Expor crianças pode levá-las “à depressão e até tentativa de suicídio”

mário cordeiro Steven governo

Mário Cordeiro é pediatra e tem sido uma das vozes contrárias à exibição do programa da SIC SuperNanny, um formato que tem gerado polémica e no qual a psicóloga Teresa Paula Marques intervem junto de crianças com problemas comportamentais e tenta inverter essa realidade familiar. A oposição ao formato por parte do médico é pública, tendo-o levado a declarar formalmente que não compareceria em formatos da estação de Carnaxide enquanto o canal exibisse o conteúdo, aos domingos à noite.

Agora, em conversa por escrito ao Delas.pt, Cordeiro fala dos riscos que podem decorrer da exposição pública das crianças quer em programas de televisão como o SuperNanny, quer dos de caça-talentos. O pediatra fala ainda da questão da exposição dos menores, por parte dos pais, em redes sociais ou mesmo em blogues integralmente estruturados sobre episódios e momentos da vida familiar. Os perigos, esses, são afinal absolutamente transversais.

Leia a entrevista na íntegra abaixo:

Como pediatra, quais os danos que antecipa existirem sobre as crianças que participem em programas como o SuperNanny?

Em saúde falamos de risco. Risco é uma probabilidade de acontecer algo de funesto, indesejável e nocivo, em maior ou menor gravidade. Sabemos, assim, que expor crianças da forma como é feito no inenarrável programa da SIC traz um risco acrescido de, mesmo parecendo que tudo fica bem no final do programa, os problemas reais manterem-se lá. Virem momentos de refrega em que as coisas pioram, e nada ficar resolvido, para lá dos efeitos da exposição pública que durará, não apenas no tempo do programa, mas para sempre, no day after, na Internet, nas relações com os amigos e até, por exemplo, numa futura entrevista de emprego ou de candidato a presidente da câmara em que alguém poderá dizer: “ah, mas você era a fulana ou beltrana da birra na tv”. Se vacinamos para diminuir o risco de doenças graves, também deveríamos fazer a prevenção destas situações, sobretudo quando o programa é abjeto e idiota na forma, no conteúdo e falso no fingimento de que “tudo vai ficar bem” com a varinha de condão daquela “bruxa” que assiste a tudo, se pronuncia sobre o óbvio (“é um caso de desrespeito da mãe”, diz ela, com ar seráfico, perante uma criança a chamar nomes e a dar pontapés à progenitora – até os meus netos poderão fazer esse “diagnóstico”!). E dá ideia de que apenas pretende justificar o que lhe pagam e, porventura, angariara mais alguns clientes. Dá ideia, reforço, não vá a senhora acusar-me de estar a pôr em causa os seus “nobres” princípios.

“O programa é abjeto e idiota na forma, no conteúdo e falso no fingimento de que “tudo vai ficar bem” com a varinha de condão daquela “bruxa” que assiste a tudo, se pronuncia sobre o óbvio”

Nesta matéria, quais são os limites dos pais sobre os filhos na decisão da exposição pública dos filhos?

As crianças não são propriedade dos pais – diz a Lei, diz a Constituição, diz a Convenção sobre os Direitos da Criança que tem valor de lei em Portugal. Dizem muitos artigos do Código Civil. Diz o bom senso. É preciso ir mais longe? E se os filhos resolvessem mostrar a intimidade dos pais? Sim, invertamos as coisas… ficavam contentes? Essa relação de poder perverso de pais sobre filhos tem de ser aniquilada das nossas mentes… porque já o está na legislação. Pior ainda quando tudo fica para sempre e já nem se trata apenas (seria mau, na mesma) de uma coisa episódica que cai no esquecimento. Não cai e pode ser recuperada no futuro, e ser usada contra o próprio, em situações em que os pais não controlam, como na vida profissional ou carreira política, ou o que for.

Quais são os riscos para as crianças em matéria de saúde?

Levar a problemas de autoestima, tristeza, falta de confiança, ver-se a si próprio como mau, ser vítima de bullying nas suas diversas formas, fugir das situações sociais, depressão e até suicídio ou tentativas de suicídio e, no futuro, uma má perspetiva da parentalidade, no que toca a ser pai ou mãe e no que toca ao que esperar dos filhos.

