EUA. Supremo ameaça por fim ao direito ao aborto

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Manifestantes pró-aborto em Atlanta, Georgia, durante um protesto de emergência após ter sido conhecido o documento do Supremo Tribunal norte-americano que quer proibir este direito [Fotografia: Erik S. Lesser/EPA]

O presidente do Supremo Tribunal norte-americano confirmou a autenticidade de um projeto de decisão tornado público sustentando a anulação da decisão histórica de 1973 (conhecido como processo Roe v. Wade) que reconheceu o direito ao aborto no país, e ordenou uma investigação.

No primeiro comentário público do Supremo desde que o projeto foi publicado na segunda-feira, 2 de maio, o juiz-presidente John Roberts disse que, “embora o documento descrito nos relatórios seja autêntico, não representa uma decisão do Tribunal ou a posição final de qualquer membro sobre as questões no caso”.

O jornal norte-americano Politico noticiou que o Supremo Tribunal dos Estados Unidos prepara-se para anular a decisão histórica de 1973 que reconheceu o direito ao aborto.

O jornal afirmou ter obtido um projeto de decisão escrito pelo juiz conservador Samuel Alito e datado de 10 de fevereiro, que ainda está a ser negociado até à publicação, prevista para antes de 30 de junho.

O processo Roe v. Wade, que há quase meio século, sustentava que a Constituição dos EUA protegia o direito da mulher a fazer um aborto, era “totalmente sem mérito desde o início”, de acordo com o documento obtido e citado pelo Politico. “Acreditamos que Roe v. Wade deve ser anulado”, acrescentou Samuel Alito, para quem o direito ao aborto “não está protegido por qualquer disposição da Constituição” norte-americana.

Se esta conclusão for aceite pelo Supremo Tribunal, os Estados Unidos voltarão à situação que existia antes de 1973, quando cada estado era livre de proibir ou autorizar a realização de abortos. Dada a grande divisão geográfica e política sobre a questão, espera-se que metade dos Estados, especialmente no sul e no centro conservadores, proíbam rapidamente o procedimento.

Democratas querem aborto fora da esfera judicial,
conservadores querem que proibição prossiga

A maioria democrata no Senado dos Estados Unidos anunciou que vai forçar uma votação simbólica sobre o aborto, após a divulgação do projeto de uma decisão do Supremo Tribunal norte-americano que anularia esse direito, conquistado em 1973.

O líder dos democratas no Senado, Chuck Schumer, prometeu durante uma intervenção na câmara alta levar a votação a lei sobre o aborto, apesar de não ter maioria suficiente para conduzi-la adiante, tratando-se apenas de um esforço puramente simbólico.

A proposta de Chuck Schumer é aprovar uma legislação que proteja o aborto em todo o país e, portanto, não dependa de decisões judiciais. “Votaremos para proteger o direito de escolha das mulheres, e cada cidadão americano vai ver de que lado cada senador está”, disse o político nova-iorquino.

Os democratas têm uma maioria residual no Senado (apenas metade dos senadores e o voto de qualidade da Vice-Presidente, Kamala Harris, que serve de desempate), mas aprovar uma lei com estas características exigira uma maioria maior, de 60 votos.

Poucas horas antes, o Presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, já havia anunciado que o seu Governo está a preparar uma “resposta” para defender esse direito. “Se esta decisão for adiante, vai ser muito radical”, criticou Biden, dizendo que já ordenou aos advogados da Casa Branca que preparem “opções de resposta da Administração ao contínuo ataque contra o aborto e direitos reprodutivos”.

O chefe de Estado também aproveitou para convocar os cidadãos a irem às urnas nas eleições intercalares de novembro e votarem em candidatos a favor do direito ao aborto, a fim de avançar no Congresso uma legislação federal que proteja essa questão à margem dos tribunais.

Do outro lado da barricada, a manifestante antiaborto Barbara Beavers tentou persuadir outras mulheres a não interromperem a gravidez junto a uma clínica no estado norte-americano do Mississípi, gritando palavras de ordem como: “Perguntem-me sobre testes de gravidez e ultrassons” e “Vocês não precisam de fazer isso hoje”.

