podemos comparar a situação das empregadas domésticas com as do resto da Europa ou noutras partes do mundo mais degradadas. Parece-me que, até pelo facto de as autoridades ajudarem nessa ocupação – a própria polícia fecha as ruas – e ter uma presença mais discreta e auxiliadora do que punitiva, eu diria que é vista de uma forma absolutamente pacífica esta ocupação. Não há propriamente alternativa. São 200 a 300 mil pessoas, numa ilha que tem o tamanho de Coimbra. É das zonas mais densamente povoadas do mundo.

Têm mesmo de ocupar o espaço.
Sim, têm que estar em algum lado, um dia inteiro. Não podem estar nas casas. As próprias habitações são em altura e são sempre apartamentos muito pequenos. Portanto, elas tinham que ocupar o espaço. O que é interessante é que ocupam-no na zona mais nobre, mais rica. É um mistério, enigmático quando vemos os filmes em exposição.

Quantos filmes é que temos nesta mostra e como a podemos caracterizar em termos multimédia?
Eu diria que esta mostra é uma instalação. É para ser vista com o olhar mas também com o corpo em andamento, em errância.

Um pouco como estas mulheres…
Como elas e como nós próprios numa cidade com tanta estimulação visual e sonora. Perdemo-nos constantemente nesta errância e vivências sinestésicas. Para além de que depois a ilha do Hong Kong é muito concentrada. O ruído que se ouve na exposição é real. São milhares e milhares de pessoas a falarem. E também me parece que há outra camada interessante que é o facto de olharmos e praticamente não vermos homens. São só mulheres. E isso também é estranho.

Como é que descreveria estas mulheres?

É uma pergunta um pouco difícil.

Dizia na visita à exposição que não quis paternalizar este fenómeno e que elas são felizes…
Sim, sim. E isso vê-se nas imagens. Dizia, de facto, que não gostava nada que houvesse um olhar piedoso sobre elas. Porque não é o meu olhar e até porque elas, parece-me, são minimamente felizes. Não são miseráveis, não são desgraçadas. Apesar de tudo, acho que estão bem na pele que têm e penso que fiz um retrato relativamente objetivo. O que eu gostava, e que tentei, é que não houvesse uma visão muito expressionista, muito trabalhada sobre o que se está a ver. O que eu fiz foi ir à procura tanto de gestos como de imagens que são recorrentes, quer nas pessoas, quer nas montras, nos manequins e nas imagens virtuais que passam nas montras. De como é que os retratos também se projetam na publicidade local, nos autocarros. Há uma proliferação de imagens no filme.

Resumindo, e apesar de a questão ser difícil, como é que vê estas mulheres?
Eu acho que as vejo como um grupo de resistentes, mulheres resistentes. Porque ser empregada doméstica, trabalhar seis dias por semana, dez ou 12 horas por dia, não é nada fácil. Apesar de viverem relativamente bem, não é fácil. Estão afastadas de casa, das famílias, dos filhos. São uma comunidade imigrante. Mas eu vejo-as com essa capacidade de resistência porque desde logo têm essa capacidade de se organizarem num espaço. É um espaço de lazer, é um espaço de relaxamento, mas essa capacidade de organização num espaço público mostra que estamos perante um grupo resistente. Resistente a quê? Isso já não faz parte da minha atitude como artista decidir.