Qual a diferença entre SuperNanny e outros programas de televisão de talentos?

Nestes programas, pelo menos na maioria, espero crer, as crianças sabem que só um ganhará. É um concurso.

Nestes, as crianças destacam-se pela sua habilidade para cantar, dançar, cozinhar, ou outros, mas trabalham inúmeras horas para treinar o talento em causa. Permanecem horas e dias a fio em estúdio e por vezes são humilhadas na hora de perderem? Quais as diferenças que existem entre aquele formato da SIC e estes formatos de caça-talentos para as crianças? O que pode e deve ser feito?

Se não houver exploração, horas a fio de trabalho, se não colidir com nenhum dos seus direitos, designadamente estudar, brincar, ser criança, se os apresentadores/júri estimularem a aprender e a progredir, mesmo que tenham de reprovar esse desempenho, se a derrota for um momento triste, claro, mas bem gerido, com apoio dos pais, não vejo problema. Se houver humilhação, castigos dos pais ou insultos, como já ouvi e vi em jogos de torneios escolares (sem televisão por perto), se, como no caso do menino das orelhas grandes [em Ídolos, também da SIC], houver humilhação, isso já fere, e de que modo, os direitos das crianças.

“Problemas de autoestima, tristeza, falta de confiança, ver-se a si próprio como mau, ser vítima de bullying nas suas diversas formas, fugir das situações sociais, depressão e até suicídio ou tentativas de suicídio”

Quais os limites dos pais em matéria de gestão de redes sociais, quando partilham fotos de filhos ou contam episódios “curiosos”?

Há que ter cuidado. Uma coisa é uma fotografia normal, da cara da criança quando faz anos ou mascarada no Carnaval, outra são momentos que entrem na intimidade. Sei que há uma grande confusão, hoje, entre o que é intimidade, privacidade e esfera pública, mas ainda existem fronteiras. Tudo o que possa ser usado contra a criança ou que deslustre ou possa vir a deslustrar a sua imagem, confiança e conceito, na sua perspetiva ou na dos outros, é errado. Uma fotografia a soprar as velas aos dois anos de idade creio ser inofensiva. Uma gracinha, mesmo que igual a cem mil outras, pode ser inofensiva também. Já outro grau de exposição é questionável e, confesso, sem qualquer interesse. Bom para contar à família mas um pouco patético partilhar com sete mil milhões de pessoas por todo o planeta…

Como analisa todo o universo de blogues alicerçados em aventuras e desventuras familiares, vividas no contexto da família? Muitos deles são uma fonte de rendimento da família.

Uns são de pessoas que mais nada têm a fazer e acham-se “o máximo” ao contar as piadas ou a colocar fotos dos filhos – um exercício de narcisismo, de “vejam que mãe ou pai extraordinário que eu sou ao ter um filho tão bom ou tão bonito”. Outros são os que aproveitam a imagem, sempre terna, de uma criança para depois anunciar roupa, perfumes, produtos de higiene e puericultura, etc. Aí é usar os filhos para fazer dinheiro – é um negócio e, na minha opinião, uma exploração.

O que pode e deve ser feito pelas autoridades naqueles casos específicos?

Deve ser aplicada a lei. Muitas vezes há uma zona cinzenta em que não se sabe muito bem se os direitos da criança estão a ser feridos, mas nesses casos, ou o legislador muda a lei, ou os magistrados e equivalentes julgam, ou será a criança a julgar, quando for mais velha… e pode crer que sabem fazê-lo e quem se virá a arrepender de as ter manipulado serão os pais.

“Aí é usar os filhos [em blogues] para fazer dinheiro – é um negócio e, na minha opinião, uma exploração”

Como pediatra, pergunto-lhe se alguma vez se confrontou com uma criança que viva em qualquer uma daquelas situações? Como descreve o caso, os riscos e as mais-valias?

Felizmente, creio que ainda são raros os casos evidentes, mas a “bomba” explode mais tarde, na adolescência ou na idade adulta. Quanto à maioria dos casos, felizmente, é apenas uma questão de (mau) gosto e de indigência cultural e estética, mas quanto a isso não me pronuncio, porque é do domínio do subjectivo…

Imagem de destaque: Steven Governo/Global Imagens