A opositora do aborto, que se reformou de uma clínica de gravidez em crise e que tenta convencer as mulheres a não interromperem o parto, rezou e tentou conversar com as pessoas enquanto saíam dos automóveis. “Estou a oferecer ajuda e alternativas ao aborto”, disse Barbara Beavers, que reside em Jackson.

“O aborto causa ferimentos tanto nas mulheres como nas crianças que ainda não nasceram, e por isso quero oferecer-lhes um último – antes de entrarem – lugar de descanso, ajuda e esperança”, disse.

Questionada se achava que algum dia veria o processo Roe v. Wade ser anulado, Barbara Beavers realçou: “Dred Scott foi derrubado. Era uma má lei. A lei de Roe v. Wade é má. Precisamos de defender os nossos filhos, nascituro ou nascidos. Precisamos de defendê-los. Precisamos apoiá-los. Não precisamos de matá-los”.

Os dois ‘pequenos’ detalhes que arriscam tirar direitos às mulheres

A restrição começou a ganhar forma e a gerar inúmeras preocupações de mulheres e celebridades que se juntaram à causa em 2019. Há três anos, os Estados Unidos saíam à rua para protestar contra o que ameaçava ser uma vaga legislativa antiaborto e que estava a ser proposta, à data, em quase metade dos estados: em 20 deles.

Bastou a mexida no Supremo Tribunal e a nomeação por parte de Donald Trump do juiz conservador Brett M. Kavanaugh, em outubro de 2018 para que esta corrida a legislação mais restritiva do aborto começasse a ganhar força. Com aquela indigitação, o presidente dos Estados Unidos assegurou a existência de um quinto voto favorável na limitação à interrupção voluntária da gravidez.

Foi dado, desta forma, o tiro de uma partida que, em cerca de três meses, já em 2019, levou cerca de 20 estados norte-americanos de maioria republicana a apresentar restrições ao aborto. Na altura e àquela velocidade – e com cerca de três dezenas de propostas esperadas nos Estados Unidos da América -, os especialistas temiam que este movimento pudesse levar à revisão da lei do aborto a nível federal. E os piores receios confirmaram-se.

Já em dezembro de 2017, por parte de Trump, tinha existido uma tentativa ‘discreta’ de anular este direito conquistado em 1973 mas por via de mexidas na reforma fiscal norte-americana.

Uma ligeira alteração na lei que, uma vez aprovada pelo presidente Donald Trump, abriria espaço para mexer no direito ao aborto. Na ocasião, notava a revista norte-americana Quartz, que a a introdução de apenas duas palavras na lei (três em português) – “unborn child”/crianças por nascer – iria mexer com os direitos das mulheres, arriscando recuo de décadas.

Segundo a mesma publicação, este detalhe que escapou ao debate no Senado dizia respeito à secção 1202 e no qual o projeto de lei fazia referência ao Plano 529: um programa que existe desde 1996 e que permite às famílias americanas poupar para oferecer os estudos aos seus filhos, beneficiando de vantagens fiscais por isso mesmo. É neste ponto do projeto que as novas palavras ameaçam fazer toda a diferença. De entre os beneficiários dos planos de poupança para estudos, o novo articulado acrescenta “crianças por nascer”(unborn child, em inglês).

Ou seja, à primeira vista tudo indica que os benefícios fiscais até vão alargar. Porém, não foi isso, porém, que levou a Quartz.com a falar nesta matéria. Aquela publicação mostrou a definição de”unborn child” que constava no documento. “Nada deve impedir que um feto seja tratado como um beneficiário designado ou um indivíduo sob esta secção. O termo ‘criança não nascida’ significa uma criança no útero. O termo ‘criança in utero’ significa um membro da espécie homo sapiens, em qualquer estágio de desenvolvimento, que é transportado no útero “, lê-se.

CB com agências