Como explicar às crianças que a mãe tem cancro?

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Ana Margarida Dinis descobriu aos 35 anos que estava doente. Tinha um cancro, palavra difícil de dizer, ainda mais de assimilar. Tinha uma profissão (era advogada), um marido e dois filhos, de seis e oito anos. Foi com as crianças que mais se preocupou quando o diagnóstico chegou, cinzento como o céu antes de desabar numa chuva grossa que molha todos. Tentou sempre que os filhos não se molhassem nesta tempestade – ou que se molhassem o menos possível – mas a pergunta é inevitável: como se explica que a mãe tem cancro a uma criança para quem a mãe é tudo?

“Não existe uma forma padrão para cada faixa etária. O essencial é analisar a maturidade que a criança tem, para que se possa ajustar o vocabulário de modo a que a informação seja percetível e para passar a informação em “quantidade q.b.”, ou seja, nem pouca informação que deixe a criança desconfiada e cheia de questões, nem demasiada informação que deixe a criança sem saber processá-la,” responde Inês Afonso Marques, psicóloga clínica e coordenadora da Equipa Infanto-Juvenil da Oficina de Psicologia.

Acrescenta ainda que: “Sendo à partida uma situação de saúde que, pelas suas características, dificilmente passa despercebida, nem que seja pelas alterações de rotinas, é importante que não se tente esconder a mesma na sua totalidade da criança. O tema deve sempre ser falado, tendo em consideração a maturidade da criança. Uma forma de perceber qual a informação que a criança “precisa” para se sentir mais tranquila é precisamente perguntar-lhe “o que gostarias de saber?” e, partindo daí, adequar o discurso e a informação”, considera Inês Afonso Marques, psicóloga clínica e coordenadora da Equipa Infanto-Juvenil da Oficina de Psicologia.
Ana Margarida Dinis, hoje com 40 anos, está neste momento em isolamento numa ala do IPO de Lisboa enquanto aguarda um transplante de medula. Um transplante que irá terminar, assim espera a equipa médica, o cancro que a ‘apanhou’ de surpresa numa altura da vida em que tinha tudo – menos saúde.

“Falamos de tudo. Os meus filhos sabem o que se passa, sabem que estou em isolamento e que vou fazer um transplante. Sabem que o objetivo é ficar bem, saudável. Da morte nunca falámos. Nunca senti necessidade de o fazer. Acredito que ficarei bem. Além de que, todos, um dia morrermos mesmo não estando doentes… e nunca estaremos preparados para essa realidade, por muito que falemos nela. Só acrescentaria sofrimento e ansiedade a uma realidade que por vezes já não é fácil”, explica ao Delas.

Quando sentem a mãe menos bem – consequência da doença e também dos vários tratamentos que foi fazendo – Rafaela e Luís não arredam pé, como se a quisessem amparar na dor, apesar da (tenra) idade que têm. “Quando me sentem menos bem, passam mais tempo ao pé de mim. É a forma que têm de me dar mimo”, conta Ana, que apesar destes cinco anos de luta contra um cancro difícil de pronunciar (Linfoma não Hodjking, células T, periférico não específico) tentou sempre ser uma mãe presente e viver o dia-a-dia com a normalidade possível.

“É importante explicar que o tratamento que a mãe está a fazer, ou os remédios que está a tomar para que se sinta melhor/matar os bichinhos que alimentam a doença, provocam algumas sensações desagradáveis/chatas, como o cabelo cair, a indisposição ou o cansaço. Explicar que nesses momentos poderá não conseguir brincar ou dar atenção, mas que depois de descansar um pouco, por exemplo, pensando no filho para ter mais força, se vai sentir com mais energia para brincarem ou conversarem um pouco”, aconselha a psicóloga Inês Afonso Marques.

A experiência de Ana Margarida acaba por confirmar que o melhor é envolver as crianças nos processos da doença mas sem dramatismos: “Da primeira vez, lembro-me de olhar para o chão, para a almofada, para o sofá e ver cabelos por todo o lado. Lembro-me dos meus filhos me dizerem para o ir rapar. E assim foi. Rapei e gostei de me ver com ele rapado. Eles também gostaram. Fomos sempre brincando com a situação. Eles já sabiam que a mãe estava um bocadinho doente e que precisava de fazer um tratamento que fazia cair o cabelo. Eles não tinham noção da gravidade da situação, talvez pela nossa postura perante a situação, talvez pelas suas idades”, conta a advogada. De qualquer forma “eu e o meu marido sempre falámos muito com eles. Fui à escola dos meus filhos mostrar a minha ‘careca’ aos amigos, para que todos vissem, tocassem, brincassem e esclarecessem todas as questões ou dúvidas. Tinha medo que gozassem com eles por causa de mim, mas felizmente nunca aconteceu”, acrescenta.

É essa mesma ideia, de tranquilidade perante os factos que a psicóloga clínica defende: “Quanto mais calmo estiver o adulto doente, mais calma ficará a criança. A partir dos 2/3 anos a criança começa a compreender o conceito de doença, sendo mais fácil usar o termo para explicar o que se está a passar, sendo que o fundamental é prepará-la para quaisquer mudanças temporárias (como ausências da mãe) que tenham que ocorrer. É isso que ela precisa para que fique tranquila. Para ela, que também já esteve doente, a mãe “tem o dói-dói que o médico e os remédios vão tratar”. Nas crianças em idade escolar, os livros podem ser um aliado no momento de explicar à criança o que se está a passar. Os adolescentes terão um entendimento mais próximo de um adulto. O mais importante é que haja sempre espaço para diálogo e que este seja sincero, simples e acompanhado de afeto.”

Margarida tem conseguido que o linfoma não a defina, nem como pessoa, nem como mãe. Faz questão de participar nas rotinas estabelecidas de ser uma mãe muito presente na vida dos filhos mesmo, como nesta altura, se vê forçada a estar fisicamente longe de Rafaela, hoje com 13 anos, e Luís, de 11, por causa do isolamento a que o transplante obriga.

“O que mais me custa é pensar nos meus filhotes. Tento sempre desviar o pensamento. Tenho imensas saudades deles. Mas tem que ser. E se tudo correr bem daqui a uns meses estaremos juntos para sempre…”

Assumindo-se um contexto protetor e securizante, em que a doença consegue ser controlada, não é obrigatório que essa fase na vida das famílias deixe uma “marca negativa”, com impacto significativo no desenvolvimento das crianças, acredita Inês Afonso Marques.

Ana Margarida Dinis não tem dúvidas de que se houver uma marca, será necessariamente positiva. “São meninos sensibilizados para realidades diferentes, fruto de uma longa e forçada aprendizagem”.